«Talvez só Deleuze e Guattari tenham praticado essa esquizoanálise, e talvez alguns de seus leitores (…) Atribuir-lhe a praça pública (…) teria sido territorializá-la.»
Esta é a situação da esquizoanálise em 1988, segundo François Regnault, num ensaio que integrou o Dossiê Deleuze, editado naquele ano pelo Magazine Littéraire¹.
Curiosamente, o Brasil parece destoar desse quadro: a esquizoanálise encontra um solo fecundo nas práticas clínicas locais, principalmente as psicanalíticas, já no final dos anos 70; e desde então, ela só vem proliferando.
Contudo, que não se espere encontrar aqui uma escola esquizoanalítica: concordando com Regnault, isso seria risível, pois iria à contramão das idéias de Deleuze e Guattari (embora nada impeça que se queira transformá-las em breviário de uma nova escola). A esquizoanálise está presente no exercício clínico e teórico de alguns psicanalistas, pertencentes ou não a associações psicanalíticas, que recorrem à obra de Deleuze e Guattari; também no trabalho que se desenvolve com grupos e instituições, vinculado sobretudo à psicose; e, ainda, em programas de pós-graduação de psicologia clínica, onde núcleos de pesquisa vêm estudando essa obra e produzindo um número significativo de teses de mestrado e doutorado.
Pode-se dizer, ainda, que a esquizoanálise habita, embora não explicitamente, o imaginário de analistas de diferentes filiações – e não só dos que a reivindicam -, convocando, em seu fazer teórico, uma sensibilidade à emergência do novo. Em outras palavras, ela funciona neste âmbito como uma espécie de chamado à dimensão crítica da clínica².
Terá o quadro esboçado por Regnault mudado tanto de 1988 para cá? Parece-me que não. Então, o que faz do Brasil essa exceção no solitário destino da esquizoanálise? O tradicional fascínio do brasileiro pela cultura francesa – que, evidentemente, incluiria os psicanalistas? Se assim fosse, essa influência poderia limitar-se a uma bibliografia estritamente psicanalítica, já que a produção francesa neste campo é farta e conta com ampla divulgação no mercado editorial brasileiro. São então outros, certamente, os motivos dessa peculiar situação da esquizoanálise no Brasil.
Arriscarei uma hipótese: a concepção de subjetividade de Deleuze e Guattari, implicada em sua teoria da clínica (a qual, por vezes, eles chamaram de “esquizoanálise”), faria eco a um dos princípios constitutivos das subjetividades no Brasil. Chamarei esse princípio de “antropofágico”, trazendo para a esfera da subjetividade, e reinterpretando, aquilo que o Movimento Antropofágico³ apontou no domínio da estética e da cultura brasileiras.
«Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente»4 – é com essas palavras que Oswald de Andrade inicia o Manifesto Antropofágico. Numa leitura desatenta, a antropofagia pode ser entendida como uma imagem que representaria “o brasileiro”, e que, além de delinear o contorno de uma suposta identidade cultural, teria a ambição de englobar o conjunto tão diversificado de tipos que forma a população deste país. No entanto, o interessante na demarche oswaldiana é justamente um movimento que se desloca dessa busca de uma representação da cultura brasileira, e tenta alcançar o princípio predominante de sua variada produção. Estendido para o domínio da subjetividade, o princípio antropofágico poderia ser assim descrito: engolir o outro, sobretudo o outro admirado, de forma que partículas do universo desse outro se misturem às que já povoam a subjetividade do antropófago e, na invisível química dessa mistura, se produza uma verdadeira transmutação. Constituídos por esse princípio, os brasileiros seriam, em última instância, aquilo que os separa incessantemente de si mesmos. Em suma, a antropogafia é todo o contrário de uma imagem identitária.
A ressonância com as idéias de Deleuze e Guattari é notória: a subjetividade, segundo os dois autores, não é dada; ela é objeto de uma incansável produção que transborda o indivíduo por todos os lados. O que temos são processos de individuação ou de subjetivação, que se fazem nas conexões entre fluxos heterogêneos, dos quais o indivíduo e seu contorno seriam apenas uma resultante. Assim, as figuras da subjetividade são por princípio efêmeras, e sua formação pressupõe necessariamente agenciamentos coletivos e impessoais.
Tanto em Oswald quanto em Deleuze e Guattari, temos uma crítica contundente aos modos de subjetivação subordinados ao regime identitário e ao modelo da representação. Mas a dupla febril vai certamente mais longe nesse empreendimento, ao criar uma complexa construção conceitual para traçar efetivamente uma outra cartografia. Para isso, uma de suas principais iniciativas, senão a principal, será a de circunscrever o plano onde se opera esse processo de produção: inspirando-se em Artaud, eles lhe darão o nome de “Corpo sem Órgãos”. É nesse corpo que os encontros com o outro, não só humano, geram intensidades que os autores definirão como “singularidades pré-individuais” ou “protosubjetivas”. Os agenciamentos de tais singularidades são exatamente aquilo que irá vazar dos contornos dos indivíduos, e que acaba levando à sua reconfiguração.
Se o esforço de Oswald de Andrade foi movido pela necessidade de pensar o peculiar modo de produção da cultura no Brasil, já o esforço de Deleuze e Guattari, naquilo que nos interessa, visou pensar o peculiar modo de produção da subjetividade dominante na era do capitalismo globalizado, num momento inclusive em que este ainda não se mostrava em todo o seu alcance, como é o caso nos dias de hoje. Nesse sentido, sua obra constitui uma poderosa cartografia para nos movermos nos meandros dos processos de subjetivação contemporâneos, cartografia essa que ainda está por ser descoberta e explorada.
Esboçar um tal percurso, indagando de que maneira incide o processo de globalização nesse âmbito, nos aproximará das possíveis ressonâncias das idéias de Deleuze e Guattari neste modo de subjetivação bastante comum no Brasil, que a obra de Oswald de Andrade nos permite entrever. Pois bem, o que se observa hoje, já num primeiro olhar, é uma multiplicação ao infinito das mestiçagens que se operam na subjetividade, com elementos vindos de toda parte do planeta, não importando onde se esteja. Com isso, pulverizam-se muito rapidamente as identidades, o que pode levar a supor que o modelo identitário na construção da subjetividade estaria sofrendo igual pulverização. Mas não é bem assim: ao mesmo tempo em que se dissolvem as identidades, produzem-se figuras-padrão, de acordo com cada órbita do mercado. As subjetividades são levadas a se reconfigurar em torno de tais figuras delineadas a priori, independentemente de contexto – geográfico, nacional, cultural, etc. -, submetendo-se a um movimento de homogeneização generalizada. Identidades locais fixas desaparecem para dar lugar a identidades globalizadas flexíveis. Estas acompanham o ritmo alucinado de mudanças do mercado, mas nem por isso deixam de funcionar sob o regime identitário. É a desestabilização exacerbada de um lado e, de outro, a persistência desse regime acenando com o perigo de se virar um nada, caso não se consiga produzir o perfil requerido para gravitar em alguma das órbitas do mercado, as quais se formam e se dissolvem com a mesma velocidade. Tal perigo traz conseqüências concretas, pois corre-se o risco de cair na vala dos desempregados, que já somam hoje um bilhão, espécie de buraco negro do qual é cada vez mais difícil sair.
Dilaceradas entre esses dois vetores, as subjetividades se encontram em crise. Na tentativa de reagir, elas tendem a ficar se debatendo em torno de falsos dilemas: é a defesa da identidade em geral contra a pulverização, ou vice-versa; ou, então, a defesa de identidades locais contra identidades globais, como se vê nos explosivos movimentos de reivindicação religiosa, étnica, racial, etc. Varia a disposição das peças do tabuleiro, mas este não varia: é sempre o mesmo tabuleiro de uma subjetividade que funciona sob o regime identitário e figurativo, que as novas tecnologias da imagem e da comunicação tendem a fortalecer e a sofisticar cada vez mais. Evidentemente, tais tecnologias não trazem esse sentido embutido em sua fabricação, ele é apenas o resultado de seu uso dominante.
A esquizoanálise pode nos ajudar a sair desse círculo vicioso. A incorporação do plano intensivo que é o Corpo sem Órgãos na cartografia da subjetividade indica uma pista: é o próprio tabuleiro do regime identitário o que está para ser posto em questão. Não em nome do fascínio niilista do caos, mas para viabilizar a produção de uma subjetividade heterogenética. No lugar de imagens a priori em torno das quais se reconfiguram as subjetividades desterritorializadas, o que se pode vislumbrar são modos de existência singulares e heterogêneos. Tais modos se criam em função do mapa de intensidades que vai se traçando nesse denso processo de hibridações ao qual assistimos em nossos dias. Isso requer, no entanto, que se escute o Corpo sem Órgãos, o que implica em desenvolver um ouvido atento à emergência das formas de expressão, um ouvido que consiga deixar de ficar sintonizado exclusivamente seja com os significados, seja com os significantes, seja com ambos.
Estariam Deleuze e Guattari, com essa sua noção de Corpo sem Órgãos, introduzindo uma outra concepção de inconsciente? Sem dúvida: esses autores conservam a idéia de um inconsciente, mas propõem um inconsciente maquínico, ao invés de representacional ou estrutural, «razão pela qual eles puderam se dizer freudianos contra Freud», como bem lembra Regnault no mesmo artigo5. A noção de “maquínico”, que causou tanta controvérsia, define a operação por excelência do desejo: agenciar elementos de uma infinita variedade de universos e, a partir do que se engendra nesse agenciamento, produzir as múltiplas figuras da realidade – e não só da realidade subjetiva.
Ora, isso não evoca diretamente a operação antropofágica? Se a interpretamos desta perspectiva, o “antropo” deglutido e transmutado nessa operação não corresponderia ao homem concreto, mas ao humano propriamente dito – as figuras vigentes da subjetividade, com seus contornos, suas estruturas, sua psicologia. O resultado dessa operação é um desfilar de figuras que se sucedem, geradas nas miscigenações promovidas pelo nomadismo do desejo. Juntando, então, esquizoanálise e antropofagia, diríamos que a lei que rege esse nomadismo é a de um inconsciente maquínico-antropofágico, inumano Corpo sem Órgãos que devora incansavelmente as figuras do humano.
Essa idéia ressoa em certas afirmações intrigantes tanto de Oswald de Andrade quanto de um outro Oswaldo do Movimento Antropofágico, o da Costa: é quando o primeiro escreve que a antropofagia é governada pela lei de um «deus de caravana metamorfoseado em deus de caravela», e que esta seria «a única lei do mundo»6 ; e o segundo completa, dizendo que esta é «a menos transcendental das leis»7. Se retomarmos tais afirmações do ponto de vista que estamos adotando aqui, teríamos que a lei maquínico-antropofágica do deus de caravana é imanente ao nomadismo do desejo; enquanto que a lei do deus da caravela, lei das potências católicas que colonizaram o país, é transcendente a esse nomadismo. A diferença está na estratégia a que obedece a configuração das formas da realidade: quando esse processo é comandado por uma lei que lhe é imanente, ele irá orientar-se pelas intensidades produzidas no Corpo sem Órgãos; já quando é regido por uma lei transcendente, esta impõe ao desejo imagens a priori, extrínsecas a seu movimento. A primeira estratégia definirá um modo antropofágico de subjetivação, enquanto que a segunda, um modo do tipo identitário-figurativo.
Se concordamos com os dois Oswaldos, diremos que parece não ser evidente a hegemonia de um modo identitário em terras brasileiras. Podemos inclusive supor que tanto faz se a representação a ser investida como identidade é imposta por um deus de caravela, ou se ele foi substituído por um deus moderno, padroeiro da nação brasileira, ou por um mais moderno ainda, talvez até pós-moderno, deus do “capitalismo mundial integrado”, como o chamava Guattari, com suas imagens globalizadas, flexíveis e efêmeras. É que sob qualquer uma dessas máscaras com pretensão transcendente, tenderia a afirmar-se uma outra – a qual, aliás, não é uma, mas várias e imprevisíveis, pois ela se metamorfoseia acompanhando o nomadismo do desejo. As subjetividades no Brasil teriam, assim, uma certa maleabidade para deixar-se habitar por uma constante variação de universos, bem como, uma certa liberdade de criação de novas máscaras, territórios de existência marcados pela hibridação de tais universos. Em suma, o inconsciente maquínico-antropofágico se encontraria especialmente ativo neste país.
Seria essa situação a responsável pelo fato de a esquizoanálise, cartografia para uma clínica da subjetividade no final do milênio, ter encontrado precocemente um solo fecundo entre os psicanalistas brasileiros? Vista por esse prisma, a esquizoanálise se constituiria num instrumento adequado para escutar – e com isso, ativar – o inconsciente maquínico-antropofágico do brasileiro. Da mesma forma, o ouvido do psicanalista brasileiro estaria particularmente afinado para esse tipo de escuta que se trata igualmente de ativar. A cartografia concebida por Deleuze e Guattari tenderia a fortalecer o psicanalista nessa empreitada, fornecendo-lhe operadores para circunscrever o modo de subjetivação que sua escuta apreende, e atribuir-lhe sentido e valor.
Isso provavelmente já não acontece – em todo caso não com o mesmo rigor -, quando a escuta na clínica tem, como única referência, uma cartografia psicanalítica tradicional. Sob o crivo exclusivo de uma cartografia desse tipo, o desejo conduzido pela lei da antropofagia tenderá a ser ignorado na positividade de sua lógica; ele será interpretado como carecendo de uma associação à lei abstrata do Ideal transcendente e à lei negativa da falta, submetido exclusivamente à regra do prazer que o pontua de fora. Tal funcionamento será diagnosticado como um traço transgressivo, próprio de uma posição arcaica na suposta escala do desenvolvimento psíquico e/ou cultural. É quando se escreve coisas do gênero «falta ao brasileiro a Lei», «falta-lhe o Ideal», «o brasileiro precisa atravessar seu Édipo»…8
Deleuze e Guattari examinam essa concepção de desejo, que o associa à falta e ao Ideal transcendente, em muitas passagens de sua obra. Destaca-se o platô consagrado justamente ao Corpo sem Órgãos, em seu livro Mil Platôs9, onde com seu humor eles afirmam que esse tipo de associação é coisa de “padre”. Seriam como maldições lançadas contra o desejo, por meio das quais ele é traído, arrancado de seu campo de imanência (o Corpo sem Órgãos), onde precisamente ele se define como processo de produção.
Examinemos a associação do desejo à falta. É por intermédio desta associação que se obtém o sacrifício da castração. Para obtê-lo, é preciso passar primeiramente por uma operação que consiste em pensar o tempo como realização do possível. Por meio dessa operação, instaura-se um falso problema: contentar-se ou não com o possível. Com base nisso, o fato de o desejo não estar associado ao Ideal transcendente e a seu corolário, a lei da falta, será interpretado como recusa a contentar-se com o possível. E o resto, já se sabe: tal recusa será vista como produto de uma vontade de impossível, vontade delirante, ou no mínimo, imatura e infantil.
Ora, o que Deleuze e Guattari estão pleiteando não é que não se deva contentar-se com o possível, mas sim que o problema está mal colocado. Só dá para se pensar em termos do par possível/impossível no plano da representação, porque tal par supõe uma imagem a ser realizada, Ideal transcendente, inacessível por natureza, em direção ao qual, atormentado pela falta, se moveria o desejo. Mas se escutarmos o Corpo sem Órgãos, descobriremos que o tempo como realização do possível é apenas uma de suas figuras; vislumbraremos que o tempo é também invenção. A partir daí, a questão do desejo não mais se coloca em termos de uma escolha entre o possível e o impossível, mas sim de uma viabilização do trânsito em mão dupla entre o plano virtual das intensidades e o plano atual das formas. Trata-se de estar atento às rachaduras das formas vigentes no atual, para escutar o burburinho das singularidades pré-individuais ou proto-subjetivas que se agitam no virtual Corpo sem Órgãos; trata-se igualmente de farejar a pista de agenciamentos que favoreçam a atualização de tais singularidades como matérias de expressão. E, assim, infinitamente.
Para Deleuze e Guattari, o desejo não carece de nada, não porque possa atingir a plenitude de uma satisfação, mas porque a falta só pode ser pensada do ponto de vista de um sujeito, que se orienta pela cartografia de um Ideal transcendente. É esse sujeito que, ao ver sua figura desestabilizar-se pelos movimentos do desejo, o interpretará como sinal de uma carência de completude. No entanto, se tiramos o Ideal transcendente de cena e examinamos esses mesmos movimentos com a escuta sintonizada no Corpo sem Órgãos, aquilo que para o sujeito é falta revela-se como excesso de singularidades que transbordam e desmancham sua figura, levando-a a tornar-se outra, se o processo seguir seu curso.
Dizer que Deleuze e Guattari não consideram que o desejo careça de alguma coisa não significa, portanto, que eles estariam pleiteando uma associação do desejo ao prazer. Pelo contrário: para os autores, esse tipo de associação consiste na terceira maldição lançada contra o desejo, pois o momento da obtenção do prazer é uma forma de trégua durante a qual o desejo se desativa. Como eles escrevem, com esse mesmo humor, obter o prazer «já é uma maneira de descarregar o desejo, no próprio instante e de desencarregar-se dele»10. O oposto da ética proposta pela dupla, que consiste em encarregar-se do desejo, recarregar constantemente sua processualidade, afirmar sua potência de conexão e criação. No lugar do par prazer/desprazer, o que se terá neste caso é a alegria da atividade do desejo e a tristeza de suas desativações. Não é a essa alegria que Oswald estaria se referindo ao escrever em seu Manifesto: «a alegria é a prova dos nove»?
Se concordamos com tais considerações, somos levados a pensar que quando se trabalha clinicamente tendo como guia exclusivo uma cartografia estritamente psicanalítica, no sentido mais tradicional, corre-se o risco de fazer vingar no desejo as duas maldições contra as quais ele tenta, mal ou bem, resistir. Ou, no mínimo, corre-se o risco de fixar o desejo sob o feitiço da terceira maldição, a que o submete à regra exterior do prazer, atrelando a subjetividade a uma imagem fundamentalmente hedonista. Sob esse olhar, o desejo tende a penetrar-se de angústia, culpa e vergonha. A antropofagia, confundida com um hedonismo, tem grandes chances de minguar.
A imagem de uma subjetividade brasileira marcada pelo prazer não é nova. Ela ecoa numa das visões mais tradicionais que se tem do Brasil: o país seria uma espécie de “reserva tropical de hedonismo”, à disposição do planeta, para quem queira fazer aí suas catarses e se saciar. Essa visão, que mobiliza um misto de sedução e condenação, tem seu início na própria fundação do país, com a vontade de catequese dos portugueses, mesclada à volúpia com que se relacionavam com os nativos e, depois, com os negros. Ela vai ganhando outras roupagens ao longo dos séculos e, evidentemente, não é apenas em sua versão psicanalítica que se apresenta na atualidade; o tão falado turismo sexual é, provavelmente, a mais óbvia de suas manifestações contemporâneas.
Já em outro panorama, quando a antropofagia encontra um aliado, como parece ser o caso com a esquizoanálise, o que se descortina é a imagem de uma “reserva tropical de heterogênese”, fruto de uma rica biodiversidade de que o Brasil disporia não só no reino vegetal e animal, mas também no humano, principalmente no campo da subjetividade. O que haveria de vital nessa reserva não é uma imagem a mais da subjetividade, nem uma variedade de imagens, para alimentar o mundo em sua ânsia de consumo de figuras que possam servir de identidade. Pelo contrário, essa reserva conteria a fórmula de uma vacina contra a tendência dominante à homogeneização, tanto em sua necessidade de identidades globais quanto em seus efeitos colaterais de reivindicação de identidades locais ou de dissolução no caos: a vacina de heterogênese provocaria nas subjetividades um desinvestimento do modo identitário. Doses de tal vacina estariam assim à disposição para serem injetadas na complexa química da subjetividade que se produz nessa difícil, mas não menos fascinante, passagem de milênio.
Nossa indagação acerca do “porque a esquizoanálise vinga precisamente nas práticas clínicas brasileiras” acabou desembocando numa questão ético-política de alcance mais amplo. Mas também aqui se encontram Oswald, Deleuze e Guattari. Oswald chegou a defender a tese de que a Antropofagia constituiria uma «terapêutica social para o mundo contemporâneo»11. Guattari via no modo de subjetivação no Brasil uma saída interessante para as questões que se colocam, neste âmbito, na atualidade. Este era, aliás, um dos aspectos que mais o atraíam neste país, segundo suas próprias palavras:
«Parece-me que estão reunidas aqui as condições para que se desenvolva uma espécie de máquina imensa, uma espécie de imenso ciclotron de produção de subjetividades mutantes.»12.
«São pessoas que fizeram essa mutação capitalística e que nem por isso estão inteiramente engolfadas num processo de buraco negro em grande escala, como a União Soviética.»13
«Em matéria de índios, metropolitanos ou tupiniquins, os países europeus são muito subdesenvolvidos. É claro que sempre dá para se reassegurar, dizendo que a História não é linear e que se pode esperar rupturas brutais. Estou convencido disso. Sobretudo se vocês continuarem nesse ritmo em que estão engajados nesta espécie de transformação do Brasil, talvez vocês acabem nos enviando o elevador das revoluções moleculares.»14
Esses são apenas alguns exemplos da insistência de Guattari nessa idéia, ao longo de suas sete viagens ao Brasil. Quanto a Deleuze, não terá sido algo assim o que ele quis dizer com a intrigante frase de seu livro Nietzsche e a filosofia: “Os lugares do pensamento são as zonas tropicais, freqüentadas pelo homem tropical”15?
É óbvio que não se trata, aqui, de estabelecer um quadro classificatório de cartografias do desejo por regiões geográficas, nem de enaltecer os trópicos. As subjetividades no Brasil, como em qualquer outro lugar, se constituem na tensão entre modos de vários tipos. A propósito, quando aqui prevalece o modo identitário, tanto sob a forma de identidades locais fixas quanto de identidades globalizadas flexíveis, este tende a apresentar-se particularmente tosco e exacerbado. No primeiro caso, vemos por exemplo subjetividades aderirem sem a menor crítica à representação de um suposto “ser brasileiro”, investindo-a com impressionante fervor ufanista. Uma imagem marcante nesse sentido circula por ocasião de disputas esportivas internacionais: a bandeira envolvendo por inteiro os corpos de atletas e torcedores que, por um momento, transformam-se em puros emblemas de uma pretensa identidade nacional. No segundo caso, quando o modo identitário assume a forma de identidades globalizadas flexíveis, é surpreendente a facilidade com que se mitifica qualquer figura que se apresenta de modo minimamente sedutor; facilidade igualmente para reconfigurar-se através desta identificação, na esperança de conquistar um reconhecimento social imediato. Um bom exemplo disso é o fenômeno das telenovelas, especialmente a novela das oito na rede Globo16. Sua linguagem incorpora as mais avançadas tecnologias e sua temática, as questões políticas, econômicas, sociais, comportamentais, etc. que agitam a vida nacional a cada momento. O tratamento dado a essas questões é sempre o mesmo: seu poder disruptivo se esfumaça envolto pelo glamour dos personagens, os quais se oferecem como atraentes figuras-padrão para todos os gostos. Integrados à vida cotidiana de milhões de brasileiros que os consomem como sua ração diária de identidade, tais personagens formam uma espécie de família-prótese cujo equilíbrio e mesmice nada tem o poder de abalar. Verdadeiro laboratório high tech de imagens prêt-à-porter, idealizadas de acordo com cada nova situação do mercado, as telenovelas brasileiras são exportadas com expressivo sucesso para mais de cem países.
Com efeito, o inconsciente maquínico-antropofágico não é prerrogativa dos trópicos, e muito menos dos brasileiros: sendo um princípio imanente à produção de subjetividade, ele é próprio da espécie humana como um todo. No entanto, ele pode estar mais ou menos ativo nas subjetividades, e isso em muito depende dos contextos sócios-culturais, do quanto tendem a favorecer ou inibir sua atividade.
Hoje, na era da globalização, tal inconsciente parece encontrar-se especialmente em baixa. É diante dessa situação que ativá-lo torna-se uma prioridade da clínica, não só no Brasil. Prioridade que, aliás, extrapola a esfera da clínica propriamente dita: ativar o inconsciente maquínico-antropofágico se constitui como força de resistência política à regra geral da homogeneização, engrenagem imprescindível do sistema em que vivemos.
N O T A S
[1] François Regnault, “Une vie philosophique”, Magazine Littéraire n.257, Paris, sept. 1988.
[2] Cf. Paulo C. Lopes: Pragmática do desejo. Aproximações a uma teoria da clínica em Félix Guattari e Gilles Deleuze. Dissertação de mestrado, Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São Paulo, 1996.
[3] Movimento polêmico ocorrido nos 20, no contexto do Modernismo no Brasil, no qual destaca-se a figura e a obra de Oswald de Andrade.
[4] Oswald de Andrade, “Manifesto antropófago”, in Revista de Antropofagia, ano I, no I, São Paulo, maio de 1928. Reeditado em A utopia antropofágica, Obras completas de Oswald de Andrade, Editora Globo e Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, São Paulo, 1990. (Cf. P.F. de Queiroz-Siqueira “Un étrange manifeste”, in Nouvelle Révue de Psychanalyse, no 6: Destins du Cannibalisme. Paris, automne 1972)
[5] Cf. nota 1.
[6] Idem.
[7] Acquilles Vivacqua, “A propósito do homem antropófago”, in Revista de Antropofagia, Diário de São Paulo, 1/5/29.
[8] Encontramos esse tipo de visão, no Brasil, em ensaios de alguns psicanalistas, especialmente no livro Hello Brasil, de Contardo Calligaris (São Paulo, Escuta).
[9] Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mille Plateaux. Capitalisme et Schizophrénie, plateau 6: “28 novembre 1947 – Comment se faire un Corps sans Organes?”. Minuit, Paris, 1980.
[10] Idem; p. 191.
[11] Oswald de Andrade, “A marcha das utopias” [1953], in A utopia antropofágica (cf. nota 4).
[12] Félix Guattari e Suely Rolnik, Micropolítica. Cartografias do desejo. Petrópolis, Vozes, 4a ed. 1996 [1986]; pp. 310-311 (trecho de debate ocorrido em 1982). Este livro só foi publicado no Brasil.
[13] Idem, p.310.
[14] Idem, p.304.
[15] Gilles Deleuze, Nietzsche et la Philosophie, PUF. Paris, 5e éd.. 1977 [1962]; p. 126.
[16] Maior rede de televisão brasileira, a TV Globo introduziu, desde 1965, um padrão de telenovela que há muitos anos vem se mantendo como campeã de audiência. A novela que vai ao ar às 20 h, de segunda a sábado, atinge uma média de cinquenta milhões de espectadores, que pode chegar a setenta milhões – perto da metade da população do país -, participando assim da vida dos lares brasileiros, independentemente de sua origem social.
Texto publicado na França e no Brasil, respectivamente in Gilles Deleuze. Une vie philosophique, Alliez, Éric org. (Paris: Les empêcheurs de penser en rond, Synthélabo, 1998); pp. 463-476 e in Gilles Deleuze. Uma vida filosófica (São Paulo: Editora 34, 2000); pp. 451-462. Texto apresentado no colóquio Encontros Internacionais Gilles Deleuze (Brasil, 10-14 de junho de 1996).