A crise mundial em que estamos mergulhados é, a meu ver, uma crise dos modos de semiotização do capitalismo, não só no nível das semióticas econômicas, mas de todas as semióticas de controle social e de modelização da produção de subjetividade.
A ascensão dessa imensa vaga reacionária que submergiu o planeta é em grande parte consequência do desenvolvimento da crise econômica que apareceu em 74. Mas, na verdade, não se trata verdadeiramente de uma crise econômica. Mais exatamente, essa crise econômica é apenas uma de toda uma série de crises. Aliás, é justamente porque os movimentos de esquerda sindicais tradicionais viveram essa situação unicamente em termos de crise econômica, que o conjunto dos movimentos de resistência social ficaram totalmente desarmados. E, na ausência de respostas, foram as formações mais reacionárias que tomaram conta da situação.
Dá para estimar que o essencial dessa crise mundial (que é, ao mesmo tempo, uma espécie de guerra social mundial) é a expressão da gigantesca ascensão de toda uma série de camadas marginalizadas, por toda a superfície do planeta. São centenas de milhares de pessoas que vivem com fome, e não só isso, mas também centenas de milhares de pessoas que não podem se reconhecer nos quadros sociais que lhes são propostos. Essa crise de modelos de vida, de modelos de sensibilidade, de modelos de relações sociais, não existe somente nos países subdesenvolvidos mais pobres. Ela existe também em amplas correntes das massas dos países desenvolvidos.
Não se trata mais daquilo que se chamava tradicionalmente de “crises cíclicas do capitalismo”. É uma crise de modos de relação entre, de um lado, os novos dados da produção, os novos dados de distribuição, as novas revoluções dos meios de comunicação de massa e, de outro lado, as estruturas sociais, que permaneceram totalmente cristalizadas, esclerosadas, em suas antigas formas. Os poderes de Estado são tanto mais reacionários quanto mais aguda é sua consciência de que estão sentados em cima de uma verdadeira panela de pressão que eles não conseguem mais controlar. Será que dá para acreditar que as concepções dos economistas neoliberais americanos vão permitir manter, por muito tempo, uma ordem mundial que encare esta imensa ascensão da miséria?, que encare esta devastação de continentes inteiros, não só do ponto de vista econômico, mas do ponto de vista de uma esperança mínima de viver? Eu não tendo nenhum otimismo beato, deslumbrado, em relação a situação atual. Acho, pelo contrário, que haverá desafios absolutamente atrozes que vão se exprimir em massacres como os que aconteceram no Camboja, no Irã, no Líbano. O imperialismo, em todas suas versões, está preparando formas de intervenção de extrema violência, e seus técnicos – em todo caso, os norte-americanos – estão de fato pensando na possibilidade de utilização de armas atômicas miniaturizadas para intervir localmente nesses conflitos.
Não se pode dizer que eu esteja prevendo alguma evolução linear em direção a um novo tipo de revolução. Mas não é participar de um otimismo deslumbrado, o fato de acreditar que reviravoltas históricas consideráveis estão com encontro marcado para os próximos anos. O que coloca ainda mais na atualidade a necessidade de criação de novos instrumentos de luta, novos tipos de referências conceituais para compreender a evolução dessas situações inusitadas…
Uma das características da crise que estamos vivendo, é que ela não se situa apenas no nível das relações sociais explícitas, mas envolve formações do inconsciente, formações religiosas, míticas, estéticas. Trata-se de uma crise dos modos de subjetivação, dos modos de organização e de sociabilidade, das formas de investimento coletivo de formações do inconsciente, que escapam radicalmente às explicações universitárias tradicionais – sociológicas, marxistas ou outras. Essa crise é mundial, mas ela é apreendida, semiotizada e cartografada de diferentes maneiras, de acordo com o meio.
Costuma-se ter, grosso modo, três tipos de atitude em relação a essa crise. A primeira, que eu chamaria de desconhecimento sistemático, tem duas vertentes que conhecemos bem: de um lado o marxismo dogmático que, quando não está no poder (mas aspirando a ele), considera sempre que “as questões de subjetividade, de novas necessidades, existem, sem dúvida, mas só poderão se colocar após a tomada de poder”. E, quando eles estão no poder – o que leva a catástrofes como as que assistimos no Camboja ou nos países do Leste – ao invés de considerar o caráter específico dos problemas subjetivos coletivos, eles costumam colocá-los por conta do erro (erro do partido, manipulações do inimigo ou coisas dessa natureza). De outro lado, temos as teorizações que estão em voga por exemplo nos Estados Unidos (o neoliberalismo, os movimentos libertários, enfim, toda a corrente que se circunscreveu em torno da Escola de Chicago, de Freedman, etc.), que não consideram de modo especifico o conjunto de problemas relativos ao novo tipo de movimentos sociais. Para tais correntes esses movimentos são formas residuais, formas atrasadas de modos de subjetivação. E uma espécie de neodarwinismo social, que pensa essas formas de resistência subjetiva coletiva como arcaísmos que, exatamente por isso, devem ser esmagados, superados, recuperados, utilizados ou remanejados. Para essas teorias a salvação só pode vir de uma espécie de seleção que tem por base uma axiomática fundada na propriedade, no lucro e na segregação social.
O segundo tipo de atitude face aos movimentos sociais contemporâneos poderia se situar, grosso modo, sob a rubrica de um certo tipo de social-democracia, especialmente a francesa. Já aqui, tenta-se circunscrever o problema a dois tipos de temática: por um lado considera-se que deve haver uma reorientação das relações internacionais, do eixo leste-oeste para o eixo norte-sul (ou seja, para as relações entre os países desenvolvidos e subdesenvolvidos). É um pouco o cerne da temática que Jack Lang desenvolveu num congresso promovido pela UNESCO no México. Por outro lado, e desta vez no nível das relações internas, considera-se que, de fato, existe um problema especifico para toda uma série de categorias sociais que não estão inseridas nos processos capitalísticos dominantes. E isso vai desde os problemas nacionalistas ou regionalistas – por exemplo, na França, o problema corso, basco, bretão, etc. – até os problemas dos movimentos feministas, homossexuais, etc., ou os problemas de mudança de relação com a mídia, como é o caso do movimento das rádios livres. Mas o que caracteriza essa segunda atitude é considerar essas questões específicas apenas o suficiente para delimitar as problemáticas e recuperá-Ias. Essa já era a ideologia do kennedismo, que numa certa época tentou criar uma série de programas que pretendiam canalizar e, ao mesmo tempo, ajudar a controlar o movimento negro, o movimento porto-riquenho, o movimento hippie, etc. Através desse exemplo, poderíamos dizer que a primeira atitude (a de desconhecimento), e a segunda (a de recuperação), não se opõem, mas se complementam, e perfeitamente. Esse reconhecimento parcial pode ajeitar-se com atitudes extremamente repressivas contra os elementos que não se integram nesses processos de recuperação. Podemos constatar aí uma modulação da recuperação extremamente vigilante e precisa.
Considero o melhor exemplo disso a Alemanha Federal, onde há setores alternativos extremamente desenvolvidos e estruturados nas principais cidades, nos quais se desenvolve um processo de autonomização subjetiva coletiva, e esse processo coexiste com sistemas de controle social baseados num esquadrinhamento informático de tal porte que, atualmente, avalia-se em quatro ou cinco milhões o número de pessoas totalmente fichadas e controladas por computadores. A França oscila entre adotar uma solução do tipo alemã, com informatização geral, etc., dadas as ameaças terroristas, ou criar funções estatais – do tipo Senhor Prisão, Senhor Córsega, Senhor Mulher, Senhor Rádio Livre – para estabelecer um diálogo que permita encontrar modos de negociação e de financiamento.
O mesmo tipo de ambiguidade encontramos na Polônia, só que num contexto muito mais catastrófico. De um lado, o governo Jaruzelski gostaria de tentar inventar uma estrutura sindical que tivesse uma conexão real com o movimento social e que permitisse sair dessa espécie de greve geral permanente que existe na Polônia. Mas, de outro, ele recusa radicalmente todas as consequências políticas dessa verdadeira revolução que se deu com o Movimento Solidariedade.
Portanto, a atitude de recuperação é complementar não só à atitude de desconhecimento, mas também às formas de repressão extremamente estritas e violentas do esquadrinhamento social. Assim como são complementares, de fato, no nível das relações internacionais, a atitude das duas grandes potências dominantes – os Estados Unidos e seus aliados e a União Soviética -, como pudemos constatar em operações como a agressão das Malvinas pela Inglaterra, ou, mais recentemente, na passividade total das grandes potencias – mais do que isso, sua cumplicidade – na agressão de Israel contra os povos libanês e palestino. Seja qual for o tipo de modalidade, há uma espécie de abordagem complementar daquilo que chamei de problemática Norte-Sul, no sentido de que em cada país há eixos norte-sul: nos países desenvolvidos há zonas de Terceiro e Quarto Mundo, assim como nos países subdesenvolvidos zonas de Norte, ou seja, zonas de CMI [Capitalismo Mundial Integrado]. De tal modo que podemos dizer, esquematicamente, que há uma espécie de vetorização da problemática geral desses novos modos de subjetivação que dizem respeito tanto às relações com o Terceiro Mundo em nível internacional, quanto a essa espécie de Terceiro Mundo que se desenvolve no seio dos países desenvolvidos. Quero dizer mais concretamente que, de certo modo, e apesar de todas as diferenças das situações, a problemática que os camaradas italianos se colocaram a respeito dos não-garantidos, dos trabalhadores precários, de todas as marginalidades existentes e a problemática, que se coloca no Terceiro Mundo, da sobre-exploração e, às vezes, até da liquidação física tem, a meu ver, fronteira comum.
Voltando a meu ponto de partida, é claro que isso não elimina o fato de que a maneira como essas problemáticas se encarnam é completamente diferente, de acordo com o contexto. Por exemplo, o problema do negro no Brasil não é diretamente comparável ao dos marginatti, em Milão ou em Bolonha. No entanto, podemos talvez considerar que tanto um como o outro participam do mesmo tipo de crise geral que atravessa todas as sociedades do planeta no momento atual. O que os unifica é algo que se abate sobre eles e que vem de fora: uma certa politica do CMI de reestruturação das relações sodais e das relações de produção. Podemos dizer que existe uma complementaridade entre as operações de integração e de recuperação nas diferentes situações do planeta. Daí a ótica dos dirigentes e teóricos do imperialismo, de que eu falava há pouco, que considera como operações necessárias e inevitáveis a unificação da força coletiva de trabalho, sua integração às novas mutações tecnológicas, a interiorização pelo conjunto dos indivíduos do planeta, de um certo tipo de relação com a escrita, com a técnica, com o corpo, com o desejo, etc. A crise, vista dessa perspectiva [econômica], não passa de uma crisezinha de nada, um pequeno acidente de percurso, do qual mais cedo ou mais tarde a gente acaba se safando milagrosamente.
Mas essa crise explodiu mesmo, incontestavelmente, a partir de 1974, e desde então a saída do túnel nos é anunciada a cada ano. No entanto, ao contrário, tudo leva a crer que se trata de um desafio, em escala internacional, e para todo um período da História. Crise que poderíamos chamar também de guerra – uma guerra mundial – com a diferença de que não está sendo uma guerra atômica (apesar de essa possibilidade não estar excluída), mas uma sucessão de guerras locais sempre em torno desse eixo Norte-Sul.
E, por fim, o terceiro tipo de atitude. Ao contrário das duas atitudes precedentes, nesse caso considera-se para valer as mutações subjetivas, tanto do ângulo de seu caráter específico, quanto de seu traço comum – trata-se de diferentes formas de resistência molecular, que atravessam as sociedades e os grupos sociais, contra as quais se choca essa tentativa de controle social em escala planetária.
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Texto de 1983 publicado em
Micropolítica: Cartografias do Desejo / Félix Guattari, Suely Rolnik. Petropólis, RJ: ed. Vozes.