FÉLIX GUATTARI NA PUC-SP: Encontro com o Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade (1991)

FÉLIX GUATTARI NA PUC:
Encontro com o Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade,
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP

Encontro realizado e gravado na PUC-SP, em 21 de outubro de 1991, retranscrito, traduzido e editado por Suely Rolnik.

Nelson Coelho Jr. (N.C.): Eu gostaria de retomar uma questão que surgiu muito, no nosso grupo das quartas-feiras de manhã²; uma questão que Renato Mezan havia colocado a você, há quase dez anos, referente à noção de conflito. Naquela ocasião, Renato fez uma pergunta relembrando uma passagem em que você afirmava que não se trata de pensar em termos de conflito, mas de ‘ruptura de agenciamento’, e então perguntou se não poderíamos fantasiar um pouco e colocar, muito freudianamente, que há um conflito a cada ruptura de agenciamento… Complementando, eu gostaria que você falasse um pouco de como você vê a proposição freudiana de que a dinâmica conflitiva é fundamental no entendimento de todo processo psíquico.

[2] Grupo formado por iniciativa de alguns alunos do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, cuja proposta é estudar a questão das formas de subjetivação em geral e examinar, particularmente, o tipo de subjetividade implicada na psicanálise. O grupo contou com a colaboração dos professores do Instituto de Medicina Social da UFRJ, Jurandir Freire Costa, Joel Birman e Benilton Bezerra, e teve uma duração de dois anos, com reuniões semanais. Em seu segundo semestre de existência, o grupo decidiu inserir-se no Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade, fundado naquela ocasião, e se constituiu como modelo de um dos modos de organização dos trabalhos deste Núcleo.

Félix Guattari (F.G.): Podemos observar que o paradoxo das dinâmicas conflitivas, no freudismo, veio como uma cartografia da subjetividade e das relações intersubjetivas, num segundo tempo. Num primeiro tempo da apreensão freudiana, a cartografia traçada em ‘A interpretação dos sonhos‘, precisamente, não engajava dinâmicas conflitivas. Com a noção de ‘processo primário’, há, exatamente, esta ideia de que não existe oposição negativa, de que pode haver sobredeterminação, de que uma coisa pode ser afirmação e negação, ao mesmo tempo. Talvez seja nesta direção que se deva fazer coexistir, simultaneamente, uma conflitualidade molar e uma não conflitualidade molecular. A partir do momento que queremos apreender as relações páticas, as relações de transferência e todas as intensidades de afeto, nos vemos tomados neste paradoxo. Por exemplo, a ambivalência da criança na sua relação com a mãe, marcada pelo amor e pelo ódio, ao mesmo tempo. Se pudéssemos traçar uma trajetória bem esquemática das cartografias freudianas, que iria desde aquele ponto de partida, que implica uma agregação de termos contrários, uma lógica na qual a contradição não entra em consideração, até o termo último de suas cartografias, que consiste na oposição maniqueísta entre as pulsões, sobretudo entre Eros e Tanatos, tenho a impressão que constataríamos que a cartografia conflitiva, de certo modo, sempre entra como uma solução de facilidade, ela sempre entra no mundo das significações dominantes. Em compensação, há todo um problema das cartografias míticas, das cartografias neuróticas, das cartografias estéticas, que tendem a apreender este momento, no qual um objeto não é mais distinto de um outro objeto, no qual não há oposição distintiva, no qual não há linearidade discursiva, no qual não há, finalmente, coordenadas espaço-temporais extrínsecas e nem coordenadas energéticas.

Este questionamento das tópicas e dinâmicas freudianas implica, também, um questionamento do econômico freudiano, do econômico energético.

N.C.: Tudo o que você disse é muito interessante, mas eu ainda estou preso a uma construção que acompanha a obra freudiana inteira, que é a manutenção da dualidade, que pode não existir dentro do inconsciente, no processo primário, mas que existe entre consciente e inconsciente, entre as pulsões, nos vários modelos de pulsão que Freud constrói; e há uma certa dialética presente nesta construção. Para Freud, é impossível pensar a constituição do ser humano sem pensar a ideia de movimento a partir do conflito, que pode ser interno, ou o conflito entre o desejo e um impedimento à realização do desejo, que pode ser de fora.

F.G.: É certamente impossível pensar o ser humano fora de uma lógica do conflito. Mas a questão, talvez, seja a de pensar outra coisa, que não a subjetividade humana, pensar a subjetividade não humana. A questão é saber se queremos modelizar o inconsciente na base da subjetividade inter-relacional, ou se pretendemos fundar uma teoria do inconsciente, do ‘inconsciente maquínico’, na base de focos de subjetivação, que não são humanos, que só se tornarão humanos, antropológicos, num segundo tempo.

A partir do momento em que estamos engajados numa prática social, numa prática terapêutica, numa ordem profissional, numa formação, a tendência é recorrermos a uma referência discursiva, uma referência, exatamente, da ordem dos conflitos, ou da ordem sistêmica. O que eu me pergunto é o seguinte: se quisermos, realmente, nos manter ao alcance da subjetividade em estado emergente, daquilo que eu chamo de ‘subjetividade maquínica’, neste caso, não seria necessário instaurarmos uma espécie de exigência de conceitos reguladores, que nos levem a estar sempre recolocando a questão do que é este ponto umbilical da subjetividade, que escapa à conflitualidade? Encontramos este termo ‘umbigo’, exatamente, em ‘A interpretação dos sonhos‘, no sonho da injeção feita a Irma, em que Freud chega a um termo último, quando ele não tem mais nada a dizer – essa espécie de matéria infectada, no fundo da garganta: focos de sentido, e, ao mesmo tempo, um foco de non-sens. E um limiar intransponível.

Regina Benevides de Barros (R.B.): Em seus textos, encontramos, sistematicamente, o termo ‘dialética’, assim como o termo ‘alienação’, termos que encontramos em textos do marxismo e da psicanálise. Ao mesmo tempo, dialética e alienação são conceitos que você e Deleuze criticam. Então de que dialética e de que alienação vocês falam?

F.G.: É uma questão difícil, porque o fato de existirem relações conflitivas, relações dialéticas, em nível local e regional, não implica, necessariamente, que façamos a promoção de uma Dialética Universal, que subsuma todas as relações dialéticas locais. Por exemplo, em Hegel, há um movimento dialético, que atravessa todos os níveis considerados. Alguém poderia objetar que, quando proponho o conceito de ‘máquina’ – que vai desde as máquinas tecnológicas, materializadas, até as máquinas desejantes, que, precisamente, são desta ordem não dialética —, eu estaria, afinal das contas, propondo um substituto a um conceito transversal a todas as dialéticas. Em todo caso, o que eu tento fazer é retirar o máximo de características universais deste conceito de máquina; tento não fazer da máquina um deus ex machina, seria o caso de dizer… Em minha concepção de máquina, há uma ideia de fazer coexistir níveis de maior complexidade dialética, com níveis de complexidade não dialética, de relações páticas, aquilo que eu chamo de ‘mergulho caósmico’.

Anônimo³: O que é caosmose?

[3] Toda vez que aparecer ‘anônimo’, é porque não foi possível identificar quem está falando. Tendo o gravador ficado próximo a Guattari, em alguns momentos das falas de outras pessoas a audição fica dificultada. 

F.G.: Na palavra ‘caosmose’ há o cosmos, há o caos e há a osmose. Mas, retomando, afinal das contas, eu substituiria a ideia de dialética pela ideia de processo: o processo maquínico parcial, enquadrado em um universo de referência ontológico – aliás, é preferível dizer, aqui, ‘posicionado em um universo de referência’, para reservar o termo ‘enquadramento’ para o nível de encarnação em um território existencial.

Ou seja, não há necessidade da dialética, enquanto tal: pode haver dialética e pode não haver dialética. Consideremos, por exemplo, a pulsão oral: pois bem, a pulsão oral não implica, necessariamente, uma dialética dos investimentos, investimentos imaginários na mãe etc.; a pulsão oral pode, também, fazer uma implosão e não se engajar, absolutamente, numa construção dialética. É o que encontramos no que é descrito por Spitz sobre o hospitalismo, ou na anorexia mental. Não há uma necessidade dialética ligada à pulsão, mas, tomada como componente de um certo tipo de agenciamento, aí pode haver processualidade dialética.

R.B.: E a questão da alienação?

F.G.: É uma questão que está totalmente ligada aquilo que coloquei acerca da dialética, pois a alienação implica a posição de um objeto, a reificação de uma relação e, portanto, a entrada de uma certa estratificação de subjetivação. Então, a questão é menos a da entrada na alienação, que é muito geral, mas, sim, a dos procedimentos, das condições de possibilidade, para se extrair da alienação; a questão é a de encontrar aquilo que permita a revelação de linhas de fuga, de linhas de processualidade. Quando eu avanço noções deste tipo, não estou propondo descrições com pretensões científicas — repito sempre isto, e acho que vou repeti-lo até o fim de minha vida. Eu, apenas, tento ajustar, à minha maneira, os diferentes modos de cartografia existentes; assim, a cartografia marxista da alienação e a cartografia psicanalítica do conflito são, para mim, dados de fato. A questão, para mim, não é dizer se estas cartografias são falsas ou verdadeiras, mas como elas podem articular-se numa prática, como se pode dar um lugar, por exemplo, para aquilo que Freud chamou de ‘pulsão de morte’, a pulsão de repetição, esta espécie de recusa intensiva de entrada, um processo, que é, exatamente, dialético. Foi um incrível ato de violência da parte de Freud afirmar uma pulsão de morte: é um ato de coragem cartográfica, correndo o risco de se colocar em uma posição de incompreensão por parte de toda a população psicanalítica; mas, é a exigência, exatamente, de descrever esta espécie de sistema de engajamento implosivo, no qual a pessoa recusa o bem, o bom, o belo, o ‘tudo vai melhorar’, e diz: “Não! Eu estou numa repetição neurótica e vou ficar nela! Vou morrer disso e isso não tem a menor importância, é nisso que estou”. E essa espécie de objeto estranho que chamei de caósmico, contra o qual Freud se chocou, durante toda a sua vida, e contra o qual chocam-se todos os terapeutas, efetivamente; num certo sentido, é um objeto impensável, mas que tem que poder ser pensado de alguma maneira. Lacan o tinha pensado com o termo ‘queda do objeto a’, que o analista, no fim de uma análise, é rejeitado como uma merda. É uma saída feliz.

N.G.: Se eu entendi bem, a passagem não é simplesmente de um pensamento que trabalha com a dualidade, para um pensamento que trabalha com a multiplicidade. A questão é poder trabalhar em diferentes níveis, em que a dualidade é um dos níveis: há momentos de monismo, outros de dualidade, e outros de pluralidade.

F.G.: Não há níveis de imanência, em si. O que há, são movimentos de imanência, a partir de pontos de transcendência, de pontos de dualismo, mas não há nunca uma acumulação de imanência, uma capitalização da imanência. Numa conversa, ontem à noite, com Paulo Cesar Lopes e Suely Rolnik, eu dizia que, deste ponto de vista, há um movimento de imanência permanente, em qualquer relação terapêutica, que implica estar sempre colocando a impostura, a impostura analítica: se não se mostra essa impostura transcendente, o movimento de imanência se torna impossível.

Suely Rolnik (S.R.): Guattari dizia, nessa conversa, que a atitude do analista para ele, é um misto de empatia e impostura…

Anônimo: O analista enquanto lugar da transcendência, para que a imanência possa se dar?

F.G.: O analista ocupa o terreno.

Anônimo: … A clínica seria algo que produziria uma implosão sistemática de sistemas…4?

[4] A pergunta está incompleta, por deficiência de gravação (cf. nota 3). 

F.G.: Não creio que se possa atribuir à clínica, ‘A Clínica’, com C, maiúsculo, esta descrição do processo de imanência. Precisamente porque não há ‘uma’ clínica: há estratificações clínicas, há estratificações ‘personológicas’, estratificações intersubjetivas, estratificações microssociais, estratificações institucionais. E cada uma delas tem seu próprio registro ecossistêmico, o que faz com que sempre se esteja tomado num papel, numa alienação (…)5 que implica, principalmente, referências nosológicas e cartográficas, as quais sempre arranjam um lugar para esta lógica – não sei como qualificá-la… esta lógica das intensidades, em relação à lógica do conflito —, o que implica atitudes perfeitamente contraditórias; isso faz com que, por exemplo, em relação a um paciente, se possa ter uma certa atitude diretiva, na instituição – dizer-lhe que tem de fazer isso ou aquilo, visitar seus pais, tomar um remédio etc. — e, ao mesmo tempo, arranjar um lugar para um outro nível de subjetivação, no qual não somente não se tem nenhuma diretiva “a dar mas, no limite, não se tem absolutamente nada a dizer.

[5] Neste trecho, fica faltando uma passagem, que não pôde ser reconstituída, porque a gravação é interrompida, ao final de um dos lados da fita. 

Anônimo: É por isso que se pode dizer qualquer coisa?

F.G.: Infelizmente não se trata de dizer qualquer coisa. É muito difícil dizer qualquer coisa. Os poetas podem trabalhar, às vezes, durante toda a sua vida, para conseguir dizer qualquer coisa, sem consegui-lo, os enunciados se encadeiam uns aos outros, se impõem uns aos outros. Eu gostaria de poder estar dizendo a vocês qualquer coisa, mas tenho a Suely a meu lado, e não sei o que estou respeitando, aqui… Talvez, vocês pudessem falar, um pouco, das diferentes posições que vocês ocupam, dos problemas que vocês se colocam…

Edson Castro (E.C.): Em seu texto ‘Paradigma estético6, há muitas colocações que parecem ter a ver com a análise existencial de Heidegger, sobretudo considerações de Heidegger tomadas por Merleau-Ponty. Qual é a relação que se pode estabelecer entre elas?

[6] Original, na ocasião, do texto que, ampliado e transformado, foi inserido, posteriormente, no livro de Guattari Caosmose – Um novo paradigma estético (Rio de Janeiro, Editora 34,1992), com o título ‘O novo paradigma estético‘. 

F.G.: Você poderia desenvolver um pouco mais a tua pergunta?

N.C.: A gente estava conversando, aqui, sobre esta aproximação. Um primeiro aspecto, é uma certa disponibilidade do analista, para se colocar em relação ao paciente, que é diferente de uma postura analítica rígida. Um outro aspecto, é que a descrição que você fazia, há pouco, do sonho da injeção de Irma, referindo-se a um limiar intransponível, me faz lembrar a noção de chair, de carne, em Merleau-Ponty, em ‘O visível e o invisível‘. Aliás, na introdução que Marilena Chauí faz a alguns textos de Merleau-Ponty, para uma edição brasileira, ela diz que estes textos finais de Merleau-Ponty foram determinantes para o pensamento francês que viria a seguir, como o de Foucault, o de Deleuze e o seu. Isto é verdade?

F.G.: Não sei o que dizer. Eu gostava muito de Merleau-Ponty. Eu frequentava seus cursos. Eu tinha um sentimento, e acho que era verdade, que Merleau-Ponty me olhava. E, aí, uma vez, ele declarou: “Sabem, quando eu olho alguém na plateia, isso não tem nenhum sentido particular”. Eu sempre me senti olhado por Merleau-Ponty… Bem, mas isto é uma anedota.

Há, talvez, um pudor fenomenológico, que pode, às vezes, confinar uma inibição. Me parece que na análise existencial, e também nas abordagens fenomenológicas da psicose, há sempre uma recusa a se arriscar — arriscar-se, por exemplo, na narrativa do outro. O que me faz ser um pouco distante, um pouco desconfiado, em relação aos analistas fenomenológicos, é que sempre temo que eles não vão até os pontos de artificialidade, que caracterizam os pontos de subjetivação. É muito difícil, por exemplo, fazer uma descrição fenomenológica de certos fenômenos de subjetivação extraordinários, como foram o nazismo, o maoísmo ou o khomeinismo. Assim como nos sistemas neuróticos, temos acesso, aqui, a máquinas monstruosas, extraordinariamente artificiais, mas que constituem, efetivamente, pontos de subjetivação, pontos de heterogênese. E, se nos proibirmos o acesso a estas máquinas de subjetivação, às montagens perversas que encontramos, por exemplo, na infância, o papel das histórias em quadrinhos etc., estamos deixando de lado meios de acesso pragmáticos que permitiriam, precisamente, libertar linhas de fuga, de que eu falava anteriormente.

Se vocês considerarem o caráter realmente não fenomenológico das descrições das terapias sistêmicas, de que falei da última vez que estive aqui, o primeiro reflexo que vocês terão será o de dizer: isso é uma bobagem, não tem fundamento nenhum, é uma fabulação; é este, frequentemente, o primeiro movimento que se tem, quando se vê o vídeo, a simulação. E, no entanto, é por meio desta cena artificial, deste teatro mítico do sistemismo, que, efetivamente, podem advir bifurcações, remanejamentos, que não são remanejamentos estruturais, mas remanejamentos de agenciamentos. Resumindo, tenho sempre um pouco de medo de que o rigor fenomenológico sirva de barreira, de recusa, a se lançar nos movimentos de subjetivação, naquilo que eles têm de mais artificial, e, talvez, de ainda acabar fazendo reificações conceituais. Penso, por exemplo, nas categorias de Minkowski, aquelas de sua descrição da psicose, que, afinal das contas, não são tão operacionais.

E.C.: … sobre a questão do sujeito e do entorno…7

[7] Cf. nota 4. 

F.G.: Eu faria uma ressalva em relação ao termo ‘entorno’, a não ser que em ‘entorno’ você coloque também ‘interno’8, aí tudo bem.

[8] Em francês, entourage e interage, neologismo que Guattari cria, aqui, utilizando-se de uma homofonia, que não existe na tradução destas palavras para o português, na intenção de ressaltar a ideia de que não há um dentro e um fora. 

R.B.: Vou colocar uma questão sobre a transferência. Em um texto de 1974, ‘Transferência institucional9, você propunha que, no lugar de ‘transferência’, se usasse o conceito de ‘transversalidade’. Em um texto do ano passado, ‘A produção da subjetividade10, você fala de ‘transplante de transferência’. Por outro lado, você tem uma proposta de pensar a subjetividade como grupo e sempre trabalhando em grupos também. Como você ligaria a questão da transferência, da multiplicidade e do grupo?

[9] Texto publicado, no original, no livro Pshychanafyse et transversalité (Paris, Maspero, 1972), e que, no Brasil, integrou a coletânea de textos de Guattari, organizada por Suely Rolnik, intitulada Revolução molecular, pulsações políticas do desejo (3- ed., São Paulo, Brasiliense, 1986)
[10] Cf. nota 6. 

F.G.: Vou repetir o que estava dizendo, há pouco: há um nível de produção de subjetividade nos grupos, principalmente em grupos que se constituem como autopoiéticos, ou grupos sujeitos, e que marca uma entrada possível, uma entrada necessária, em remanejamentos de agenciamentos de subjetivação. Mas não penso ter dito, alguma vez, que o grupo seria um componente absolutamente prioritário, uma mediação necessária; é um componente entre outros, entre os componentes estéticos, os componentes de sugestão, os quais eu relacionaria, no rastro dos trabalhos de Chertok e Stengers11, à hipnose, mas também à transferência. Não acho que dá para perseguir a sugestão e a transferência como se fossem um pecado original, o pecado da psicanálise. A partir do momento em que há esta relação de poder singular que se encarna entre alguém que trata e alguém que está sendo tratado, é evidente que há relações de transferência e de sugestão. O problema não é o de negá-lo, como fazem os psicanalistas estruturalistas, dizendo: “eu nunca toco na sugestão”, pois de qualquer maneira, estamos dentro; o problema é saber o que fazemos com isto. Aí é que a questão da transversalidade se coloca, ou aquilo que eu chamava, no início, de ‘movimento de imanência’. Como é que podemos estar funcionando em diferentes quadros, ao mesmo tempo? Como é que podemos estar em várias cenas, ao mesmo tempo: uma cena de transferência, uma cena de grupo, uma cena da produção estética, no sentido amplo – por exemplo, a massa de modelagem da sra. Pankow -, e, além disso, algo que não é uma cena, que é a implosão da cena, aquilo que estou chamando de caosmose, que é a possibilidade de que um território existencial se constitua, por meio destes componentes heterogéneos?

[11] Guattari refere-se ao livro de Leon Chertok e Isabelle Stengers, O coração e a razão – a hipnose de Lavoisier a Lacan (Rio de Janeiro, Zahar, 1990).

Felícia Knobloch (F.K.): … poderíamos dizer que, no momento traumático, haveria duas possibilidades: a implosão da cena ou o seu congelamento? ..12

[12] Cf. nota 4.

F.G.: Eu colocaria o traumatismo mais do lado da ‘reterritorialização’, isto é, o momento, como você diz, em que a cena se congela, em que um ritornelo complexo se cristaliza, fazendo um trabalho que absorve toda a existência, que destrói toda a heterogênese, que homogeneíza toda a subjetividade, pelo fato de não haver linhas processuais, de não haver , precisamente, linhas de expressão de heterogênese que se proponham aí. Sempre vejo o traumatismo mais como uma construção, do que como alguma coisa sofrida. Se vocês me permitem usar uma fórmula paradoxal, eu diria que ‘cada um tem o traumatismo que merece’.

S.R.: Alguns de nós, no Núcleo, principalmente a Felícia, têm trabalhado com a questão do trauma, e uma das ideias é a de que o trauma seria uma construção defensiva contra o choque da heterogênese…

F.K.: Não há processualidade porque o tempo é o da atualidade?

F.G.: É isto.

F.K.: … pensando no trabalho com a psicose (…). O trabalho não seria, exatamente, o de entrar neste tempo, para retomar este outro tempo da heterogênese?13

[13] Idem.

F.G.: O que faz esta temporalidade fechada sobre si mesma, esta homogênese, esta perda da diversidade dos sistemas de valorização, esta valorização furiosa de um fantasma, de uma representação, é uma perda geral de consistência do agenciamento: nos agarramos, por exemplo, num sistema repetitivo, para conjurar a angústia de uma perda de consistência. Mas, precisamente, este tempo de vibração da perda de consistência, que se reifica no trauma ou no sintoma, é também a marca, o índice, de uma caosmose possível. A este respeito, volto a algo que eu já havia proposto, há muito tempo, que é a recusa de uma palavra de ordem psicanalítica tradicional, que consiste em colocar o sintoma como algo de secundário, como algo que não se deve trabalhar. Eu penso, ao contrário, que o sintoma ou o trauma podem constituir um foco a ser trabalhado.

F.K.: Num texto de Peter Pelbart, ‘A nau do tempo-rei14, ele coloca que se trata de retirar as barricadas colocadas contra o tempo e colocá-las no tempo.

[14] Texto que integra a coletânea do autor A nau do tempo-rei: sete ensaios do tempo da loucura (Rio de Janeiro, Imago, 1993). 

F.G.: O Peter precisa me dar este artigo para ser publicado na Chimères15

[15] Chimères – revue de schizoanalyses, é a uma revista trimestral, dirigida por Gilles Deleuze e Félix Guattari, publicada no início (1987) pela Éditions Dominique Bedou e, posteriormente, pela Éditions de la Passion, Paris. 

S.R.: Vou colocar uma questão que tem a ver com o que estamos conversando. Você propõe uma clínica que você chama, em alguns momentos, de uma ‘psicanálise futurista’ e/ou ‘construtivista’, na qual se trata, principalmente, de viabilizar a construção do futuro, o que passa por sair da reificação e possibilitar a heterogênese: a atualização de linhas de virtualidade e a tomada de consistência de territórios existenciais. No quadro desta tua proposta, qual o estatuto do passado?

F.G.: Eu atribuo esta história de falar do passado a um inevitável compromisso cartográfico. Quando um analista está com um paciente, alguma coisa tem que acontecer, eles têm que falar de alguma coisa. Tanto o analista como o paciente tiram coisas do bolso: “Do que eu poderia falar? Poderia falar de minha infância, por exemplo, contar meus traumas…”, isto alimenta a conversa, é essencial alimentar a conversa, e isto não é absolutamente formal, pois desta exploração pode nascer muita coisa, mas, simplesmente não precisa fazer disso uma necessidade dialética, uma via de passagem obrigatória. Na psicoterapia da psicose, por exemplo, podem acontecer muitíssimas coisas, fora de qualquer elaboração de anamnese. E o mesmo com as neuroses. Na psicoterapia institucional, se pode muito bem evitar, até sistematicamente, voltar ao passado, retomar todas as histórias que aconteceram na família etc., e todas essas coisas… É uma outra via de passagem. Na terapia de família, ao invés de falar de passado…16

[16] Cf. nota 5.

… como fazem os atores quando improvisam, que é também matéria de subjetivação, absolutamente importante. Não vejo nenhum inconveniente em que se encarne uma situação terapêutica em um registro ou em outro. Só não acho oportuno ‘cientifizar’ as cartografias que se colocam. Por que? Porque podemos sempre dizer “se faço isto, se digo isto, é porque me sinto seguro, me sinto como uma espécie de sábio”. Sempre me espantei com os psiquiatras que vestem um avental branco, nos hospitais psiquiátricos: eles põem o avental branco porque se sentem mais protegidos em seu avental. E tudo isso é possível, você pode também colocar um avental branco psicanalítico, desde que, simplesmente, este avental branco seja transparente e não impeça o movimento da caosmose, esse movimento de relação pática. É por isso que, voltando à questão de Suely, sobre o estatuto do passado na análise, eu aceito inteiramente que se assuma procedimentos psicanalíticos clássicos – mais uma vez, é uma maneira de falar, de dizer coisas, de se interessar pelo outro… —, mas isso não pode virar um véu, que instaure uma relação de opacidade, que impeça de captar pontos de singularidade, pontos de non-sens, porque a anamnese, se ela vira explicativa, ‘causalista’, ela cria, de certo modo, uma relação de alienação.

S.R.: Se entendi bem, no quadro do que você coloca, estaria implicada uma redefinição do sintoma, em que, por um lado, você estaria revalorizando o trabalho com o sintoma e, por outro lado, apontando que este trabalho não passa, necessariamente, por aquilo que poderíamos chamar de uma anamnese. É isso?

F.G.: Sim, é que o sintoma freudiano está sempre ligado a esta dimensão de historicidade do sujeito. Efetivamente, talvez fosse preciso fazer uma outra descrição do sintoma, em termos de agenciamento perdendo consistência, em termos de ritornelo existencial, em termos de cristalização ontológica, que não está centrada no indivíduo, que se encontra no cruzamento de componentes, que podem ser transindividuais, que podem ser pré-individuais e que implicam a posicionalidade de universos incorporais. Portanto, se trata de colocar em compossibilidade, de um lado, o sintoma em sua função de conjuração caósmica e, de outro lado, o sintoma como índice de campos de possibilidades.

S.R.: Lembro que quando fiz minha primeira sessão de análise, com Guattari, quando eu tinha uns vinte anos e morava na França, deitei no divã e comecei a falar de minha infância… Guattari me interrompeu e disse “Quem foi que te falou que isto me interessa?”… Estou contando essa historinha meio anedótica para dizer que, em minha experiência como analista, constato que o recurso ao passado, muitas vezes, entra como uma espécie de discurso oco, que cumpre uma função defensiva. Claro que não dá para generalizar, falar do passado pode ter muitos sentidos…

F.G.: É, a anamnese não tem, necessariamente, esse sentido defensivo. Se ela funciona no sentido de uma pulsão ‘causalista’, aí entramos num sistema interpretativo, no qual tudo remete a papai-mamãe, à castração etc., e, afinal de contas, é como se vedássemos as portas e as janelas. Mas uma elucidação de anamnese pode, também, revelar intensidades poéticas, questões que ficaram suspensas desde a infância e que podem se tornar material heterogenético.

S.R.: Como se passa, por exemplo, com Proust, com sua Recherche du temps perdu?

F.G.: Exatamente.

Doralina Rodrigues Carvalho (D.C.): Quando se quer pensar a questão do sujeito, e se está habituado a pensar a constituição do sujeito, nos termos do encontro primeiro entre a mãe e o bebê, do Édipo, enquanto seguimento desta constituição, da oposição inconsciente versus consciente (…)17  fica muito difícil, pelo menos para mim, pensar em termos do trabalho que você nos traz, enquanto uma percepção em relação ao sintoma, por exemplo, que não esteja caindo numa psicologia do ego. Talvez fosse o caso de você nos falar, um pouco, sobre o rompimento básico que você faz com esta concepção do trabalho psicanalítico.

[17] Cf. nota 4.

F.G.: Não entendi direito… Ninguém é obrigado a romper… Se funciona assim, tudo bem. (Risos.)

D.C.: Não é tão simples assim, porque a gente tem se colocado questões, que para nós são muito importantes, e para as quais o teu trabalho parece trazer uma contribuição interessante; mas é preciso que a gente possa compreender, minimamente, o que você propõe, para que se possa divisar, ao longe, a possibilidade de uma nova prática.

F.G.: O problema não se coloca num nível especulativo.

D.C.: É que estou sofrendo em tentar entender, estou angustiada, aflita… (Risos.)

F.G.: Eu imagino, por exemplo, que se a gente se utilizar da cura-padrão da psicanálise, para lidar com drogados, psicóticos ou crianças desajustadas, com certeza, terá do que ficar muito angustiada, e aí, sem dúvida, deve valer a pena procurar outra coisa. O que é que te angustia na tua prática?

D.C.: Me angustiei, por exemplo, quando você trouxe esta tua concepção de sintoma. Como não ver aquilo que está por trás do sintoma se, do ponto de vista psicanalítico, o sintoma é entendido como uma formação do inconsciente, e é assim que ele é trabalhado? Que deslocamento é este que a questão do sintoma sofre na tua concepção, tanto do ponto de vista do analista, quanto do ponto de vista do paciente?

F.G.: É como se o analista se sentisse culpado, por não ver o que há atrás do sintoma. De um modo geral, ninguém sai ganhando, se o psicanalista ou o paciente se sentirem culpados. O que eu dizia, no início, é que, em primeiro lugar, não podemos nos impedir de ver coisas atrás das coisas. Em segundo lugar, temos que admitir que, geralmente, atrás da porta não há nada, ou mais exatamente, temos que partir de uma posição de que pode não haver nada atrás e, sobretudo, de que não há uma cadeia inconsciente cristalizada no Grande Outro. Como disse Lacan, muito justamente: o inconsciente é um conceito e não uma coisa, não há um inconsciente atrás das coisas. Então, a questão é a de saber, em qual movimento se vai posicionar este conceito de inconsciente. Se tenho um sintoma — por exemplo, roer unhas, ou ter cãimbras no estômago -, junto com isso, tenho também um ambiente deste sintoma — por exemplo, se tomo um Pernaud, me afasto deste meu sintoma, e então há um par que se forma com o Pernaud e o sintoma; ou se alguém entra na sala, tomo cuidado para não roer as unhas… O sintoma habita um território existencial. Sinceramente, acho que é só isso. E aí vou consultar um psiquiatra ou um psicanalista e, no seu olhar, algo diz “Ah , sim, isto é um problema, é interessante”. Com isso, já muda o território existencial do sintoma. É interessante que alguém ache interessante meu sintoma, mas até um certo ponto, senão não se sai mais disso, fica-se passando de um subúrbio para outro, incorpora-se o psicanalista ao sintoma, atribui-se isto à transferência — em última instância, o que acontece, é que o sintoma muda de cor. E daí?

Então, aquilo de que o sintoma é portador, ou mais fundamentalmente, aquilo que está atrás do sintoma, é nada, é o movimento do nada, é o movimento da caosmose, que faz com que se esteja, ao mesmo tempo, no tudo e no nada, na complexidade e no caos. Mas isto é tão insuportável para o paciente quanto para o psicanalista – a rigor, é até mais insuportável para o psicanalista, porque o paciente vive com isso o tempo todo, e se ajeita com isso, enquanto o psicanalista tem um monte de distrações.

Anônimo: Você estabelece uma diferença entre o nada e a falta?

F.G.: Completamente. Primeiro, nunca digo ‘o nada’, estou dizendo isso, assim, porque é uma conversa, pois o nada é uma palavra que já é um a mais. Quanto à falta, ela é sempre falta de algo, a falta posiciona, em uma vaga, um objeto, ela sinaliza algo, relações de valorização… Neste movimento que chamo de caosmose, não há diferença entre um objeto e um outro objeto, entre o eu e o outro, entre o ‘signo’, o ‘representante’, e o ‘interpretante’, para retomar as categorias de Peirce. Aliás, precisamente, na descrição de Peirce, há a ideia de um certo nível, aquele primeiro nível de que ele fala, a ‘primeiridade’, no qual há esta apreensão caósmica. Mas, há algo de insuportável neste ponto de existencialização – insuportável, no sentido literal, de que não há nada a suportar -, não há suporte elementar da caosmose, só há expressões derivadas, expressões complexas, que tendem a posicioná-la em seu movimento e, ao mesmo tempo, a deformá-la radicalmente, a neutralizá-la, a conjurá-la. Esta experiência, nós a temos, apesar de tudo, ela nos habita, permanentemente: é aquele abismo de perda de sentido, em traumatismos como o luto, a catástrofe esquizofrênica, o sentimento de perda de ligação, de perda de relação com o mundo. Então, os dispositivos psicoterapêuticos tenderão sempre a funcionar no sentido deste ritornelo complexo, como uma espécie de curativo na caosmose; porém, neste movimento de ‘curativo-pensamento’18, há também o risco de uma perda de eficiência diagramática radical.

[18] Guattari joga, aqui, com um duplo sentido, utilizando-se de uma homofonia dos radicais das palavras pansement (curativo) e pensée (pensamento), em francês. Não foi possível encontrar, em português, uma fórmula de tradução que reproduzisse este duplo sentido.

N.C.: Na leitura que fizemos, no Núcleo, de teu texto ‘A produção de subjetividade‘, um dos pontos que discutimos é aquele em que você afirma que os movimentos de subjetivação não são sempre emancipatórios. O que eu gostaria de discutir é esta questão do que é o emancipatório, e de que forma podemos falar disto, sem cair numa posição idealista, como às vezes podemos ver em Sartre. Evocando novamente Merleau-Ponty, ele coloca a questão da liberdade, nos seguintes termos: a gente nunca está completamente perdido e, ao mesmo tempo, jamais completamente salvo. Então poderíamos discutir um pouco o que é ‘emancipação’, e o que seria o emancipatório, em tua filosofia?

S.R.: Quero agregar a esta pergunta, algo que me ocorreu, ao ler, recentemente, uma entrevista de Roudinesco, na qual ela diz que deveríamos ‘incluir’ na questão do inconsciente, a questão da liberdade, tomando o conceito de liberdade em Sartre… Ora, esta proposta me parece questionável, primeiro, por aquilo que Nelson levantou, ou seja, de que a reivindicação da liberdade, dependendo da concepção que se tem disso, pode implicar uma posição idealizadora, e, exatamente, em Sartre, parece que isto acontece. Mas nem é isto o que me parece mais questionável nesta proposta, e sim o fato de que, a meu ver, o próprio conceito de inconsciente nos permite colocar este tipo de questão, o que não caberia desenvolver aqui, mas o que me interessa ressaltar é que ele nos permite fazê-lo, exatamente, rompendo com qualquer espécie de idealização. Este, aliás, me parece ser um dos efeitos mais disruptores da psicanálise, e talvez dê até para dizer que é nele que reside a sua condição de ‘peste’, de que nos falava Freud. Por isso, não me parece que se trate de colar ao conceito de inconsciente um pedaço que lhe estaria faltando, para que ele possa dar conta desse tipo de questão. Quando isto acontece, é porque, provavelmente, o conceito de inconsciente com o qual estamos trabalhando é que tem que ser revisto. Para mim, se trata de ter uma concepção de inconsciente que nos permita colocar este tipo de questão, como é o caso, por exemplo, da concepção trazida por você e Gilles Deleuze.

N.C.: E neste sentido, a palavra ‘emancipatório’ pode correr o mesmo risco que acontece com a palavra ‘liberdade’, neste exemplo que Suely apontou…

Anônimo: Nesta mesma linha, eu gostaria de acrescentar uma outra pergunta: como você colocaria esta questão da emancipação, com relação ao trabalho que vocês desenvolvem em La Borde?

Paulo Cesar Lopes (PJL.): Me interessaria que você, se possível, falasse um pouco também da relação entre a questão da emancipação e o plano de imanência…

F.G.: É um pouco como uma cartografia pré-cristã, uma cartografia dos deuses gregos. Temos as nossas ‘entidades’, a partir das quais tentamos reconstruir desde o que avaliamos como sendo o pior no mundo, até aquilo que nos parece constituir os valores aceitáveis. Se vocês tomam, por exemplo, os valores do século XVIII (…)19, por outro lado, vocês têm a máquina infernal de Sade; e ele tentava fazer com que tudo isso se mantivesse junto. Quanto às minhas entidades, no ponto em que estamos, parto da ideia de um movimento de desterritorialização irreversível, de uma aceleração incontrolável, cada vez mais disparada. Nesta aceleração, a gente sempre constrói prelúdios reterritorializadores, a gente se agarra nos galhos, e neste movimento de agarramento territorial, instaura-se tudo quanto é possibilidade de fascismo e de microfascismo, é o “Parem com isso! Parem com isso! Aonde é que vamos chegar? Fiquemos com nossos valores transcendentes do passado!” etc.

[19] Cf. nota 5.

Eu já fui muito sartreano, quando eu era jovem, quando eu era criança; para mim, o que faz a distinção entre a desterritorialização e a nadificação sartreana, é que o Nada, como a Falta, aparece como uma categoria universal, enquanto a desterritorialização é uma categoria muito mais processual, implicada na história natural, na história histórica, na história humana. As vicissitudes da história estão tomadas no movimento de desterritorialização, e eu postulo um motor desta desterritorialização, com o conceito de ‘máquina’, de ‘máquina abstrata’, o que não encontramos em Sartre, nem no conceito de techné heideggeriano.

Então, o que seria ‘progressista’, entre aspas? Seria levar as linhas de desterritorialização, até o limite do tolerável, assim como levar a construtividade, o barroquismo existencial, até seus limites de possibilidade. Hoje, assistimos ao desabamento de todas as antigas territorialidades existenciais, dos antigos enquadres ideológicos, e a ascensão de reterritorializações fanáticas, tais como a reterritorialização do mito do mercado mundial ou as reterritorializações religiosas – que, para mim, são uma só e mesma coisa, pois, de um lado, temos a homogênese de todos os valores e, de outro lado, temos a promoção de valores transcendentes arcaizantes, como conjuração deste movimento de homogênese de valores. Então, como agenciar um progressivismo da desterritorialização? Isto não é da alçada de um programa geral – nem de um programa filosófico, como o de Hegel, nem de uma programação política e social, como a de Marx -, mas de uma instauração de máquinas específicas singularizantes, que trabalhem a desterritorialização, em cada um de seus níveis de consciência, o que faz com que, por exemplo, uma reterritorialização psicótica no delírio, na alucinação etc., possa estar numa posição de desterritorialização relativa num campo familiar, num campo social etc. Um outro exemplo: a reterritorialização reacionária de Celine, com seus temas racistas insuportáveis, funciona no quadro de uma máquina literária, que é fundamentalmente desterritorializante. Portanto, não temos um uso maniqueísta de uma boa reterritorialização progressista, oposta a uma reterritorialização reacionária malvada (há até uma dialética necessária entre os dois movimentos), mas sim a produção de máquinas existenciais, cuja única prova de ‘verdade’ — entre aspas, porque não é da verdade que se trata, aqui – é a prova da produção existencial, da produção ontológica, ou seja, que o movimento de desterritorialização encontre sua afirmação, suas relações de transversalidade, de fecundação maquínica recíproca. É mais ou menos por aí.

Com respeito a La Borde, somos tomados, sem parar, por este tipo de contradição, que desemboca em fórmulas esquemáticas, paradoxais e aproximativas, do tipo, por exemplo, de que quando um ateliê funciona bem, é que, provavelmente, ele não serve para nada, que ele, talvez, tenha sido tomado em um limiar de desterritorialização, e que isto esteja impedindo a emergência de algumas linhas de fuga…

Anônimo: … uma pessoa que está internada em La Borde, pode ir ficando lá se ela quiser…20

[20] Cf. nota 4.

F.G.: Depende, não há fórmulas gerais, não há provas de verdade transcendente. É necessário apreciar, em cada tipo de agenciamento, o que é o movimento intensivo, específico, daquele agenciamento, com suas escaladas, suas paradas, suas implosões, suas retomadas. E isso que estou dizendo sobre La Borde, pode ser dito sobre uma cura psicanalítica: uma cura psicanalítica que fica ronronando, talvez não sirva para nada; também, uma organização política que vai indo muito bem, talvez não sirva para absolutamente nada.

Maria Amália J. Penedo (M.P.): Na linha do que estamos discutindo, eu gostaria que você falasse um pouco sobre o papel da mídia, como agenciamento de enunciação, de como ela estaria contribuindo para a homogeneização e não para a heterogênese; é preciso se colocar este tipo de questão, porque a mídia existe, é um fato cultural, que não se trata aqui de qualificar como bom ou mau, mas que influi no processo de subjetivação, que pode ser tanto de emancipação e singularização, quanto de homogeneização…

F.G.: Eu tinha o hábito, quando vinha ao Brasil, de dizer as piores coisas a respeito da Rede Globo e coisas assim, e depois, recentemente, li em algum lugar, não me lembro bem em que lugar, um elogio extraordinário à Globo, dizendo que seus programas eram muito ricos etc.; bem, aí fiquei um pouco desorientado… Tudo deve depender do ponto de vista no qual a gente se coloca, e os pontos de vista são múltiplos: há, ao mesmo tempo, esta homogênese da subjetividade, operada pela televisão, este caráter de droga, o efeito de sugestão, mas, sem dúvida, há, também, em um nível inconsciente, processos transversalistas que se operam, máquinas abstratas que se veiculam, o que faz com que, talvez, o futuro das transformações sociais, o engajamento de milhares ou centenas de milhares de jovens, e não só de jovens, para modelar um outro tipo de sociedade, será talvez impossível, sem este instrumento veiculador que representa a televisão. Em todo caso, no atual estado de coisas, a mídia funciona como um temível instrumento de reterritorialização, a gente vê isso, constantemente, nos Estados Unidos, na Europa. Mas a mídia é, também, um instrumento maquínico, uma máquina de subjetivação e, enquanto tal, ela é tomada em phylum maquínicos. Então, não há só as diferenças de ponto de vista sobre a mídia, o uso psicológico e social que se faz dela, mas há também as mutações tecnológicas, que constantemente trabalham o instrumento da mídia. Tudo o que se passou nos países do Leste, a imensa mutação subjetiva que derrubou os regimes neo-stalinistas, seria incompreensível se não considerássemos a intervenção da mídia; mas, também, correlativamente, mutações tecnológicas permitiram esta difusão dos instrumentos de recepção da mídia. Regimes ditatoriais dos países do Leste implodiram, porque não acompanharam as transformações tecnológicas, relativas à mídia, à informática, à telemática etc. — em especial, o exército soviético, que estava num atraso considerável, em relação a todas estas mutações tecnológicas. Um outro exemplo, é uma indagação que se tem hoje, na França, principalmente em certos meios, acerca do falocratismo, da condição de alienação das mulheres, nos países do Magreb. Há uma inquietação por se imaginar que possa acontecer, novamente, um integrismo, do tipo iraniano, que vai submergir os países da África do Norte. Mas há, também, a difusão das televisões ocidentais, com as antenas parabólicas, que intervém nesta história, como componentes heterogenéticos. E depois, podemos pensar que vai nascer um novo tipo de subjetividade — não só em nível cognitivo, em nível afetivo, em nível sensível —, com a fusão, com a junção das telas da televisão, da informática e a da telemática, com possibilidades cada vez mais ricas de interatividade, e que isso vai mudar, inteiramente, o quadro da situação alienante da mídia. O zapping entre sessenta canais de televisão, com interatividades possíveis para a compra, para a encomenda de programas, muda a situação, e não de modo mecânico. Penso, por exemplo, nos CD interativos, que estão saindo: fiquei muito impressionado com as escolhas tecnológicas que foram feitas; pensar que os CD interativos autorizam, tecnologicamente, meios de interação inteiramente extraordinários, e a escolha foi a de utilizá-los unicamente para um certo tipo de jogo, um certo tipo de programa cognitivo, ligado a determinadas situações, para que o CD interativo tivesse o máximo de expansão no mercado. E a ideia de que um CD interativo pudesse ser utilizado, por exemplo, no Núcleo de vocês ou em La Borde, em coisas deste tipo, não passa, porque este não é um mercado promissor. Tudo isso para dizer que as mutações tecnológicas são um componente importante, mas há também outros componentes, por exemplo, como grupos singulares podem se apropriar destas mutações tecnológicas. Talvez, poderemos um dia imaginar psicanálises feitas com CD interativos: colocaremos os traumas, os sintomas, poderemos compô-los uns em relação aos outros, imaginar roteiros alternativos, enfim…

Angela Santa Cruz (A.C.): Tenho uma certa dificuldade para lidar com os teus conceitos…

F.G.: Eu também… (Risos.)

A.C.: … mas vou tentar falar do meu jeito. Uma coisa que tem me preocupado muito, é tentar encontrar instrumentos adequados para a compreensão de coisas da realidade, da prática. Neste sentido, algumas colocações tuas e de Deleuze, às vezes, me parecem ser a possibilidade de radicalizar aquilo que Freud dizia, no começo, no texto ‘Psicologia das massas e análise do ego‘. Às vezes, me parece encontrar, no trabalho de vocês, alguns instrumentos importantes para pensar as montagens da subjetividade, possíveis em diferentes contextos. É o seguinte: o que tem me incomodado muito, é que tipo de territórios existenciais é possível construir hoje, num panorama como o do Brasil? Em que Brasil estou pensando? Penso num Brasil que se, por um lado, sempre se definiu como tendo aquilo que chamamos de ‘jeitinho brasileiro’, esse mesmo jeitinho brasileiro, hoje, é entendido como um traço perverso, o jeitinho brasileiro foi transformado naquilo que chamamos de ‘lei do Gerson’. Uma matéria que eu li ontem, na Folha de S. Paulo, trazia um dado difícil de acreditar: 69% da população de São Paulo mora em cortiço, ou em favela, ou embaixo da ponte…

S.R.: Vale a pena esclarecer que este número, que inclui também moradias que não possuem as condições básicas, tal como luz, esgoto etc., foi obtido por uma pesquisa feita pela Secretaria de Planejamento, nesta gestão da prefeita Luiza Erundina. Esta pesquisa faz parte dos levantamentos que a equipe responsável pelo Plano Diretor está fazendo, para elaborar o novo plano da Cidade.

A.C.: Um outro aspecto do Brasil que estou pensando, é um fato que aconteceu, recentemente, que foi a demissão de mil trabalhadores da Brastemp, por conta de um momento recessivo da economia, que está sendo dramático (…)21 e de uma coisa como o que fez Vicentinho, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos (…) o que é cada vez mais raro no Brasil, hoje, pois parece que os laços de solidariedade estão frouxos. Então a questão que te coloco, e não sei se é bem uma questão, é que tipo de influência (…) é possível, numa situação como esta?

[21] Idem.

F.G.: Penso numa breve conversa que tive, hoje de manhã, cedinho, com Eduardo Suplicy, na qual ele me expôs um projeto que ele está defendendo no Senado, daquilo que chamamos, em francês, de Renda Mínima Garantida…

Anônimo: Como o Welfare, nos Estados Unidos?

F.G.: Não, é uma coisa mais elaborada, mais como o RMM francês, e até melhor do que o sistema francês, porque o sistema francês funciona para períodos de tempos limitados, enquanto que este, que Suplicy está propondo para o Brasil, é por tempo ilimitado. Dá para imaginar um pouco a perplexidade, não só das oligarquias, mas também dos militantes tradicionais do Partido dos Trabalhadores (PT), ainda mais que sua argumentação consiste em mostrar que este tipo de medida não irá, necessariamente, no sentido de produzir um aumento de inflação, mas, ao contrário, segundo ele, contribuirá para evitar toda uma série de desperdícios, toda uma série de coisas, que se gasta em vão, visando à pobreza. Bem, não vou desenvolver isso, aqui. O que me interessava, era ver a ótica de um líder do PT, sobre este tipo de problema, que, com certeza, coexiste com outros tipos de ótica, tradicionais, dogmáticos. Então, o Brasil é um país rico, um país que, de certo modo, e numa parte de sua economia, está tomado por um dinamismo similar ao do Japão…

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Publicado em Cadernos de Subjetividade, vol. 1, 1993.

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