FILOSOFIA FRANCESA CONTEMPORÂNEA: UMA MAPA EM RASCUNHO – por Silvio Gallo

Diferentemente das tradições filosóficas européias, a filosofia francesa sempre foi muito marcada pela história da filosofia, notadamente aquela produzida nos meios acadêmicos. Enquanto na Grã-Bretanha, por exemplo, se incursionava pela filosofia analítica influenciada pelos positivistas lógicos de Viena, de um lado, e por Wittgenstein, de outro, por muito tempo, produzir filosofia foi identificado na França com fazer história da filosofia, e isso marcou a atividade dos filósofos franceses de forma indelével. Mas mesmo esse fazer história da filosofia jamais foi unívoco; são famosas as querelas entre as diferentes tendências no estudo da história da filosofia, as propostas de diferentes abordagens que, necessariamente, redundavam em diferentes histórias de diferentes filosofias. Éric Alliez, no relatório que produziu sobre a filosofia contemporânea francesa, a pedido da Direção Geral das Relações Culturais Científicas e Técnicas do Ministério de Assuntos Estrangeiros da França, demarca bem essa discussão: 

Admitamos que essa leitura não leva a temer o que se poderá qualificar de “invasão” da filosofia francesa pela história da filosofia – uma história da filosofia que certamente não é mais “a francesa” no sentido do Pós-Guerra, com sua guerra de trincheiras entre “estruturalistas” (Guéroult), “humanistas” (Gouhier) e “existencialistas” (Alquié), sua querela interminável do racionalismo (e conforme se partia de Descartes, de Hegel ou de Husserl…) e suas falsas batalhas de torpedeadores e de contratorpedeadores denunciadas não sem justeza por Beaufret -, como se fosse este o efeito ou o contragolpe do esgotamento de um filão mais criador: aquele dos pensadores que tinham sabido ajustar-se o fora da filosofia universitária, das ciências contemporâneas à história dos dispositivos e das instituições, sem omitir o domínio literário no qual a influência de Blanchot foi preponderante.¹

Mas Alliez, no trecho citado, já aponta também que essa visão “historicista” da filosofia parece superada, nas últimas décadas. Mesmo antes disso, porém, duas nítidas linhas insinuavam-se na constituição do pensamento com sotaque francês do século XX: de um lado, a filosofia da vida na produção de Bergson e, de outro, uma filosofia que, voltada para o mundo da vida, queria transcendê-lo, encontrando a originalidade dos conceitos, a partir da produção metodológica de Husserl. Boa parte da filosofia francesa daquele século foi marcada pela fenomenologia. A descoberta do método proposto por Husserl, muitas vezes por meio de Heidegger, balançou os jovens estudantes de filosofia franceses, que tentavam fugir de uma metafísica do abstrato e buscavam a possibilidade de produzir uma filosofia do concreto. Dois dos maiores expoentes da filosofia francesa no século XX, JeanPaul Sartre e Maurice Merleau-Ponty, foram, não por acaso, leitores (ou releitores) de Husserl.²

Sartre, desde muito jovem, teve sua produção filosófica marcada pela filosofia husserliana. Tendo obtido uma bolsa para estudos na Alemanha, passou um ano em Berlim, entre 1933 e 1934, estudando a obra de Husserl, sobretudo as Idéias Fundamentais para uma Fenomenologia. O resultado foi a obra A Transcendência do Ego, que publicou em seguida, e a forte influência em O Ser e o Nada (1943), além de em outros textos menores. A proposta de Sartre era de uma “volta a Husserl”, deixando de lado o “desvio existencial” que Heidegger impôs à fenomenologia. Mas o curioso é que Sartre acabaria ainda mais “existencialista” do que Heidegger, ao usar o método criado por Husserl para descrever o fenômeno de ser do ser humano. Merleau-Ponty, por sua vez, procurou seguir com a fenomenologia do ponto no qual Husserl houvera parado. Atento à preocupação do mestre de fugir da armadilha idealista na qual a fenomenologia havia incorrido em sua primeira fase, o filósofo francês opta por trabalhar uma fenomenologia do corpo, e não da consciência, como fez Sartre. 

Mas um bólido atravessou a filosofia francesa: Nietzsche. O alemão maldito, um dos “mestres da suspeita”, viria revolucionar o pensamento francês, anunciando novos ares e novos mundos. A geração de filósofos franceses que começa a produzir intensamente nos anos 1960 – e por isso às vezes chamada de geração 68 – será uma geração de leitores de Nietzsche, entre os quais podemos destacar Deleuze, Foucault, Lyotard, Derrida, por exemplo. Um dos principais responsáveis pela recepção de Nietzsche na França foi Pierre Klossowski, filósofo da mesma geração de Sartre (ambos nasceram em 1905), geração que marcaria a formação de Deleuze, Foucault e companhia. Esse encontro com Nietzsche marcaria a filosofia francesa, levando a própria produção acadêmica para mares nunca dantes navegados da história da filosofia; basta frisar que os quatro citados foram professores nas mais importantes instituições de ensino superior francesas, sendo portanto responsáveis pela formação de novas gerações de filósofos franceses.

Um comentário de Deleuze é emblemático dessa “nova” forma de se fazer filosofia que, partindo de filósofos consagrados pela história, consiste numa atividade criadora, e não apenas reprodutora:

A história da filosofia não é uma disciplina particularmente reflexiva. É antes como uma arte de retrato em pintura. São retratos mentais, conceituais. Como em pintura, é preciso fazer semelhante, mas por meios que não sejam semelhantes, por meios diferentes: a semelhança deve ser produzida, e não ser um meio para reproduzir (aí nos contentaríamos em redizer o que o filósofo disse). Os filósofos trazem novos conceitos, eles os expõem, mas não dizem, pelo menos não completamente, a quais problemas esses conceitos respondem. Por exemplo, Hume expõe um conceito original de crença, mas não diz por que nem como o problema do conhecimento se coloca de tal forma que o conhecimento seja um modo determinável de crença. A história da filosofia deve, não redizer o que disse um filósofo, mas dizer o que ele necessariamente subentendia, o que ele não dizia e que, no entanto, está presente naquilo que diz.³

Trata-se, portanto, de produzir filosofia a partir da história da filosofia, mas não ficando confinado a ela, apenas reproduzindo o pensamento, mas criando novos conceitos. A história da filosofia é a base da qual se parte, não mais o ponto de chegada. 

Uma nova geração de filósofos franceses, formada a partir dos anos 1960 – e tendo, portanto, como mestres os leitores de Nietzsche – vai esboçar uma reação, no final dos anos 1980 e início dos 90. São aqueles que ficaram conhecidos como os “novos filósofos” que, para buscar seu lugar ao sol na concorrida cena filosófica francesa, seja no palco das academias ou no novo palco virtual das mídias (jornais, tevê e depois o ciberespaço), não hesitaram em revoltar-se contra os mestres. Bernard Henri-Lévy, André Comte-Sponville, Luc Ferry, Alain Renaut, entre os mais conhecidos. Vários deles propuseram o abandono da “filosofia do martelo” de Nietzsche e um retorno a um certo classicismo.[4] Mas isso só serviu para ampliar ainda mais os horizontes múltiplos da filosofia francesa em nossos dias.

Neste embate do estudo da história da filosofia com a produção mais estritamente filosófica, nas confluências e refluxos do bergsonismo com as leituras francesas da fenomenologia, nos múltiplos encontros/desencontros com Nietzsche, no debate com a filosofia analítica anglo-saxônica, foi delineando-se a contemporaneidade da filosofia francesa. Contemporaneidade feita de multiplicidade, de diferentes referenciais, de distintas leituras e releituras. Essa multiplicidade dificulta, claro, as classificações; quiçá daqui a um século o distanciamento temporal permita aos historiadores da filosofia perceber elementos de articulação que permitam o vislumbre de “correntes de pensamento”, de territórios demarcados no mapa do pensamento francês da segunda metade do século XX. Por ora, qualquer tentativa de “classificação” parece-me prematura e equivocada.[5]

Tal multiplicidade do pensamento francês contemporâneo é interpretada no já citado relatório de Alliez como o processo de libertação da filosofia de uma certa tradição mais recente, que circunscrevia a produção filosófica numa triangulação – similar àquela da edipianização, com que Freud circunscreve a produção do desejo – entre o positivismo, a fenomenologia e a crítica, impedindo novas experiências de pensamento.

Enfrentando o termo equívoco de sua realização, uma certa identidade da filosofia francesa se constituiu: contemporânea. Da retomada da crítica bergsoniana das filosofias da consciência por Merleau-Ponty no quadro de sua crítica do idealismo transcendental de Husserl, à desconstrução derridiana da fenomenologia, ‘metafísica da presença na forma da idealidade’, como filosofia da vida, projetando um espectro cujas extremidades se dividiram hoje entre Deleuze e Badiou, impôs-se assim um campo de pesquisa cuja aposta, em toda a diversidade de seus procedimentos, é simplesmente a de libertar a razão do triângulo mágico Crítica – Positivismo lógico – Fenomenologia transcendental.[6]

Assim, não se pode propriamente falar em “tendências predominantes” na filosofia francesa contemporânea. Tendo escapado do triângulo crítico (leia-se marxismo – positivismo – fenomenologia), as diferenças proliferaram. A geração de filósofos leitores de Nietzsche, por inspiração de Klossowski, parece ter levado a cabo o desafio lançado pelo filósofo da Basiléia na Genealogia da Moral obra de 1886; ali Nietzsche afirmou que

Devemos afinal, como homens de conhecimento, ser gratos a tais resolutas inversões das perspectivas e valorações costumeiras, com que o espírito, de modo aparentemente sacrílego e inútil, enfureceu-se consigo mesmo por tanto tempo: ver assim diferente, querer ver assim diferente, é uma grande disciplina e preparação do intelecto para a sua futura ‘objetividade’ – a qual não é entendida como ‘observação desinteressada’ (um absurdo sem sentido), mas como a faculdade de ter seu pró e seu contra sob controle e deles poder dispor: de modo a saber utilizar em prol do conhecimento a diversidade de perspectivas e interpretações afetivas […] Existe apenas uma visão perspectiva, apenas um ‘conhecer’ perspectivo; e quanto mais afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo será nosso ‘conceito’ dela, nossa ‘objetividade’. Mas eliminar a vontade inteiramente, suspender os afetos todos sem exceção, supondo que o conseguíssemos: como? – não seria castrar o intelecto?… (2ª Dissertação, § 12).[7]

Não castrar o intelecto mas, ao contrário, fazer proliferar as experiências de pensamento; parece ser essa a tônica da filosofia francesa inspirada por Nietzsche. E, mesmo por isso, fica difícil falar em uma “corrente filosófica”. Se há pontos de contato, tangenciamentos, entre os pensamentos de Deleuze, Foucault, Derrida, Lyotard e outros, há também muitas diferenças, e diferenças significativas, que não permitem que eles sejam colocados como representantes de uma mesma “corrente de pensamento”.

Se há a influência de Nietzsche, há ainda várias outras; no caso de Deleuze, elas vêm da filosofia e de outros lados. Na filosofia, Deleuze bebe em Spinoza, em Bergson, em Hume, em Kant, em Leibniz. Mas há a literatura: Proust, Lewis Carrol, Herman Melville, Sacher-Masoch. Há o cinema. Assim, não é possível dizer que Deleuze tenha sido um “nietzscheano”, como não o foram Foucault, Derrida e companhia. São singularidades numa multiplicidade, singularidades que têm em comum atender ao apelo de Nietzsche de atentar para a diversidade como elemento positivo na produção dos conhecimentos, mas que, justamente por atender ao apelo da diversidade, ficam marcadas pelas diferenças, entre si e com as outras.

____________________________________________________

NOTAS

1. ALLIEZ, Eric. Da Impossibilidade da Fenomenologia; sobre a filosofia francesa contemporânea. São Paulo: Ed. 34, 1996, p. 32-33.

2. Ver, por exemplo, o terceiro volume de REALE, Giovanni e ANTISSERI, Dario. História da Filosofia. São Paulo: Paulus, 1991.

3. DELEUZE, Gilles. Pourparlers. Paris: Minuit, 1990, p. 185-186 (na tradução brasileira, Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 169-170).

4. Emblemática dessa posição é uma obra coletiva, publicada na França em 1991: BOYER, Alain et alli. Porque não somos nietzscheanos. São Paulo: Ed. Ensaio, 1994. 

5. Discordo abertamente, portanto, daqueles que se apressam em falar em “pós-estruturalismo” ou em abarcar quase tudo sob o epíteto de “pós-modernismo”. De um lado porque o prefixo “pós” designa apenas posterioridade temporal e aí caímos na obviedade: claro que absolutamente tudo o que foi produzido posteriormente ao estruturalismo é “pós-estruturalismo”, mas isso é muito pouco para delimitar um esforço de pensamento e produção conceitual; de outro lado porque o pós-modernismo, se é que podemos, de fato, falar em algo assim, seria também um termo excessivamente vago para designar esforços de pensamento.

6. ALLIEZ, op. cit., p. 57.

7. NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.108-109.

Fonte: 

GALLO, Silvio. Deleuze & a Educação. Editora Autêntica.

1 comentário em “FILOSOFIA FRANCESA CONTEMPORÂNEA: UMA MAPA EM RASCUNHO – por Silvio Gallo”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima