FOUCAULT E O RETORNO A FREUD DE LACAN – por Márcio Mariguela

FOUCAULT E O RETORNO A FREUD DE LACAN - por Márcio Mariguela

FOUCAULT E O RETORNO A FREUD DE LACAN
                                          Sigmund FREUD (1856-1939); Jacques LACAN (1901-1981); Michel FOUCAULT (1926-1984)

Em maio de 1964, Michel Foucault publicou o artigo “A Loucura, a Ausência da Obra” no periódico La table ronde que tinha como temática fazer uma cartografia da situação da psiquiatria, iniciando seu artigo com uma previsão:

talvez, um dia, não saibamos mais muito bem o que pode ter sido a loucura. Sua figura terá se fechado sobre ela própria, não permitindo mais decifrar os rastros que ela terá deixado. Esses rastros mesmos seriam eles outra coisa, para um olhar ignorante, além de simples marcas negras? Quando muito, farão parte de configurações que nós outros, agora, não saberíamos desenhar, mas que serão, no futuro, os quadrículos indispensáveis através dos quais nos tornaremos legíveis, nós e nossa cultura […] Tudo o que experimentamos, hoje, sob o modo limite, de estranheza ou de insuportável terá alcançado a serenidade do positivo (FOUCAULT, 1999a, p.190).

Adiante, após identificar um ponto de mutação que marcou uma descontinuidade na concepção clássica da loucura, Foucault apresentou algumas questões decisivas para traçar a genealogia do discurso psiquiátrico:

o suporte técnico dessa mutação, qual será? A possibilidade para a medicina de dominar a doença mental como uma outra afecção orgânica? O controle farmacológico preciso de todos os sintomas psíquicos? Ou uma definição bastante rigorosa dos desvios de comportamento, para que a sociedade tenha tempo disponível de prever, para cada um deles, o modo de neutralização que lhe convém? Ou ainda outras modificações das quais nenhuma, talvez, suprimirá realmente a doença mental, mas que terão, como sentido, apagar de nossa cultura a face da loucura? (FOUCAULT, 1999a, p.191).

Tal apagamento implicou na concepção da loucura como linguagem excluída: “aquela que, contra o código da língua, pronuncia palavras sem significação (os insensatos, os imbecis, os dementes), ou a linguagem que pronuncia palavras sacralizadas (os violentos, os furiosos), ou ainda a que faz passar significações interditadas (os libertinos, os obstinados)” (FOUCAULT, 1999a, p.195). Foucault reconheceu Freud como o autor que realmente rompeu com os modos de apagamento impostos à loucura pelo discurso psiquiátrico. Com Freud, a loucura deixou de ser falta de linguagem, blasfêmia proferida ou significação intolerável e por isso, a psicanálise é o grande levantamento dos interditos: “Freud não descobriu a identidade perdida de um sentido: ele cingiu a figura irruptiva de um significante que não é absolutamente como os outros” (FOUCAULT, 1999a, p.195 – itálico do autor)¹.

As diferentes posições de Foucault sobre a psicanálise em geral e sobre Freud em particular é tema recorrente nos trabalhos dos autores que investigam a obra do filósofo francês². Jacques Derrida, por exemplo, analisou o lugar de Freud na obra A História da Loucura, designando a função dobradiça que Freud ocupou na escrita de Foucault, duplo movimento de articulação, alternância de abertura e fechamento: “movimento alternativo que sucessivamente abre e fecha, aproxima e afasta, repudia ou aceita, exclui ou inclui, desqualifica ou legitima, domina ou liberta” (DERRIDA, 1994, p.62).

Essa designação de Derrida pode ser aplicada ao conjunto da obra de Foucault. Freud ocupou uma função dobradiça nas pesquisas realizadas em torno da arqueologia do saber, da genealogia do poder e na genealogia da ética. É como função dobradiça que podemos acompanhar a presença de Freud na escrita de Foucault: uma alternância que abre para uma interlocução profícua ao considerá-lo como instaurador de discursividade, inaugurando uma nova hermenêutica na cultura ocidental contemporânea; e ao mesmo tempo, fecha no que diz respeito àquilo que os pós-freudianos da Associação Psicanalítica Internacional (IPA) fizeram de Freud, sobretudo, transformando a psicanálise numa prática clínica adaptativa.

Pretendo sustentar que a visada de Foucault sobre Freud é recorrente pela função autor que reconhece atuar na tática genealógica. A obra de Freud foi interpretada por Foucault como tendo inaugurado uma nova hermenêutica que interroga sem cessar a constituição da psiquiatria e demais ciências humanas no conjunto das ciências positivas.

Ao entrar no jogo da relação de Foucault com a psicanálise sempre estamos em risco, pois, no mínimo, pode-se argumentar que tal diálogo é multifacetado e marcado, fundamentalmente, por uma ambivalência: há um Foucault em permanente diálogo com Freud, considerando-o instaurador de discursividade; e há um Foucault nitidamente crítico em relação à prática psicanalítica de tratamento das neuroses e psicoses. Também se pode reconhecer Foucault como um genealogista da implantação da psicanálise na França e os avatares de tal recepção da obra freudiana. É nessa perspectiva, pretendo analisar a relação de Foucault com o movimento de retorno a Freud, empreendido por Jacques Lacan no início da década de 1950.

É certo que Foucault leu o único livro publicado por Lacan: Da psicose paranóica e suas relações com a personalidade, sua tese de doutorado em psiquiatria em 1932. O título escolhido por Foucault para seu primeiro livro, publicado em 1954, bem o demonstra: Maladie mentale et personnalité. Traçar a gênese do interesse de Foucault por Lacan a partir desse livro, encomendado por Louis Althusser para uma coleção destinada aos estudantes, é um marco interessante para acompanhar suas posições sobre Freud e a psicanálise. O pequeno livro foi reeditado em 1962, e não só mudou de título, Maladie mentale et psychologie, como também passou por uma revisão completa de seu conteúdo³, demonstrando assim a alternância apontada por Derrida no conjunto da obra de Foucault.

Outro aspecto singular que permite analisar o interesse de Foucault por Lacan diz respeito ao tema do retorno a… Na conferência “O que é um autor?”, pronunciada por Foucault em 1969 na Sociedade Francesa de Filosofia, encontra-se os argumentos que atestam a relevância desse tema que percorria transversalmente os debates na cena filosófica parisiense[4]. Lacan estava presente na conferência de Foucault e, como veremos, disse que se sentiu convocado ao receber o convite enviado pela Sociedade, pois nele estava escrito que o tema seria o retorno a… A reticência, como sabemos, é um sinal de pontuação indicativa, num texto, da interrupção do pensamento (por ficar, em regra, facilmente subentendido o que não foi dito), ou omissão intencional de coisa que se devia ou podia dizer, mas apenas se sugere, ou que, em certos casos, indica insinuação, segunda intenção, emoção. Lacan considerou-se incluído na reticência e foi ouvir o que Foucault tinha a dizer sobre a função autor e o retorno a…[5]

Foucault considerou o tema escolhido para sua conferência um bom motivo para retomar um certo aspecto de seu livro As Palavras e as Coisas, publicado em 1966[6]. Nesse livro, não se tratava de fazer referências às idéias, ao pensamento de um determinado autor, mas sim de fazer operar um nível de discursividade que a noção do autor garante. Foucault afirmou que em seu livro há uma tentativa de analisar as massas verbais, espécies de planos discursivos, que não estavam acentuados pelas unidades habituais do livro, da obra e do autor (FOUCAULT, 2001, p. 266). É assim que nomes de autores como Buffon, Cuvier, Ricardo, Marx são apresentados como unidades discursivas. Não se tratava de fazer referências às idéias, ao pensamento de um determinado autor, mas sim de fazer operar um nível de discursividade que a noção do autor garante. Nessa perspectiva, a questão da função autor se impõe como decisiva para demarcar o campo de trabalho de Foucault e, desse modo, destacar o procedimento genealógico que vigorou em suas obras a partir da década de 1970[7].

Com essa advertência preliminar, Foucault procurou acertar as contas com as críticas recebidas após a publicação de seu livro, anunciando para breve um estudo sobre o tema. De fato, no mês seguinte, publicou A Arqueologia do saber, no qual expressou o alcance de sua arqueologia das unidades discursivas:

não é mais saber por que caminhos as continuidades se puderam estabelecer; de que maneira um único e mesmo projeto pôde-se manter e constituir, para tantos espíritos diferentes e sucessivos, um horizonte das transmissões, das retomadas, dos esquecimentos e das repetições; como a origem pode estender seu reinado bem além de si própria e atingir aquele desfecho que jamais se deu – o problema não é mais a tradição e o rastro, mas o recorte e o limite; não é mais o fundamento que se perpetua, e sim as transformações que valem como fundação e renovação dos fundamentos (FOUCAULT, 1987, p. 7).

Na última parte de sua conferência, Foucault aplicou seus enunciados sobre a função autor a um determinado campo (ou unidade) discursivo. Para tanto, interrogou a legitimidade do autor na fundação de uma disciplina, o significado do movimento de retorno a… e as transformações que tal retorno opera no campo discursivo em questão. Freud e Marx foram eleitos como exemplares para investigar a função autor: os considerou fundadores de discursividade e, desse modo, considerou que esses autores ocuparam uma posição transdiscursiva na história efetiva dos saberes contemporâneos.

Desse modo, Freud não é simplesmente o autor da Traumdeutung ou do Mot d’ Esprit, mas sim aquele que estabeleceu uma possibilidade indefinida de discursos: tornou possível um certo número de analogias e diferenças; abriu o espaço para outra coisa diferente dele e que, no entanto, pertence ao que ele fundou. Dizer que Freud fundou a psicanálise significa afirmar que ele tornou possível um certo número de diferenças em relação aos seus textos, aos seus conceitos, às suas hipóteses, que dizem respeito ao próprio discurso psicanalítico. Há equívocos em admitir que a psicanálise é o que está contido nas obras completas de Freud: isso porque, “desenvolver um tipo de discursividade como a psicanálise, tal como ela foi instaurada por Freud, não é conferir-lhe uma generalidade formal que ela não teria admitido no ponto de partida, é simplesmente abrir-lhe um certo número de possibilidades de aplicações” (FOUCAULT, 2001, p. 283). O nome do autor cria um campo de operacionalidade dando o estatuto a um discurso: o autor é uma função no discurso e não do discurso.

A temática do retorno a… se impõe como um movimento com sua própria especificidade, caracterizando, justamente, as instaurações de discursividade. Esse ato instaurador é re-visitado, não para depreender uma origem primeira e esquecida do sentido do texto, pois não há sentido originário a ser descoberto, trazido à luz, através de sucessivas interpretações. Logo, o retorno a… não equivale a uma exegese bíblica: o retorno é marcado por um vazio, uma lacuna.

Retorna-se a um certo vazio que o esquecimento evitou ou mascarou, que recobriu com uma falsa ou má plenitude, e o retorno deve redescobrir essa lacuna e essa falta; daí o perpétuo jogo que caracteriza esses retornos à instauração discursiva”. Nessa perspectiva, o “reexame dos textos de Freud modifica a própria psicanálise (FOUCAULT, 2001, p. 284-285).

Admitindo que Freud instaurou uma discursividade, a psicanálise, toda uma rede de proliferação de sentido pode ser deduzida. Freud produziu, como autor, a possibilidade e a regra de formação de outros discursos que ao se remeterem à psicanálise não poderão mais sustentar sua validade por um recuo ao sentido originário. Por isso, Foucault disse que Freud não tornou apenas possível certo número de analogias, ele tornou possível, certo número de diferenças ao abrir o espaço para outra coisa diferente dele e que, no entanto, pertence ao que ele fundou.

Assim, o retorno a Freud implicou a re-inscrição de um discurso num domínio novo, pois “retorna-se ao que está marcado pelo vazio, pela ausência, pela lacuna no texto. Retorna-se a um certo vazio que o esquecimento evitou ou mascarou, que recobriu com uma falsa ou má plenitude e o retorno deve redescobrir essa lacuna e essa falta” (FOUCAULT, 2001, p. 285). Daí esse perpétuo jogo que caracteriza esses retornos à instauração discursiva, como afirmou Foucault, “jogo que consiste em dizer por um lado: isso aí estava, bastaria ler, tudo se encontra aí; e, inversamente: não, não esta nesta palavra aqui, nem naquela ali, nenhuma das palavras visíveis e legíveis diz do que se trata agora” (Idem, p. 285). Segue-se que a releitura dos textos de Freud modifica a própria psicanálise.

No espaço do debate, após a conferência, Lacan tomou a palavra para dizer que se sentiu convocado para estar presente porque lera os enunciados do convite e notara que Foucault trataria do retorno a… Considerou que por retorno é possível entender muitas coisas, mas o retorno a Freud foi uma espécie de bandeira que levou em punho na conquista do campo freudiano: “nesse aspecto, só posso agradecer-lhe: você correspondeu inteiramente à minha expectativa. A propósito de Freud, evocando especialmente o que significa o retorno a, tudo o que você disse me parece, pelo menos do ponto de vista em que eu pude nele contribuir, perfeitamente pertinente”[8] (FOUCAULT, 2001, p. 297).

Na Lição XII (26/02/1969) do seminário De um Outro ao outro, Lacan iniciou seu discurso com uma constatação e advertência:

é bem possível que vocês não saiam muito bem aonde estamos. Eis porque o tempo me pareceu oportuno, e não de uma maneira contingente, para colocar a questão do meu título, por exemplo, de um Outro ao outro, sob o qual figura meu discurso deste ano (…) É preciso, ao menos, ter percorrido um pedaço do caminho para que, por retroação, a partida se esclareça, isso não somente para vocês mas, afinal de contas, para mim mesmo (LACAN, 2004, p.175).

Para retraçar, por retroação, o caminho percorrido de seu ensino, Lacan definiu seu seminário de 1959-1960 sobre A Ética da Psicanálise. Ao definir esse seminário como ponto de partida para anunciar o acontecimento Freud, Lacan narrou o que ouviu de Michel Foucault na sessão de 22 de fevereiro da Sociedade Francesa de Filosofia: “tenho, agora, na data em que estamos, a satisfação de ver, por exemplo, naquilo que diz respeito à função de um autor como Freud, eu diria que uma sociedade de espírito bastante aberto encontra-se em condições de medir sua originalidade” (LACAN, 2004, p.176). Destacando a relevância da questão título da conferência, afirmou que Foucault colocou na vanguarda de toda sua articulação, a função do retorno a

Ele colocou três pontinhos depois, no pequeno anúncio que fez do seu projeto de interrogação O que é um autor? O retorno a… encontrava-se no final, e, devo dizer que, por esse único fato, considerei-me como sendo convocado, não existe ninguém, afinal de contas, em nossos dias que, mais do que eu, tenha dado peso ao retorno a…, a propósito do retorno a Freud. Ele o valorizou, de resto, muito bem e mostrou sua perfeita informação do sentido muito especial, do ponto chave que constitui esse retorno a Freud (LACAN, 2004, p.176-177).

Qual o ponto chave destacado por Foucault em seus comentários sobre o retorno a Freud? Como demonstrei, ao designar a função autor que Freud ocupa na psicanálise, Foucault concluiu que Freud não apenas tornou apenas possível certo número de analogias, ele tornou possível, certo número de diferenças, ao abrir o espaço para que outra coisa diferente dele pudesse existir e que, no entanto, pertence ao que ele fundou. O retorno a Freud de Lacan é a inscrição de uma diferença no campo instaurado por Freud: a psicanálise. Por isso Lacan demarcou o ponto de partida de seu empreendimento, o seminário A ética da psicanálise.

Foucault assistiu a algumas aulas do seminário A ética da psicanálise e demonstrou em 1969, o lugar ocupado por Lacan na história da implantação da psicanálise em solo francês. Em entrevista concedida a Ducio Trombadori em 1978, Foucault afirmou:

o que pude apreender de sua obra certamente atuou em mim. Nunca o segui de perto, para poder ficar realmente impregnado pelo que ele dizia, ainda mais que o essencial do seu ensino ele o fez a partir de 1955 na França. Ora, eu deixei a França em 1955. Só voltei mais tarde. Li alguns de seus livros, mas todo mundo sabe que para apreender Lacan é preciso, simultaneamente, ler seus livros, acompanhar seu ensino público, possivelmente fazer seus seminários, e eventualmente até fazer um tratamento psicanalítico (Apud ERIBON, 1996, p.140).

Ao analisar as relações de Foucault com seus contemporâneos, Didier Eribon destacou o tema da dependência do sujeito como aspecto central da interlocução com Lacan. A primeira menção ao nome do Dr. Lacan apareceu na “Introdução” escrita por Foucault para a tradução do livro Le rêve et l’existence de Ludwig Binswanger, em 1954. Em entrevista publicada no Le Monde de 22/07/1961, por ocasião do lançamento do livro História da Loucura, Foucault ao ser interrogado sobre suas influências, respondeu destacando as obras literárias de Blanchot e Roussel e a psicanálise de Lacan, nomeado por ele como a “segunda e prestigiosa existência da psicanálise na França” (FOUCAULT, 1999, p.149). Noutra entrevista, intitulada “Lacan, o ‘libertador’ da psicanálise”, publicada no Corriere della sera de 11/09/1981, Foucault afirmou que Lacan “queria subtrair a psicanálise da proximidade da medicina e das instituições médicas, que considerava perigosa. Ele buscava na psicanálise não um processo de normalização dos comportamentos, mas uma teoria do sujeito” (FOUCAULT, 1999b, p.298)[9].

Como se pode observar, quando interrogado sobre a importância de Lacan em suas pesquisas, Foucault destacou o tema central em torno do qual o retorno a Freud de Lacan girava: a questão do sujeito. Outro indicativo disso pode ser encontrado na entrevista concedida a Moriaki Watanabe, publicada no Japão em 1978. Tal como na entrevista de 1961, o nome de Lacan foi alinhado ao de Bataille, Blanchot e Klossowski e Foucault afirmou eles foram os primeiros a colocar o tema do sujeito como problema fundamental da filosofia, permitindo assim, ao pensamento francês, escapar à tirania do sujeito cartesiano e da dialética hegeliana:

eles foram os primeiros a mostrar o problema do sujeito como problema fundamental para a filosofia e para o pensamento moderno. Lacan observou que Sartre nunca admitiu o inconsciente no sentido freudiano. A idéia de que o sujeito não é a forma fundamental e originária, mas forma-se a partir de um certo número de processos, que, estes, não são da ordem da subjetividade, mas de uma ordem evidentemente muito difícil de nomear e mostrar, porém mais fundamental e mais originária do que o próprio sujeito, não emergia. O sujeito tem uma gênese, o sujeito não é originário. Ora, quem disse isso? Freud, certamente, mais foi preciso que Lacan o mostrasse claramente. Daí a importância de Lacan (ERIBON, 1996, p.147)[10].

O que significa afirmar que o sujeito tem uma gênese? A palavra gênese precisa ser compreendida no empreendimento realizado por Foucault na década de 1970: delinear um conjunto de problemas que permitissem traçar os contornos de uma genealogia do poder. Posteriormente essa analítica do poder foi desdobrada numa genealogia da ética: projeto de pesquisa que pode ser acompanhado através de um conjunto de entrevistas, conferências, cursos e seminários no período de 1978 a 1984. É nesse desdobramento do trabalho genealógico sobre o poder que se inscreve a distinção entre o campo da moral e da ética: diferença fundamental para acompanhar os dois volume publicados por Foucault em 1984 com o título História da Sexualidade.

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NOTAS

1. Na lição de 26/02/69 do Seminário De um Outro ao outro, Lacan definiu a função do significante como diferença absoluta: “Essa estrutura lógica mínima, tal como é definida pelos mecanismos do inconsciente, a resumi há muito tempo, sob os termos de diferença e repetição; não há nada que funde a função significante além do fato dele ser diferença absoluta” (LACAN, 2004, p. 185).

2. Mauro Vallejo (2006) em seu livro Incidencias em el psicaanálisis de la obra de Michel Foucault, construiu uma trajetória singular assumindo a posição de que os textos de Foucault incidem sobre a psicanálise em sua história, em seu discurso elucidando suas regularidades entre objetivos, métodos e técnicas. Ernani Chaves (1988), por sua vez, afirmou que o texto freudiano é uma sombra permanente que atravessa em vários níveis a escrita de Foucault. Renato Mezan (1985), considerou que a sombra da psicanálise acompanhou Foucault durante os trinta anos de sua produção filosófica: lugar múltiplo, “a cada meandro do percurso de Foucault, ela se aloja em outro espaço, configura-se em outras redes de relações, desenha outros perfis de significação (MEZAN, 1985, p.95).

3. Pierre Marcherey (1985) comparou passo a passo as duas versões para traçar a arqueologia do pensamento de Foucault sobre a doença mental e a loucura apontando os deslocamentos realizados entre a edição de 1954 e a de 1962.

4.  Em 1964, Louis Althusser publicou na revista La Nouvelle Critique um artigo intitulado “Freud e Lacan” apontando pela primeira vez na cena filosófica, o trabalho empreendido por Lacan. Denunciando o revisionismo da escola americana que reduzia a descoberta de Freud a um biologismo reacionário, anunciou o trabalho urgente de um retorno a Freud a partir de três critérios fundamentais: “recusar, como grosseira mistificação, a camada ideológica de sua exploração reacionária; evitar cair nos equívocos, mais sutis, e sustentados pelos prestígios de algumas disciplinas mais ou menos científicas, do revisionismo psicanalítico; e, finalmente, consagrar-se a um trabalho sério de crítica histórico-teórica, para identificar e definir, nos conceitos que Freud tende empregar, a verdadeira relação epistemológica existente entre esses conceitos e o conteúdo que eles pensavam” (ALTHUSSER, 1985, p. 48). Assim, Althusser concluiu sua nota preliminar afirmando que esse tríplice trabalho de crítica ideológica e de elucidação epistemológica foi inaugurado na França por Jacques Lacan.

5. Para uma análise mais detalhada da função autor na instauração da discursividade ver o primeiro capítulo do meu livro Psicanálise e Surrealismo: Lacan, o passador de Politzer (MARIGUELA, 2007).

6.  O livro As Palavras e as Coisas causou grande alvoroço no cenário filosófico parisiense. ERIBON (1996, p. 101) destacou as críticas de Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e dos militantes da esquerda: “As revistas comunistas – com notável exceção de Lettres Françaises, dirigida por Pierre Daix, que publica duas longas entrevistas realizadas por Raymond Bellour – denunciam o livro como um manifesto reacionário que, negando a história e a historicidade, serve aos ‘interesses da burguesia”.

7. Ver o artigo “Nietzsche, a genealogia e a história” (FOUCAULT, 2000b), apresentado no Colóquio em Homenagem a Jean Hyppolite, na Escola Normal Superior, em janeiro de 1969, do qual participaram Louis Althusser, Suzanne Bachelard, Michel Henri, Jean Laplanche, Jean-Claude Pariente e Michel Serres. Foucault assinou o prefácio da edição dessa homenagem, publicada pela PUF em janeiro de 1971.

8. Mayette Viltard, no artigo “Foucault-Lacan: la lección de las Meninas”, destacou a influência discreta e importante que o trabalho de ambos exerceram mutuamente no percurso de elaboração de suas pesquisas: “No se podría hablar de dialogo, cada uno prosigue su propia aventura. Sus respectivas obras, contemporaneas, tienen evidentemente más de um ponto de concordancia. Sin embargo, se puede ir más lejos y adelantar que en ciertos momentos las afirmaciones de cada uno de ellos sobre una dificultad que les era común tuvieron un efecto de encuentro con las de otro” (VILTARD, 1999, p.116). Após destacar a importância da conferência “O que é um autor?” sobre Lacan, a autora elegeu outros três momentos [a presença de Foucault na sessão de 18/05/1966 do seminário de Lacan O Objeto da Psicanálise; uma carta de Lacan a Foucault, datada de 08/03/1968; e finalmente, as palavras de Foucault diante do grupo da revista Ornicar? no começo de 1976] de um encontro em que eles se falaram, destacando uma dificuldade comum entre eles no final da década de 1969: como analizar, cada uno em su terreno, el hecho que los estructuralistas, quienes deberían haber sido los más aptos parta tomar em cuenta la materialidad del signo, se convirtieran paradojalmente en su tumba? (VILTARD, 1999, p.117).

9.  Nessa mesma entrevista, Foucault afirmou ser o suposto hermetismo de Lacan, uma estratégia central da função autor que ele queria, deliberadamente, exercer em sua escrita: “Ele queria que o leitor se descobrisse, ele próprio, como sujeito de desejo, através dessa leitura. Lacan queria que a obscuridade de seus Escritos fosse a própria complexidade do sujeito, e que o trabalho necessário para compreendê-lo fosse um trabalho a ser realizado sobre si mesmo” (FOUCAULT, 1999, p.299).

10.  Na nota introdutória que abre a publicação da conferência “Intervenção sobre a transferência”, proferida no Congresso dos Psicanalistas de língua Românica em 1951, Jacques Lacan afirmou: “Estamos aqui ainda a amestrar os ouvidos ao termo sujeito” (LACAN, 1998, p.214).

Referências bibliográficas

ALTHUSSER, L. Freud e Lacan. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

CHAVES, E. Foucault e a psicanálise. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988.

ERIBON, D. Michel Foucault e seus contemporâneos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

FOUCAULT, M. O que é um autor? Ditos & escritos III – estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. p.264-298.

FOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Ditos & escritos II – arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000b. p.260-281.

FOUCAULT, M. Loucura, a ausência da obra. In: MOTTA, M. B. (Org.). Ditos & escritos I – problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999a. p.190-198.

FOUCAULT, M. Lacan, o ‘Libertador’ da Psicanálise. In: MOTTA, M. B. (Org.). Ditos & escritos I – problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999b. p.298-299.

FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1987.

LACAN, J. Intervenção sobre a transferência. In: Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.87-100.

LACAN, J. Seminário 1968-1969: de um Outro ao outro. Recife, 2004. (Publicação não comercial exclusiva para membros do Centro de Estudos Freudianos do Recife).

MARCHEREY, P. Nas origens da História da Loucura: uma retificação e seus limites. In: RIBEIRO, R. J. (Org.). Recordar Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.47-71.

MARIGUELA, M. Psicanálise e surrealismo: Lacan, o passador de Politzer. Piracicaba: Jacintha Editores, 2007.

MEZAN, R. Uma arqueologia inacabada: Foucault e a psicanálise. In: RIBEIRO, R. J. (Org.). Recordar Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.94-125.

VALLEJO, M. Incidencias em el psicoanálisis de la obra de Michel Foucault: prolegómenos a uma arqueologia posible del saber psicoanalitico. Buenos Aires: Letra Viva, 2006.

VILTARD, M. Foucault-Lacan: la lección de las meninas. In: Litoral 28 – La opacidad sexual II: Lacan-Foucault. Revista da École Lacanienne de Psychanalyse, Córdoba: EDELP, p.115-161, 1999.

Fonte:

Mariguela, M. A. (2007). Genealogia da ética: o sujeito em questão. ETD – Educação Temática Digital, 8(esp.), 204-226.

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