GILLES DELEUZE: CARTA A UM CRÍTICO SEVERO

Você é encantador, inteligente, malevolente, quase ruim. Mais um esforço… afinal, a carta que você me manda, invocando ora o que se diz, ora o que você mesmo pensa, e os dois misturados, é uma espécie de júbilo pela minha suposta infelicidade. Por um lado, você diz que estou acuado, em todos os sentidos, na vida, no ensino, na política, que me tornei uma vedete imunda, que aliás isso não dura muito, e que não tenho saída. Por outro lado, você diz que eu sempre estive a reboque, que sugo o sangue e degusto os venenos de vocês, os verdadeiros experimentadores ou heróis, e que eu mesmo fico à margem, só observando e tirando proveito. Para mim não é nada disso. Já estou tão cheio de verdadeiros ou falsos esquizos que me converteria com prazer à paranóia. Viva a paranóia! O que você pretende me injetar com sua carta é um pouco de ressentimento (você está acuado, você está acuado, “confessa”…) e um pouco de má consciência (não tem vergonha, está a reboque…); se era só isso, não valia a pena me escrever. Você se vinga por ter feito um livro sobre mim. Sua carta está repleta de uma comiseração fingida e de uma real sede de vingança.

Primeiro, é bom lembrar, apesar de tudo, que não fui eu quem desejou este livro. Você diz porque quis fazê-lo: “Por humor, acaso, sede de dinheiro ou de ascensão social.” Não vejo como vai satisfazer todas essas coisas assim. Ainda uma vez, é problema seu, e desde o começo eu avisei que este livro não me concernia, que eu não o leria ou só o leria mais tarde, e como um texto referente exclusivamente a você. Você veio me ver pedindo não sei o que de inédito. E na verdade, só para agradá-lo propus uma troca de cartas; seria mais fácil e menos cansativo do que uma entrevista no gravador. Com a condição de que essas cartas fossem publicadas separadas de seu livro, como uma espécie de apêndice. Você já se aproveita disso para distorcer um pouco o nosso acordo, e me censurar por ter reagido como um oráculo, como uma velha Guermantes dizendo “havemos de escrever-lhe”, ou como um Rike recusando seus conselhos a um jovem poeta. Paciência!
É verdade que a benevolência não é o forte, em vocês. Quando eu já não souber amar e admirar pessoas ou coisas (não muitas), me sentirei morto, mortificado. Mas vocês, parece que nasceram completamente amargos, é a arte da piscadela, “comigo não… faço um livro sobre você, mas você vai ver…”. De todas as interpretações possíveis, em geral vocês escolhem a mais maldosa ou a mais baixa. Primeiro exemplo: eu gosto de Foucault e o admiro. Escrevi um artigo sobre ele. E ele sobre mim, onde está a frase que você cita: “Um dia talvez o século será deleuzeano”. Seu comentário: eles se jogam confete. Não passa pela sua cabeça que minha admiração por Foucault seja cômica, feita para divertir os que gostam de nós e enfurecer os demais. Um texto que você conhece explica essa malevolência inata dos herdeiros do esquerdismo: “Se tiver peito, tente pronunciar diante de uma assembleia esquerdista a palavra fraternidade ou benevolência. Eles se entregam com extrema aplicação ao exercício da animosidade sob todos seus disfarces, da agressividade e ridicularização a propósito de tudo e de todos, presentes ou ausentes, amigos ou inimigos. Não se trata de compreender o outro, mas de vigiá-lo”. Sua carta é isto: alta vigilância. Lembro de um cara da Fhar (Frente Homossexual de Ação Revolucionária) declarando numa assembleia: se a gente não estivesse aqui para ser a má consciência de vocês… Estranho ideal policialesco, o de ser a má consciência de alguém. Também para você, pareceria que fazer um livro sobre (ou contra) mim lhe dá algum poder sobre minha pessoa. Nada disso. Repugna-me tanto a possibilidade de ter má consciência como a de ser a má consciência dos outros.
Segundo exemplo: as minhas unhas, que são longas e não aparadas. No final da carta você diz que minha jaqueta de operário (não é verdade, é uma jaqueta de camponês) corresponde ao corpete plissado de Marilyn Monroe, e minhas unhas, os óculos escuros de Greta Garbo. E você me inunda com conselhos irônicos e maldosos. Já que você volta tantas vezes ao assunto das unhas, eu explico. Sempre dá para dizer que minha mãe as cortava, e que tem a ver com Édipo e a castração (interpretação grotesca, mas psicanalítica). Também dá para notar, observando a extremidade dos meus dedos, que me faltam as impressões digitais normalmente protetoras, de tal modo que tocar um objeto com a ponta dos dedos, e sobretudo um tecido, me dá uma dor nervosa que exige a proteção das unhas longas (interpretação teratológica e selecionista). Dá para dizer ainda, e é verdade, que o meu sonho é ser não invisível, mas imperceptível, e que compenso esse sonho com unhas que posso enfiar no bolso, pois nada me parece mais chocante do que alguém olhando para elas (interpretação psicossociológica). Enfim dá para dizer: “não precisa comer as unhas só porque são suas; se você gosta de unha, coma a dos outros, se quiser ou puder” (interpretação política, Darien). Mas você escolhe a pior interpretação: ele quer se singularizar, se fazer de Greta Garbo. De qualquer modo, é curioso que de todos os meus amigos nenhum jamais tenha notado minhas unhas, achando-as inteiramente naturais, plantadas aí ao acaso, como que pelo vento, que traz as sementes e não faz ninguém falar.
Chego então à sua primeira crítica, onde você diz e repete com todas as letras: você está cercado, você está acuado, confessa. Procurador geral! Não confesso nada. Já que se trata por sua culpa de um livro sobre mim, gostaria de explicar como vejo o que escrevi. Sou de uma geração, uma das últimas gerações que foram mais ou menos assassinadas com a história da filosofia. A história da filosofia exerce em filosofia uma função repressora evidente, é o Édipo propriamente filosófico: “Você não vai se atrever a falar em seu nome enquanto não tiver lido isto e aquilo, e aquilo sobre isto, e isto sobre aquilo.” Na minha geração muitos não escaparam disso, outros sim, inventando seus próprios métodos e novas regras, um novo tom. Quanto a mim, “fiz” por muito tempo história da filosofia, li livros sobre tal ou qual autor. Mas eu me compensava de outras maneiras. Primeiro, gostando dos autores que se opunham à tradição racionalista dessa história (e entre Lucrécio, Hume, Espinosa, Nietzsche, há para mim um vínculo secreto constituído pela crítica do negativo, pela cultura da alegria, o ódio à interioridade, a exterioridade das forças e das relações, a denúncia do poder…, etc.). O que eu mais detestava era o hegelianismo e a dialética. Meu livro sobre Kant é diferente, gosto dele, eu o fiz como um livro sobre um inimigo, procurando mostrar como ele funciona, com que engrenagens – tribunal da Razão, uso comedido das faculdades, submissão tanto mais hipócrita quanto nos confere título de legisladores. Mas minha principal maneira de me safar nessa época foi concebendo a história da filosofia como uma espécie de enrabada, ou, o que dá no mesmo, de imaculada concepção. Eu me imaginava chegando pelas costas de um autor e lhe fazendo um filho, que seria seu, e no entanto seria monstruoso. Que fosse seu era muito importante, porque o autor precisava efetivamente ter dito tudo aquilo que eu lhe fazia dizer. Mas que o filho fosse monstruoso também representava uma necessidade, porque era preciso passar por toda espécie de descentramentos, deslizes, quebras, emissões secretas que me deram muito prazer. Meu livro sobre Bergson me parece exemplar nesse gênero. E hoje tem gente que morre de rir acusando-me por eu ter escrito até sobre Bergson. É que eles não conhecem o suficiente de história. Não sabem o tanto de ódio que Bergson no início pôde concentrar na Universidade francesa, e como ele serviu – querendo ou não, pouco importa – para aglutinar todo tipo de loucos e marginais, mundanos ou não.
Foi Nietzsche, que li tarde, quem me tirou disso tudo. Pois é impossível submetê-lo ao mesmo tratamento. Filhos pelas costas é ele quem faz. Ele dá um gosto perverso (que nem Marx nem Freud jamais deram a ninguém, ao contrário): o gosto para cada um de dizer coisas simples em nome próprio, de falar por afetos, intensidades, experiências, experimentações. Dizer algo em nome próprio é muito curioso, pois não é em absoluto quando nos tomamos por um eu, por uma pessoa ou um sujeito que falamos em nosso nome. Ao contrário, um indivíduo adquire um verdadeiro nome próprio ao cabo do mais severo exercício de despersonalização, quando se abre às multiplicidades que o percorrem. O nome como apreensão instantânea de uma tal multiplicidade intensiva é o oposto da despersonalização operada pela história da filosofia, uma despersonalização de amor e não de submissão. Falamos do fundo daquilo que não sabemos, do fundo de nosso próprio subdesenvolvimento. Tornamo-nos um conjunto de singularidades soltas, de nomes, sobrenomes, unhas, animais, pequenos acontecimentos: o contrário de uma vedete. Comecei então a fazer dois livros nesse sentido vagabundo, Diferença e repetiçãoLógica do sentido. Não tenho ilusões: ainda estão cheios de um aparato universitário, são pesados, mas tento sacudir algo, fazer com que alguma coisa em mim se mexa, tratar a escrita como um fluxo, não como um código. E há páginas de que gosto em Diferença e repetição, aquelas sobre a fadiga e a contemplação, por exemplo, porque são da ordem do vivido bem vivo, apesar das aparências. Não fui muito longe, mas já era um começo.
E depois houve meu encontro com Félix Guattari, a maneira como nós nos entendemos, completamos, despersonalizamos um no outro, singularizamo-nos um através do outro, em suma, nos amamos. Isso deu O anti-Édipo, e foi um novo progresso. Eu me pergunto se uma das razões formais para a hostilidade que às vezes surge contra esse livro não é justamente por ter sido feito a dois, uma vez que as pessoas gostam de brigas e partilhas. Então tentam separar o indiscernível ou fixar o que pertence a cada um de nós. Mas visto que cada um, como todo mundo, já é muitos, isso dá muita gente. E sem dúvida não se pode dizer que O anti-Édipo esteja livre de todo aparato de saber: ele ainda é bem acadêmico, bastante comportado, e não chega a ser a pop’filosofia ou a pop’análise sonhadas. Mas surpreende-me o seguinte: os que acham sobretudo que este livro é difícil são aqueles com mais cultura, principalmente cultura psicanalítica. Eles dizem: o que é isso, o corpo sem órgãos, o que quer dizer máquinas desejantes? Ao contrário, os que sabem pouca coisa, os que não estão envenenados pela psicanálise têm menos problemas, e deixam de lado o que não entendem sem preocupação. É por isso que dissemos que este livro, pelo menos de direito, se dirigia a pessoas com idade entre quinze e vinte anos. É que há duas maneiras de ler um livro. Podemos considerá-lo como uma caixa que remete a um dentro, e então vamos buscar seu significado, e aí, se formos ainda mais perversos ou corrompidos, partimos em busca do significante. E trataremos o livro seguinte como uma caixa contida na precedente, ou contendo-a por sua vez. E comentaremos, interpretaremos, pediremos explicações, escreveremos o livro do livro, ao infinito. Ou a outra maneira: consideramos um livro como uma pequena máquina a-significante; o único problema é: “isso funciona, e como é que funciona?” Como isso funciona para você? Se não funciona, se nada se passa, pegue outro livro. Essa outra leitura é uma leitura em intensidade: algo passa ou não passa. Não há nada a explicar, nada a compreender, nada a interpretar. É do tipo ligação elétrica. Corpo sem órgãos, conheço gente sem cultura que compreendeu imediatamente, graças a seus próprios “hábitos”, graças à sua maneira de se fazer um. Essa outra maneira de ler se opõe à anterior porque relaciona imediatamente um livro com o Fora. Um livro é uma pequena engrenagem numa maquinaria exterior muito mais complexa. Escrever é um fluxo entre outros, sem nenhum privilégio em relação aos demais, e que entra em relações de corrente, contra-corrente, de redemoinho com outros fluxos, fluxos de merda, de esperma, de fala, de ação, de erotismo, de dinheiro, de política, etc. Como Bloom, escrever na areia com uma mão, masturbando-se com a outra – dois fluxos, em que relação? Nós, o nosso fora, pelo menos um deles, foi uma certa massa de gente (sobretudo jovens) que estão fartos da psicanálise. Eles estão “acuados”, para falar como você, pois continuam mais ou menos se analisando, já pensam contra a psicanálise, mas pensam contra ela em termos psicanalíticos. (Por exemplo, tema de gracejo íntimo, como é que os rapazes do Fhar, as moças do movimento de Libertação das Mulheres – MLF, e muitos outros ainda, podem fazer análise? Isso não os incomoda? Acreditam nisso? O que será que procuram no divã?) É a existência dessa corrente que tornou possível O anti-Édipo. E se os psicanalistas, dos mais estúpidos aos mais inteligentes, têm em geral uma reação hostil a esse livro, embora mais defensiva do que agressiva, evidentemente não é só por causa do seu conteúdo, mas em razão dessa corrente que vai crescer, de pessoas que estão cada vez mais cheias de se ouvirem dizendo “papai, mamãe, Édipo, castração, regressão”, e de se verem propor da sexualidade em geral, e da sua em particular, uma imagem propriamente imbecil. Como se diz, os psicanalistas deverão levar em conta as “massas”, as pequenas massas. Recebemos belas cartas nesse sentido, vindas de um lumpemproletariado da psicanálise, muito mais belas que os artigos da crítica.
Essa maneira de ler em intensidade, em relação com o fora, fluxo contra fluxo, máquina com máquinas, experimentações, acontecimentos em cada um nada têm a ver com um livro, fragmentação do livro, maquinação dele com outras coisas, qualquer coisa…, etc., é uma maneira amorosa. Ora, você leu exatamente assim. E o trecho da sua carta que me parece belo, maravilhoso, até, é onde você conta como o leu, como o usou para os seus próprios fins. Mas que pena! Infelizmente você volta rápido demais às recriminações: você não vai se sair dessa, vamos ver vocês no segundo tomo, estamos de olho, só esperando… Não, não é nada disso, já temos nossa posição. Vamos continuar porque gostamos de trabalhar juntos. Mas não será de modo algum uma continuação. Com a ajuda do fora, faremos uma coisa tão diferente em termos de linguagem e de pensamento, que as pessoas que nos “esperam” serão obrigadas a dizer: eles ficaram completamente loucos, ou são safados, ou foram incapazes de continuar. Decepcionar é um prazer. Nem de longe queremos nos fingir de loucos, mas enlouqueceremos à nossa maneira e na nossa hora, não precisam nos empurrar. Sabemos que O anti-Édipo primeiro tomo ainda está cheio de concessões, entulhado de coisas ainda eruditas e que se parecem com conceitos. Pois bem, mudaremos, já mudamos, vamos de vento em popa. Alguns pensam que vamos continuar no mesmo embalo, houve até quem acreditasse que formaríamos um quinto grupo psicanalítico. Que pobreza! Nós sonhamos com outras coisas, mais clandestinas e mais alegres. Não faremos mais concessão alguma, já que necessitamos menos delas. E sempre encontraremos aliados que queiramos ou que nos queiram.
Você me julga acuado. Não é verdade: nem Félix nem eu nos tornamos os subchefes de uma subescola. E se alguém usa assim O anti-Édipo, que se dane, visto que já estamos bem longe. Você me quer acuado politicamente, reduzido a assinar manifestos e petições, “super-assistente social”: não é verdade, e entre todas as homenagens que se deve a Foucault, está a de ter por si só e pela primeira vez quebrado as máquinas de cooptação, e de ter tirado o intelectual de sua situação política clássica de intelectual. Vocês, por sua vez, ainda estão na provocação, na publicação, nos questionários, nas confissões públicas (“confessa, confessa…”). Sinto chegar, ao contrário, a idade próxima de uma clandestinidade meio voluntária meio imposta, que será o mais jovem desejo, inclusive político. Você me quer acuado profissionalmente, porque dei aula por dois anos na Universidade de Vincennes, e porque dizem, diz você, que ali não faço mais nada. Você acredita que enquanto eu dava aula estava na contradição, “recusando a posição do professor mas condenado a ensinar, retomando a rédea quando todo mundo a havia largado”: não sou sensível às contradições, não sou uma bela alma vivendo o trágico de sua condição. Falei porque o desejava muito, fui apoiado, injuriado, interrompido, por militantes, falsos loucos, loucos de verdade, imbecis, gente muito inteligente, era uma farra viva em Vincennes. Isso durou dois anos, foi o suficiente, é preciso mudar. Então, agora que já não falo nas mesmas condições, você diz ou conta que se diz que já não faço nada, e que estou impotente, gorda rainha impotente. Não é menos falso: eu me escondo, continuo fazendo minhas coisas com o mínimo de gente possível, e você, em vez de me ajudar a não virar vedete, vem pedir que eu preste contas, e me deixa a opção entre a impotência e a contradição. Por último, você me quer acuado no plano pessoal, familiar. Aí você não voa muito alto. Explica que tenho uma mulher, e uma filha que brinca de boneca e triangula pelos cantos. E acha isso engraçado em relação a O anti-Édipo. Você também poderia acrescentar que tenho um filho logo em idade de se analisar. Se você acredita que são as bonecas que produzem o Édipo, ou o casamento por si só, é estranho. Édipo não é uma boneca, é uma secreção interna, é uma glândula, e nunca se luta contra as secreções edipianas sem lutar contra si mesmo, sem experimentar contra si mesmo, sem se tornar capaz de amar e de desejar (em vez da vontade choramingona de ser amado, que nos conduz, todos, ao psicanalista). Amores não-edipianos não é pouca coisa. E você deveria saber que não basta ser celibatário, sem filhos, bicha, membro de grupos, para evitar Édipo, já que há o Édipo de grupo, homossexuais edipianos, MLF edipianizado…, etc. Testemunha disso é um texto, “Os árabes e nós”, que é ainda mais edipiano que minha filha.
Portanto, não tenho nada a “confessar”. O sucesso relativo de O anti-Édipo não nos compromete, nem a Félix nem a mim; de certo modo não nos diz respeito, já que estamos em outros projetos. Passo então à sua outra crítica, mais dura e mais penosa, que consiste em dizer que sempre estive a reboque, poupando meus esforços, me aproveitando das experimentações dos outros, bichas, drogados, alcoólatras, masoquistas, loucos…, etc, degustando vagamente suas delícias e seus venenos sema jamais arriscar nada. Você usa contra mim um texto que eu mesmo escrevi, onde pergunto como não tornar-se um conferencista profissional sobre Artaud, um amador mundano de Fitzgerald. Mas o que sabe você de mim, uma vez que eu acredito no segredo – quer dizer, na potência do falso – mais do que nos relatos que revelam uma deplorável crença na exatidão e na verdade? Se não me mexo, se não viajo, tenho como todo mundo minhas viagens no mesmo lugar, que não posso medir senão com minhas emoções, e exprimir da maneira mais oblíqua e indireta naquilo que escrevo. E minha relação com as bichas, os alcoólatras ou os drogados, o que isso tem a ver com o assunto, se obtenho em mim efeitos análogos aos deles por outros meios? O que interessa não é saber se me aproveito do que quer que seja, mas se tem gente que faz tal ou qual coisa em seu canto, eu no meu, e se há encontros possíveis, acasos, casos fortuitos, e não alinhamentos, aglutinações, toda essa merda em que se supõe que cada um deva ser a má consciência e o inspetor do outro. Eu não devo nada a vocês, nem vocês a mim. Não há nenhuma razão para que eu frequente seus guetos, já que tenho os meus. O problema nunca consistiu na natureza deste ou daquele grupo exclusivo, mas nas relações transversais em que os efeitos produzidos por tal ou qual coisa (homossexualismo, droga, etc.) sempre podem ser produzidos por outros meios. Contra os que pensam “eu sou isto, eu sou aquilo”, e que pensam assim de maneirapsicanalítica (referência à sua infância ou destino), é preciso pensar em termos incertos, improváveis: eu não sei o que sou, tantas buscas ou tentativas necessárias, não-narcísicas, não-edipianas – nenhuma bicha jamais poderá dizer com certeza “eu sou bicha”. O problema não é ser isto ou aquilo no homem, mas antes o de um devir inumano, de um devir universal animal: não tomar-se por um animal, mas desfazer a organização humana do corpo, atravessar tal ou qual zona de intensidade do corpo, cada um descobrindo as suas próprias zonas, e os grupos, as populações, as espécies que o habitam. Porque não teria direito de falar da medicina sem ser médico, já que falo dela como um cão? Por que razão não falar da droga sem ser drogado, se falo dela como um passarinho? E por que eu não inventaria um discurso sobre alguma coisa, ainda que esse discurso seja totalmente irreal e artificial, sem que me peçam meus títulos para tal? A droga às vezes faz delirar, por que eu não haveria de delirar sobre a droga? Para que serve essa sua “realidade”? Raso realismo, o de vocês. E então por que você me lê? O argumento da experiência reservada é um mau argumento reacionário. A frase de O anti-Édipo que eu prefiro é: não, nós nunca vimos esquizofrênicos.
Afinal de contas, o que há em sua carta? Nada seu mesmo, exceto o tal belo trecho. Um conjunto de rumores, diz-que-diz, apresentados com agilidade como se viessem dos outros ou de você mesmo. Talvez você a quisesse assim, uma espécie de pastiche de boatos ressoando entre si. É uma carta mundana, bastante esnobe. Você me pede um “inédito”, depois me escreve maldades. Minha carta, por causa da sua, parece uma justificação. Assim não se vai longe. Você não é um árabe, é um chacal. Você faz de tudo para que eu me transforme nisso que você critica, pequena vedete, vedete, vedete. Eu não lhe peço nada, mas gosto muito de você – para pôr fim aos rumores.
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Publicado em
DELEUZE, Gilles. Conversações [1972-1990]. São Paulo, ed. 34, 1992. Trad. Peter Pál Pelbart.

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