HETEROGENEIDADE DELEUZE-LACAN – por Eduardo A. Vidal

Heterogeneidade é uma palavra que convém a um trabalho incessante, arriscado, aberto, a uma aposta na diferença e na multiplicidade como sinal de alerta contra a totalidade e o totalitarismo. Deleuze é um escritor que se propaga, se difunde, se bifurca, se pluraliza na indeterminação do um que não faz todo. Porém, não se quer anárquico e postula a exigência de constituir um sistema que prove que o filósofo não se lança a uma aventura irresponsavelmente e se compromete com o conceito, com a crítica do conceito. Pois o conceito é o singular, em oposição ao universal vazio, é a invenção contra a monotonia do mesmo. O conceito não recria, ele faz — é da ordem do acontecimento. As máquinas, sejam desejantes ou de guerra, são linhas múltiplas que se bifurcam e se multiplicam com seus pontos de fuga ao infinito. Assim o sistema é concebido, feito das linhas constitutivas dos acontecimentos. Uma cartografia desenha caminhos e trajetos, devires que conduzem a um ou vários lugares, sem prejulgar sobre condições e caracteres. Toda antecipação é ilusória e falseia o acontecimento: há lugar de produção, através de marcas, do acidente, do acaso.

Proponho aqui que discutamos a possibilidade de produção, a ser verificada, de uma heterogênea relação Deleuze-Lacan. Disse o pintor Francis Bacon: “talvez se manipule cada vez melhor as marcas que foram feitas ao acaso, isto é, as marcas que foram feitas inteiramente de modo irracional. Com o tempo e, trabalhando segundo o que advém, se condiciona, se reage com mais vivacidade ao que o acidente propôs. E, quanto a mim, sinto que tudo o que cheguei a amar era o resultado de um acidente sobre o qual tinha sido capaz de trabalhar”[1].

Salientarei, primeiro, três questões em Deleuze: a da linguagem, a da superfície, a do acontecimento, embora as três se atravessem e se imbriquem entre si.

A experiência de Deleuze na linguagem é radical. A invenção — que se figura na literatura mas que se estende a todo ato criador transforma a língua, revelando que ela não é unitária e abriga outra(s) língua(s). A experiência da invenção leva a linguagem até o limite em que algo responde como não-linguagem, audições e visões que pertencem ao campo do delírio, sem ser doença. Deleuze traça o projeto de uma nova clínica, uma clínica da linguagem que liberte dos estados clínicos da classificação patológica e permita interrogar, interpelar a própria linguagem. Escrever, o ato de escrever, é fazer vir à tona, à superfície, esses elementos heterogêneos, que, numa sorte de paradoxo, a linguagem não contém, mas que não poderiam ter sido produzidos sem ela. Em Espinosa, Deleuze aprende a essência do signo, não apenas como causa do sentido, mas como causador de efeito. Um efeito supõe corpos que se afetam uns aos outros. Assim, os signos, numa pluralidade categorial, são afetos de passagens, de mudanças de estados registrados por diferenças e variações, devires. Os signos estão sujeitos à associabilidade e à equivocidade, e não se deixam reduzir à extensão convencional de seu uso, pois eles não têm o objeto como referente. É do acaso próprio ao encontro entre os corpos que emerge o signo, com a alegria e a potência necessárias para a produção de um conceito. O artigo indefinido um é aquele que convém para escrever uma relação não-totalizante ao saber. Deleuze renuncia ao todo, ao Um, até mesmo à questão do sujeito, como ele diz, sem drama. Muito antes com poesia e humor.

Sermos afetados implica assumir esse caráter de superfície do corpo em relação aos outros. A superfície aspira, na filosofia moderna, à forma clara e distinta cujo paradigma é o triângulo como fundamento matemático do sujeito do conhecimento. Essa superfície, que escreve o ideal do espaço euclidiano, rejeita as complexidades dos corpos não homogêneos, dos planos superpostos, lisos e estriados, feitos de sulcos e de dobras, relançando-se uns nos outros. É disso que se trata nos corpos libidinais e erógenos. Com Foucault, Deleuze recorre à topologia para pensar o outro como exterioridade: “a vida, o trabalho, a linguagem surgem no início como forças finitas exteriores ao homem e que lhe impõem uma história que não é a sua. É num segundo momento que o homem se apropria desta história, e faz de sua própria finitude um fundamento“[2] Esse segundo tempo, o da apropriação do Outro, se realiza como topologia da dobradura (doublure) e da dobra (pli). O espaço da subjetivação se constitui pela prega (plissement) do fora. É do fora (dehors), como limite, que o ser se prega, sendo a relação a si homóloga à relação com o fora, onde, à maneira do traço barroco, “a dobra infinita” separa, passa entre o exterior e o interior. “A topologia geral do pensamento”, que começava já “na vizinhança” das singularidades, termina agora na prega (plissement) do fora para o dentro: “no interior do exterior e inversamente”, dizia a História da loucura. “[…] todo o espaço do dentro está topologicamente em contato com o espaço do fora, independente das distâncias e sobre os limites de um ‘vivente’ e esta topologia carnal ou vital, longe de explicar-se pelo espaço, libera um tempo que condensa o passado no dentro, faz advir o futuro no fora, e os confronta ao limite do presente vivente.”[3] A topologia, pensar de outro modo, um Outro pensar, que inclua a multiplicidade e não se queira fechado sobre si mesmo nem aberto a uma infinitude ilimitada. O signo transborda o pensar: é força que impele e compete; é o impensado que exige pensar. A dobra presentifica a diversidade da intrusão do fora e seu desdobramento em múltiplas linhas de pensamento. Signo e pensamento não fazem relação nem acordo: encontro heterogêneo e discordante, determinante da produção de novos enunciados em resposta ao hiato e à diferença.

Com Deleuze, a filosofia é acontecimento. Em ato, o que está em questão são os corpos sem que linguagem e pensamento deles consigam fazer representação, significação ou significado. Um acontecimento não é a história. Ele é histórico em um certo trajeto do devir, mas logo excede, explode qualquer significação histórica para afirmar-se singular. “E filósofo aquele que se torna, quer dizer, aquele que se interessa por essas criações muito especiais, na ordem dos conceitos.”[4]

“Nunca passei pela estrutura, nem pela linguística ou a psicanálise, pela ciência ou mesmo pela história, porque creio que a filosofia tem seu material bruto, que lhe permite entrar em relações exteriores, desse modo muito mais necessárias, com essas outras disciplinas.”[5] O trabalho de Deleuze operaria como um ponto fora-linha necessário, precisamente pela crítica que faz ao discurso analítico, sem incluir-se nele. Há uma heterogeneidade entre a filosofia e o discurso analítico, heterogeneidade que não significou para Deleuze uma recusa da psicanálise. Deleuze não ficou alheio à comoção que a invenção freudiana do inconsciente provocou nos saberes de nosso século. O inconsciente deveria, na sua crítica, ser pensado como máquinas desejantes, percursos e redes que, longe de aprisionar o sujeito na sua alienação familiar, o coloquem na mais radical exterioridade a si mesmo. 

A descoberta da psicanálise é mesmo o desejo, as maquinarias do desejo. Isso não pára de vibrar, de ranger, de produzir numa análise. E os psicanalistas não cessam de armar máquinas, ou de rearmá-las, sobre fundo esquizofrênico. Mas talvez eles façam ou desencadeiem coisas das quais não têm clara consciência. Talvez sua prática implique operações esboçadas que não aparecem claramente na teoria. Não há dúvida de que a psicanálise colocou a perturbação no conjunto da medicina mental; ela desempenhou o papel da máquina infernal. Pouco importa se desde o início houve acomodações; isso produzia a perturbação, impunha novas articulações, revelava o desejo.“[6]

Que Freud localizasse essas máquinas desejantes na cena edipiana foi, sem dúvida, o ponto de partida de uma série de equívocos que a interpretação analítica não cessa de propagar. Surge, em 1972, o Anti-Édipo, que, ao resgatar o desejo, fazia uma importante delimitação: o complexo de Édipo é coerente com a concepção de mundo que o neurótico tem de suas relações familiares, e reduzir a psicanálise a sua função só consolida a alienação própria da neurose. É da psicose, enquanto corpo sem órgão que a psicanálise teria muito a esperar, localizando com precisão o conceito de pulsão: corpos erógenos, mal compostos na imagem que suporta as forças libidinais dos orifícios corporais. A crítica se estendia ao que seria, na concepção de Deleuze e Guattari, homólogo ao Édipo freudiano: a noção de estrutura de linguagem e de significante proposta por Lacan. Cabe aqui citar Deleuze: “Com seu inconsciente-máquina (Guattari) falava ainda em termos de estrutura, de significante, de falo etc. Era forçosamente assim, já que ele devia tantas coisas a Lacan (eu também). Mas eu me dizia que isso andaria melhor se encontrássemos os conceitos adequados, em lugar de utilizarmos noções que não são as do Lacan criador, mas aquelas da ortodoxia que se fez em torno dele. É Lacan quem diz: não me ajudem. Iam ajuda-lo esquizofrenicamente. E nós devemos muito a Lacan, certamente, tanto mais que renunciamos a noções como as de estrutura, de simbólico ou de significante, que são completamente inexatas, e que Lacan, ao contrário, sempre soube virar para mostrar-lhes
o avesso“[7].

O desejo, Freud o extraiu do discurso da histérica. O desejo na histeria é recalcado, fazendo retorno nas formações de sintoma. O sintoma, pela prática que Freud nomeou psicanálise, é retirado do olhar médico e constituído na dimensão do discurso. Freud inventou um dispositivo de palavra em que o sintoma se abre à realidade do inconsciente, que é sexual. O desejo inconsciente é fixado, no procedimento próprio da neurose, às constelações edipianas, numa espécie de huis clos incestuoso. A revelação do sentido do sintoma provocou uma profunda comoção nos pacientes de Freud, no saber médico e na cultura vitoriana. Com o passar do século, a surpresa desse novo saber foi mitigada pela repetição burocrática de interpretações “psicanalíticas”, e a virulência da prática instituída por Freud foi atenuada pelos projetos de psicologias de cunho adaptativo.

O desejo resta atrelado, na neurose, ao domínio de pai e mãe. No entanto, essa não é a experiência da psicose, onde o delírio é o mundo, nem a da estética da perversão, onde a máquina desejante quer extrair do Outro o âmago de seu gozo. O desejo provém do fora, dos pontos de encontro com signos que transformam o sujeito. O desejo não é falta, mas máquina produtiva. Uma clínica do desejo segue seus “agenciamentos” e escreve sua cartografia. “Uma concepção cartográfica é muito distinta da concepção arqueológica da psicanálise.“[8]

Deleuze critica a prática analítica, mostrando que “o que as crianças dizem” — título de seu artigo — é diferente do que Freud e Melanie Klein interpretam. A psicanálise insiste em um único ponto de vista. Para Freud, Hans deseja deitar com a sua mãe. Richard é analisado por Klein a partir da perspectiva do inconsciente como substância e qualidade. Porém, Hans e Richard falam outras coisas: mapas e personagens que excedem o âmbito familiar. Deleuze sustenta que o inconsciente não é apenas um investimento libidinal dos pais. Em todo caso, os pais são um meio, entre outros, que a criança aprende a percorrer. “A libido não tem metamorfoses, mas trajetórias histórico-mundiais.”[9] Quando a interpretação freudiana assimila, no caso Hans, a identificação do cavalo com o pai, desconhece a força animal que impulsiona o desejo. O investimento libidinal recai sobre algo que se apresenta com o artigo indefinido: um cavalo, um animal. Trajetos e percursos desenham um mapa intensivo que não resulta de uma extensão da imagem corporal, mas que constitui essa imagem como permanente mutação. O inconsciente e o corpo não são um interior que se projeta e se estende. É do fora que os desejos inconscientes se produzem como um devir.

Para Deleuze, imaginário e real se superpõem de modo que a imagem virtual recubra o objeto real e, inversamente, o real produza sua própria imagem virtual. Uma análise mais precisa da função de recobrimento da imagem em relação ao real permitiria situar a angústia no caso Hans, no momento em que emerge, através da imagem especular, o objeto a não-especularizável. A crítica de Deleuze à interpretação psicanalítica desconsidera a função da angústia nos dois casos. Se o desejo na neurose é algo mais do que um fluxo inibido, devemos escutar na angústia o momento de sinalização da causa do desejo.

Lacan é freudiano no sentido radical do termo: o inconsciente é um saber não sabido que se determina em ato, sempre falho, como divisão do sujeito. O inconsciente é um corte entre sujeito e Outro, borda de pulsação entre abertura e fechamento que supõe a necessidade lógica do recalque originário (Urverdrängung) no ato de sua emergência. A invenção freudiana do inconsciente encontra em Lacan sua formalização e sua escritura. O conceito de inconsciente é radicalmente exterioridade, que se distingue das noções de interior, dentro e conteúdo, tão de acordo com o fascínio que a esfera exerce sobre o pensamento. Lacan faz a torção necessária que escreve o Inconsciente como corte e borda, esvaziado de substância e de representação. Uma topologia torna-se necessária, a do plano projetivo, que possa figurar a premissa do inconsciente freudiano de não incluir-se no espaço-tempo kantiano. A banda de Moebius, resultante de um corte do plano projetivo, dá suporte, no espaço de três dimensões, ao sujeito de única borda que não possui nem “dentro” nem “fora”: o inconsciente como pulsação temporal. A invenção do inconsciente tem lugar num momento preciso da interrogação do campo do Outro, operada pela lógica matemática e cuja consequência é o esvaziamento desse campo. A formalização da lógica aristotélica empreendida por Frege desemboca no paradoxo de Russell. Gödel colocará em evidência que a consistência da aritmética implica um limite, a incompletude, e, ainda, que no interior desse sistema a consistência não pode ser demonstrada.

O Outro, diferentemente de Hegel, é o lugar onde o saber falha. Não há saber da morte e do sexo no inconsciente. A linguagem tenta suprir a ausência de relação no inconsciente e, como enuncia Lacan, “é pensável que toda a linguagem não seja feita, se não para não poder pensar a morte que, com efeito, é a coisa menos pensável que possa existir”[10]. O Outro é suposto desejar, e o sujeito deseja enquanto Outro. O desejo é alteridade e exterioridade, intrusão e estranheza. A incidência como um raio do desejo do Outro Freud denominou acontecimento traumático. Dessa irrupção desejante do “fora”, o sujeito é efeito evanescente e fugaz. É como enigma, esfinge e vertigem, que o desejo interpela cada um, constituindo-se o sujeito como resposta.

Que o inconsciente seja estruturado como uma linguagem é a tese com que Lacan define a posição do inconsciente no seu ensinamento. Deleuze ataca a concepção lacaniana de significante inconsciente a partir da perspectiva do totalitarismo, que suporia reduzir o sistema plural de signos ao significante. Com a noção de significante, Lacan depurou o excesso de saber que o inconsciente supõe para o analisante e o analista. O significante não quer dizer nada, não comunica nada, não mantém relação nenhuma com o significado. É diferente de outros significantes e de si mesmo. A cadeia significante, o sujeito a padece. Padecer do significante é ser afetado por ele. Espécie de “signo passional”, o corpo se emociona, adoece, sintomatiza, angustia. O corpo é tomado na linguagem de tal modo que, para o ser falante, o significante se faz carne. O significante sem sentido mas com efeito de gozo no corpo remete à inscrição do traço no inconsciente freudiano, desprovida de significação e suporte da diferença.

O ensinamento de Lacan problematizou o campo e a função do Outro. O Outro não é completo. O Outro não responde unicamente como significante. Uma crítica tem como alvo a incompletude e a inconsistência do Outro, por considera-las posições do discurso religioso. Uma crença, no entanto, é abalada pela incidência de uma falta que introduz um buraco irredutível no sentido. E a religião é o domínio do sentido. Esse buraco produz um a-mais de satisfação. Lacan tematiza a relação de impossibilidade entre dizer e gozo: a palavra para nomear o gozo falta.

Freud, no seu Entwurf  de 1895, introduzia o termo das Ding, a coisa, no cerne de seu aparelho neurônico. A coisa, excluída do juízo e da representação, resta inassimilável. É à distância da coisa que as cadeias inconscientes se articulam. Para o sujeito, a proximidade da coisa é causa de estranheza e de horror. Ela presentifica o Outro na sua face de gozo enquanto impossível.

A crítica de Deleuze ao conceito de inconsciente formulado por Lacan recai sobre uma suposta hegemonia do significante. Essa crítica não leva em consideração que não há universo do significante, cujo correlato é a introdução da dimensão de gozo nos aparelhos de linguagem. A experiência analítica em Lacan implica o enodamento de três registros heterogêneos: real, simbólico, imaginário, sem que se deva privilegiar um em detrimento de outro. Enfatizar a primazia do simbólico em sua obra perpetua um desconhecimento. O discurso analítico, que Lacan formaliza, escreve o real da satisfação pulsional estabelecida por Freud no seu caráter problemático e paradoxal. O gozo do sintoma subverte a noção de sujeito concebida pela filosofia. A psicanálise, no anual estado de coisas, é o discurso que tem o dever ético de pontuar a função do gozo, que faz obstáculo ao significante e ao sentido, e se encontra, em princípio, excluído da filosofia.

“Ah, a miséria do imaginário e do simbólico, o real sendo sempre adiado para amanhã.” [11]

Escrever é, para alguns, uma resposta sem necessidade da pergunta. Escreve-se por imposição do real. Não se tem outra escolha. Escrever é levar uma língua até o limite, onde se revelam seus elementos heterogêneos. Escrever se aproxima do delírio. Wolfson, “o estudante esquizofrênico das línguas”, inventa um procedimento de escrita inseparável do processo de sua psicose. Ele procede à destruição da língua materna — o inglês –, que se tornou impossível de ouvir e de falar. Ele passa a inventar uma outra língua que não resulta de uma tradução, pois o ponto de partida foi abolido. Deleuze dirá que “é, talvez, o alvo secreto da linguística, segundo uma intuição de Wolfson: matar a língua materna”[12]. Ao atacar a língua, ele pretende erradicar a voz da mãe: “Não é minha língua que é materna; é a mãe que é uma língua”[13]. O que se chama “mãe” são as palavras que lhe colocaram no ouvido e os átomos que introduziram no seu corpo. Ao escrever Le schizo et les langues, Wolfson atinge os limites da linguagem mesma. “Esta história é antes o que há de ‘impossível’ na linguagem, e lhe pertence ainda mais intimamente: seu fora.”[14] Escrever é um devir. A psicose de Wolfson é uma interrupção de um fluxo vital. Contudo, Wolfson consegue fazer explorações inusitadas na linguagem. Se toda literatura é produzir uma língua estrangeira na própria língua, o procedimento de Wolfson é radicalmente destruir com outra(s) língua(s) o que ainda resiste à catástrofe na língua materna.

Transcrever-se é a “operação Wolfson”. Da abolição da língua materna à produção de escrita em língua estrangeira, Wolfson, ele próprio, se trans-escreve. Ingerimos da ferocidade do procedimento a gravidade daquilo que se deve excluir. Wolfson procura desesperadamente separar as palavras da “coisa ouvida”, descontaminá-las do gozo. Com a destruição da língua materna busca aniquilar a existência de voz. A experiência da psicose revela o estatuto da voz como condensador de gozo. No entanto, o procedimento não se reduz a sua fase de aniquilamento; ele comporta uma outra de reparação e reconstrução pela via de uma escrita, inédita e inaudita, com função de circunscrever, de produzir uma borda ao gozo intrusivo do Outro. Entre o corpo e o gozo do Outro se interpõe o texto como superfície separadora em que se localiza, através da letra, o efeito do real despedaçante. Wolfson se vale, para constituir seu procedimento, da não-correspondência entre as línguas, que torna toda tradução, no limite, impossível.

Samuel Beckett problematiza o processo de tradução quando decide escrever em inglês algumas de suas obras escritas originalmente em francês. Ele, estritamente, não traduz; escreve de novo. Paul Auster, no ensaio “From cakes to stones”, analisa o trabalho de self-translation feito por Samuel Beckett. Mercier and Camier espera bastante tempo até receber do autor uma versão em inglês, segundo Auster, mais satisfatória que o original, lembrando que “English is nevertheless Beckett’s home”[15]. A nova obra ganha em economia e concisão de palavras, confirmando que na arte de Beckett “less is more”. Escreve Auster sobre essa tradução: “is not so much a litteral translation of the original as a re-criation, a ‘repatriation’ of the book indo English”[16]. Com essa repatriação fica patente que não há um original a ser traduzido, mas um texto a ser reinventado. Uma língua, sabe Beckett, resiste; há um real em jogo que não se translada. Beckett recria sua obra com a especificidade da língua materna, fazendo vir à tona os pontos de suspensão em que a palavra se interrompe, se equívoca, se entende mal. Escrever é, na citação que Deleuze faz de Beckett, “furar buracos” na linguagem.

Freud apresentara as primeiras formulações de seu aparelho psíquico em termos de operações de transcrição e escrita. Em carta à Fliess de 6 de dezembro de 1896, analisava as sucessivas extratificações dos traços de memória, sendo esses reordenados periodicamente. E do fora como percepção que o aparelho é afetado, produzindo-se o primeiro registro, indicado com as letras Wz, que correspondem à primeira escrituração (die erste Niederschrift) dos signos de percepção (Wahrnehmungzeichen). Estes signos são sempre pontuados enigmaticamente, de acordo com o como se é afetado pelo desejo do Outro. As notícias do próprio corpo também fazem parte desse exterior. Os corpos se afetam à maneira de uma língua; eles são corpos falantes. Só há encontro com afetos e sintomas sob o regime da contingência; disso se escreve um traçado, se marca uma inscrição, rastro e vestígio de “coisas vistas e ouvidas”, mas não compreendidas nem reconhecidas. O seguinte registro, cuja notação é Ub (Unbewusste), o inconsciente, consiste numa segunda escritura (die zweite Niederschrift) dos signos de acordo com relações causais de outra ordem. As letras Vb (Vorbewusste) designam o pré-consciente como terceira transcrição (die dritte Umschrift ), articulada a representações de palavras. O aparelho psíquico registra rastros da palavra gozante. O inconsciente é o traço de uma perda decantada como escritura: o prefixo nieder, abaixo, assinala o caráter de precipitar, assentar, próprio do ato de escrever. Há a ilusão de que algo cesse ‘de não se escrever, que finalmente se escreva. O inconsciente freudiano escreve em torno de uma opacidade radical que não encontra sentido, algo ausente ao sentido (ab-sens), fora sentido (hors-sens), indessenso (inde-sens). O inconsciente faz disso (das Es, na tópica freudiana), equívoco, mal-entendido, chiste. O ganho de prazer (Lustgewinn) é o excedente pelo fato de sermos falantes, um mais-de-gozar nos aparelhos de linguagem que habitamos.

A questão do sujeito, em psicanálise, é correlativa a uma série de escritas heterogêneas e heterotópicas. O inconsciente é o conceito decorrente da instauração de um traço que se repete como diferença. Algo escreve no sujeito sem que se transcreva inteiramente na palavra nem seja integralmente lido. Há hiato entre as diferentes escrituras. Uma escrita é sempre parcial, em relação a uma linguagem e a outras escritas: ela encontra a dimensão do real. O impossível está no cerne da escrita. Escreve-se do impossível, não apenas como limite mas como causa. Heteros designa o Outro como diferença absoluta, como real. O “procedimento Wolfson” desmistifica a noção romântica da escrita como escolha do sujeito. Escreve-se por imposição do real. Escrever é exigência de linguagem, do real de uma língua. Um sujeito implica sempre uma escrita: ele é o que de uma língua, inscrevendo-se, se particulariza. O tempo é inerente à escrita. Freud traz com o conceito de inconsciente uma nova temporalidade dos processos psíquicos. Comandada pela exigência de um real traumático, tem lugar a reordenação periódica dos signos, a posteriori (nachträglich), em resposta a isso que não cessa de se escrever. A posição do inconsciente difere daquilo que o substancializa ao concebê-lo concluído na infância. Uma psicanálise opera, precisamente, produzindo o inconsciente em ato pela função “desejo do analista”.

O inconsciente é feito do que Lacan nomeou alíngua. A proposição d’alíngua decorre do inconsciente estruturado como uma linguagem. “Como uma” se opõe a que a linguagem seja o que o discurso da ciência define. Não há a linguagem mas o efeito de uma, do qual se determina a incidência do real. O discurso analítico cinge um real específico do falante, aquele que se transmite na sentença: “não há relação sexual”. Disso resulta que o gozo do Outro, de seu corpo, é sempre inadequado, já seja perverso, ao ser reduzido a objeto a, já seja louco e enigmático, pela ausência radical de significante para nomeá-lo. O real introduz ao artigo indefinido um, a um corpo que se fragmenta em órgãos no encontro com o gozo. Alíngua é o precipitado desse real no curso do tempo. “Uma língua entre outras não é nada mais do que a integral dos equívocos que sua história deixou persistir nela.”[17] Alíngua que o inconsciente habita e que se revela em lapsos, chistes, equívocos, que não servem nem à comunicação nem ao diálogo; não estabelece relação com o objeto referente. Os efeitos de uma língua escapam à ciência e ao próprio sujeito, produzindo uma série de afetos enigmáticos. Estes resultam d’alíngua enquanto o inconsciente é um saber que, ao articular-se, goza com isso. “[…] o inconsciente é um saber, um savoir-faire com alíngua. E, o que se sabe fazer com alíngua, ultrapassa de longe aquilo do que se pode dar conta à título de linguagem.”[18] Michel Leiris testemunha o instante preciso em que desperta ao sentido real de uma palavra d’alíngua: “…reusement”. Fora de qualquer intenção de comunicação, essa expressão reservada à intimidade de seus jogos infantis, repetida no jogo de guerra dos soldados de chumbo, faz parte do tesouro de um saber da infância e, na maturidade, o força a escrever as belas páginas de seu texto. Essa palavra é um afeto de comoção, um acontecimento do encontro com o Outro. “Pois essa palavra mal pronunciada, e sobre a qual acabo de descobrir que não é na realidade o que acreditei até então, me colocou num estado de sentir obscuramente — graças à espécie de desvio, de intervalo que foi, por esse fato, imprimido a meu pensamento — no qual a linguagem articulada, tecido aracnídeo de minhas relações com os outros, me ultrapassa brotando por todos os lados suas antenas misteriosas.” [19]

A filosofia é o trabalho do conceito. Deleuze concebe a filosofia como acontecimento. A heterogeneidade concerne os signos que a partir de um exterior nos afetam. O encontro com os signos não tem relação ou correspondência com o pensamento. Não se trata de reconhecer algo que o pensamento sabe. A ilusão da linguagem é pretender-se completa e buscar enunciar o todo. Manter-se na dimensão do acontecimento implica postular a indefinição do artigo um. A topologia da vizinhança possibilita delimitar zonas de indiferenciação e de indicernibilidade que a escrita pode aproximar sem compromisso com a coerência ou a síntese. É de “entre” outros que um homem ou um animal se exprime na linguagem. Uma escrita é devir, o inacabado fazendo-se, tornando-se. Escrever é inventar algo que falta, “um povo que falta”. Escrever é levar a língua até o limite, onde ela é transtornada e não se reconhece mais, deparando-se com seu fora, seu avesso, feito de visões e audições. Esse fora é radicalmente exterior, radicalmente fora, já que as visões e audições não pertencem a língua nenhuma. “Quando a língua está tão tensa que ela se põe a gaguejar, ou a murmurar, balbuciar[…], toda a linguagem atinge o limite que desenha seu fora e se confronta ao silêncio.”[20]

A partir de outro discurso, o analítico, Lacan indaga o intervalo de onde responde um pedaço de real. O silêncio não está no limite da linguagem; ele atravessa o dizer. A palavra falta para dizer-se toda, para enunciar uma verdade que só se pode meio dizer. Trata-se de dar o estatuto ao intervalo quando algo já não responde como palavra. O próprio de uma linguagem consiste em encobrir o hiato, mascarar a separação, fazendo supor que há relação entre os significantes que copulam no inconsciente. Se a cadeia significante faz uma série em que o um se repete produzindo a ilusão de completude, aqui nos deparamos com o “entre”, o buraco, a hiância onde a questão do desejo do Outro se coloca para o sujeito. O silêncio produz a voz na sua função de causa do desejo. “A linguagem pode ser concebida como o que prolifera no nível da não-relação, sem que se possa dizer que essa relação existe fora da linguagem“[21].

Deleuze e Lacan conduzem, respectivamente, a experiência da filosofia e da psicanálise ao encontro com a ruptura, a diferença, a falha. Não há conciliação possível. É necessário produzir a heterogeneidade em que os conceitos se inscrevam nas suas diferenças.


NOTAS

  1. Francis Bacon, L’art de l’impossible; Entretiens avec David Silvester, Genebra, Albert Skira, 1995, p. 111.
  2. G. Deleuze, Foucault, Paris, Minuit, 1986, p. 94, nota.
  3. Idem, p.126.
  4. G. Deleuze, Pourpalers, Paris, Minuit, 1990, p. 41.
  5. Idem, p. 122.
  6. Idem, p. 27.
  7. Idem, p. 24.
  8. G. Deleuze, Critique et Clinique, Paris, Minuit, 1993, p. 83.
  9. Idem, ibid.
  10. Jacques Lacan, “lmprovisation — Désir de mort, rêve et réveil”, transcrição de notas de C. Millot, L’Âne, Le Magazine Freudien, nº3, Seuil, Paris, 1981, P. 3.
  11. G. Deleuze e C. Parnet, Dialogues, Paris, Flammarion, 1977 [nova edição aumentada, 1996], p. 63.
  12. G. Deleuze, Critique et Clinique, p. 21.
  13. Idem, p. 30.
  14. Idem, p. 32.
  15. Paul Auster. “From cakes to stones: a note on Beckett’s French”, The art of hunger, USA, Penguin Books, 1992, p. 88.
  16. Idem, ibid.
  17. Jacques Lacan, “L’étourdit“, Scilicet, nº 4, Paris, Seuil, 1973, p. 47.
  18. Jacques Lacan, Le seminaire, livre XX, encore, Paris, Seuil, 1975, p. 127.
  19. Michel Leiras, Biffures. La règle du jeu I, Paris, Gallimard, 1994, p. 12.
  20. G. Deleuze, Critique et clinique, p. 142.
  21. Jacques Lacan, “lmprovisation — Désir de mort, rêve et réveil”, op. cit. p.3.

FONTE

VIDAL, Eduardo. A heterogeneidade Deleuze-Lacan. In: Gilles Deleuze: uma vida filosófica (org. Éric Alliez). São Paulo: Ed. 34, 2000.

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