Este artigo pretende realizar uma crítica a uma psicanálise que se sustenta em uma lógica binária, fálico/castrada, reduzida ao discurso, buscando recuperar nos conceitos freudianos a força transgressiva que caracterizava a psicanálise em seus começos. Para tal, empreende-se uma trajetória pela ideia de imagem sem representação discutida por Didi-Huberman em suas considerações sobre as proposições de Warburg. Articulando tais considerações ao conceito de pulsão em Freud, assim como às proposições feitas por Haag, Polack & Sivadon e Winnicott, pretende-se colocar em cena o corpo, na contramão de uma perspectiva reduzida ao racional, apontando o saber-do-corpo¹ como aquele que poderia devolver vida à vida.
O que importa primordialmente é o impulso rítmico mutante de uma temporalização capaz de fazer
manter juntos os componentes heterogêneos de um novo edifício existencial. (GUATTARI, 1990, p. 16)
Este artigo se propõe a problematizar o modo como se constituiu a concepção de imagem no saber moderno, discutindo a perspectiva reducionista a que esta foi submetida pela apreensão e produção de conceituações e ideias, a partir do pensamento determinado pela razão clássica.
Acompanhando grande parte das produções teóricas e práticas legitimadas pelo saber psicanalítico, podemos observar como a produção de sentido, reduzida à imagem-representação, irá tomar de assalto as elaborações teóricas das principais escolas da psicanálise.
Aderidos ao Édipo, definindo-se por estruturas, em uma lógica binária, no modelo fálico/castrado, ou ainda nos discursos mais atuais referenciados aos afetos e ao corpo, nos vemos frente a uma clínica prisioneira de leituras que evocam o mesmo lugar de verdade sobre o sujeito, tendo como seu propósito a cura através de práticas normalizadoras. Este fazer se desdobra em resultantes mutiladores.
Tais perspectivas se encontram atravessadas por um fechamento ao campo do Fora² e formulam suas teorias na impossibilidade de acessar o corpo em seu campo intensivo, campo das forças, da formação das formas como produtor de desvios à captura do significante.
Para problematizar a constituição do psiquismo entendido a partir da imagem-representação, tomamos como referência o trabalho desenvolvido por Didi-Huberman (2013), em seu livro A Imagem Sobrevivente. O autor constrói provocações delicadas ao caminho trilhado pelo pensamento ocidental, utilizando as elaborações realizadas pelo artista Warburg, entre o final do século XIX e começo do século XX, mostrando como um pensamento – que se opunha à lógica da forma – finda por sucumbir à necessidade de verdade e fundamento justificada pela razão. Warburg versus Cassirer. “Enquanto Warburg só encontrava, diante de seus objetos de estudos, esquizes da alma, Cassirer procurou imediatamente uma unidade do espírito.” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 373).
Enquanto o homem das Luzes acreditava no progresso da ciência, a ponto de prolongar a crítica da razão kantiana numa “crítica da cultura” o homem do claro-escuro (Warburg) se assim posso batizá-lo, ousou inverter a “crítica da razão pura” no que chamava da “crítica da desrazão pura” [Kritik der reinen Unvernunft]. Era um modo de procurar as Luzes, porém tragicamente: na constatação melancólica de que “os monstros” resistem, ou melhor, sobrevivem a todos “os progressos da razão”. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 376).
Na esteira da construção kantiana da razão pura, encontramo-nos com uma psicanálise na sua busca pelo homogêneo, pela verdade, pela estrutura determinando um sujeito que, no desejo produzido pela falta, nada afirma a não ser a ausência da existência em busca do transcendente. A vida reduzida ao mesmo revela que algumas das sociedades de psicanálise, nos tempos atuais, se organizam como seitas religiosas, dizendo-se portadoras da verdade freudiana. E ainda outras, apesar de suas críticas valentes ao reducionismo teórico e prático, continuam não conseguindo escapar da lógica do discurso, do sentido, da noção de um inconsciente como interioridade.
Segundo Didi-Huberman (2013), Warburg realiza uma perturbação em um campo de produção de sentido, onde o caos e a imagem como força possam se presentificar. Na sua argumenção, esse artista irá instigar um simbólico esvaziado de sua potência criadora, fazendo surgir a turbulência e a obscuridade como constituinte, um percurso sempre em fazimento em que o caos e a ordem não se colocam em oposição, mas em movimento contínuo, metaestável.
No capítulo “Da empatia ao signo”, do livro de Didi-Huberman (2013), o autor nos diz que a imagem sobrevivente é “a plasticidade essencial da matéria simbólica, graças à qual possam estabelecer-se ligações, montagens rizomáticas entre o presente, o tempo histórico (faz muito tempo) e o tempo mítico (há um longuíssimo tempo)” (p. 361). Ele nos diz que a imaginação é algo que se aproxima de um lugar que nos porta ao contínuo fazimento de mundo, pelos agenciamentos estabelecidos com as “relações íntimas e secretas das coisas” (p. 365).
Para Warburg, a imagem é o que acontece entre os signos e o corpo, é uma experiência corporal:“o símbolo trabalha e oscila entre a preensão corporal e a compreensão à distância” (p. 366). O simbólico, afirma o autor, se constitui na temporalidade, corporalidade e densidade da experiência empática “entre o pathos vivenciado e logos elaborado” (p. 363).
Ainda nesse texto, o autor nos lembra de que em Totem e Tabu (1913), Freud propunha a constituição do sintoma como campo de operação do simbólico na elaboração do luto pelo irreparável: o sobrevivente frente ao cadáver lança mão de um afastamento, transformando a experiência empática em distância, pelo pensamento lógico.
Na leitura dos textos freudianos, por vezes nos deparamos com pequenos desvios, grandes abismos, momento de obscuridade e perplexidade. Instantes de transgressão e crítica que nos permitem avançar nesta matéria tão cansada de abusos que é a psicanálise. Tomada como bandeira de ordem, faz proliferar as práticas fascistas e, tornando-se um psicanalismo – como mais um dos exercícios de poder e verdade das sociedades capitalísticas –, faz com que nos afastemos do campo sempre inaugural da teoria que é a clínica.
Neste sentido, as críticas à psicanálise feitas por Deleuze e Guattari, entre outros, têm sido bem-vindas ao nos acordar de um marasmo pela repetição e interdição aos vínculos criadores que se estabelecem na comunicação entre quem fala e quem escuta.
Jean-Claude Polack e Danielle Sivadon, em seu livro A íntima utopia (2013) discutem a clínica da psicose realizando interessante argumentação em favor deste lugar esquecido que é o corpo em suas derivas. Para tal, evocam a psicanálise e seus caminhos e descaminhos na direção de determinadas proposições que se aproximam de uma noção de inconsciente, a partir “[d]as exigências ético-estéticas [que] substituirão as hermenêuticas do discurso, os impasses da significação” (POLACK, SIVADON,2013, p. 17).
Haag (2003), em seu artigo “O teatro das mãos”, relata seu trabalho com uma criança autista, acrescentando maior compreensão de seu olhar clínico através dos jogos primários da “ligação língua/mamilo/olho a olho penetrante que remete à transformação” (HAAG, 2003, p. 15). A autora nos propõe pensar os movimentos embaralhados das mãos do bebê como jogos de constituição subjetivas, de um encarnado oriundo das experimentações vividas.
Em suas considerações metapsicológicas, Haag nos traz contribuições importantes para a clínica, convocando as experiências sensórias do corpo, a partir da ideia “da ligação sonoro pré-natal […] que parece sustentar bastante a nova qualidade penetrante/permutante dos olhares que permitem a restauração […] do esqueleto interno do eu/corporo-psíquico” (HAAG, 2003, p. 19). Assim, também a motricidade, pela sensibilidade labiríntica, entre outros, as ritimicidades, os movimentos pulsionais, criariam as formas basais. Enfim, “a formação das formas seria inicialmente esta geometria primitiva […] (ritmicidades, contorno, estrutura radial, eixos) projetada sobre o corpo, a arquitetura e os objetos e que permitem sua própria objetalização” (HAAG, 2003, p. 20).
Portanto, cabe dizer que esses autores apontam para o fato de que o sujeito já não se define como indivíduo, a partir de sua interioridade, e sim pelos campos de força que o afetam, colocando em cena a dimensão dos agenciamentos coletivos de enunciação como campo a ser investigado na produção do inconsciente, imagens e pensamento constitutivos dos sujeitos, imagens sem representação, sensações, movimentos, gestos em contraposição ao sujeito entendido como assujeitado “aos jogos do significante” (POLACK, SIVADON, 2013, p. 16).
Outros autores também, em suas construções teóricas dentro do campo psicanalítico, produziram desvios ao pensamento hegemônico, opondo as forças motoras, imagéticas e vibráteis do corpo de modo a abrir a trava do significante e da estrutura, forçando o pensamento a pensar. Não há forma sem formação, este é o lugar para o qual DiDi-Huberman (2013) nos chama atenção através de Warburg.
O caminho trilhado por exemplo, por Winnicott, nos traz estudos sobre a constituição do sujeito, contemplando um processo que se dá a partir de um estado inicial caótico, empático, em que as experiências marcam – através do corpo – os caminhos para o desabrochar do imaginário precursor e favorecedor do pensamento simbólico.
Esse percurso não é entendido por Winnicott como um território que vai deixando para trás as experiências primeiras, mas está sempre atualizando-as nos atravessamentos vividos nos encontros com o mundo. Para esse psicanalista, na busca por uma clínica ativa, em que a noção de acolhimento e partilha supera a proposta discursiva, interpretativa, a questão pulsional é abordada de modo a colocar em evidência o campo das forças, na medida em que trabalha com a ideia de impulso, motricidade, ritmo. A nova produção de sentido por ele atribuída ao campo pulsional abre perspectivas para uma aproximação dos conceitos evidenciados por Didi-Huberman (2013), ao trabalhar as diferentes lógicas de Warburg e Cassirer sobre a formulação do campo simbólico.
Nomeamos “atritos” a capacidade de o corpo ser afetado pelas múltiplas formas do próprio existir. Atritos que se realizam em função da abertura para os acontecimentos, entendidos aqui como incorporais manifestos em suas materialidades. Coloca-se em cena, assim, o acontecimento que, ao se inscrever na lógica contrária à previsibilidade, opera um furo na construção racionalista que ordenou os campos do saber na modernidade.
Deleuze (2000) nos fala dos acontecimentos, e podemos entendê-los como estados de graça, como quando somos iluminados por novas possibilidades de existir no mundo. O acontecimento é algo que se passa na superfície de um corpo, a partir dos acasos, e que faz com que haja chance de transformação no contato com o outro. É através do encontro dos corpos, nas suas singulares diferenças, que a vida se manifesta como potência expansiva.
Um acontecimento é um crivo que sai do caos (DELEUZE, 2000), entendido aqui como conjunto de possíveis; de todas as essências individuais, de todas as percepções possíveis, extrai dele diferenciais capazes de integrar percepções – o acontecimento é uma vibração. O acontecimento atualiza o potencial. Assim, podemos dizer que cada corpo constrói sua forma de existir, e que a força de sua permanência no mundo depende de seus encontros e da possibilidade de manifestar as misturas singulares oriundas desses encontros.
Pensando a clínica como processualidade, onde necessariamente se inscreve a noção de acontecimento, algumas perspectivas psicanalíticas atuais propõem conceitos a partir da ideia do coletivo, tendo que se haver com a corporeidade que, na sua constituição de fronteira, caminha em um campo instável, obscuro e opaco. Esse modo de produção se coloca em oposição à clareza e à segurança buscada em um saber legitimado pela racionalidade e pela decifração, e desta maneira finda por tonar o conhecimento imobilizado e insuficiente para dar conta da mobilidade/ritmo característica do sujeito em sua transformação perene.
Ressaltamos, ainda, que no que tange ao saber psicanalítico, cabe observar os jogos de poder que se estabelecem no modo de aproximação das contribuições conceituais, produzidas, por exemplo, nas escolas de formação psicanalítica. Estas, ao transmitirem seu conhecimento como crivos de verdade sobre a clínica, sobre o sujeito, geram lutas intermináveis de poder que se realizam através de constrangimentos às produções diferenciais, seja pela desvalorização dos diferentes modos de abordar a constituição do sujeito, seja pela desqualificação profissional e/ou pessoal daqueles que utilizam outros referenciais teóricos diversos do que é legitimado por dada instituição e pensamento.
A pesquisa psicanalítica repensa hoje com renovado interesse e mais força e vigor o ambiente e a sua importância no nascimento da vida psíquica. Área em direção à qual o nosso pensamento de algum modo ainda está bloqueado pelo preconceito de que um analista deve se ocupar somente da realidade psíquica, de modo que não poderíamos nos pronunciar sobre a realidade externa e sobre seu peso, sob pena de perder a nossa especificidade de analista de escuta. (BORGOGNO, 2004, p. 96).
Considerações que se tornam ainda mais agudas se não perdermos de vista o fato de que a psicanálise, desde sua formulação inicial, com Freud, surge com uma proposta transgressiva aos saberes instituídos. Esta se caracterizou pela extrema mobilidade de seus conceitos e decorrentes transformações, na medida em que se formula como um campo de pesquisa sobre produção de subjetividades – e, portanto, se localizaria nas bordas dos saberes, operando novos conjuntos como referenciais para pensar o singular e o coletivo.
É nesta perspectiva de inauguração de mundo que propomos retomar a leitura da energética freudiana, a dimensão econômica, no que tange à produção de imagens, a fim de restaurar o que se perdeu da proposta inicial da teoria inventada por Freud.
O próprio inconsciente freudiano evoluiu ao longo de sua história; ele perdeu a riqueza efervescente e o inquietante ateísmo de suas origens e voltou a centrar-se na análise do eu, na adaptação à sociedade, ou na conformidade a uma ordem significante, em suas versões estruturalistas. (GUATTARI, 1990, p. 8).
Portanto, o psicanalismo a que se refere Guattari nos lembra que é com facilidade que deixamos de lado a “riqueza efervescente e inquietante” da psicanálise e rapidamente a transformamos em prática de poder e exercício de verdade, por onde a lógica capitalista reitera a teoria e a prática, pela cegueira do que se coloca como transgressivo na teoria freudiana, ajustando-a como prática normalizadora. Essa cegueira é oriunda da redução estabelecida no campo cognitivo, decorrente do apagamento realizado ao saber-do-corpo.
Para além da imagem que fixa um conceito, imagem abstrata, imagem-representação, o saber-do-corpo povoa o imaginário da obscuridade necessária que habita a imagem e coloca, assim, no escorrega do desconhecimento lógico, o conceito em movimento. Nesta perspectiva, podemos dizer que a imagem não deve ser entendida somente como uma cópia, como um duplo, mas como um modo de ser da matéria, um movimento, uma palpitação da matéria.
São os efeitos reais de captura de um campo de forças, e não um saber das formas. Um campo de forças é oriundo do corpo anárquico, que se caracteriza por um feixe de vibrações, um corpo afetivo, intenso, que traz consigo uma vitalidade não orgânica, de modo a permitir expressar forças e potências imperceptíveis. Uma linguagem que fala antes da palavra. Este é o corpo-que-sabe: expressão utilizada por Suely Rolnik (2014) para se referir ao corpo como aquele que pode ter acesso ao campo das forças. Nossa cultura antropofalocêntrica apagou a capacidade receptiva do corpo, minguando a chance de se afetar com as forças do mundo. Este saber-do-corpo é por onde podemos acessar extratos de abertura, saindo das modelizações opressoras.
Mas é o corpo que sabe quando a vida está vingando e quando ela está minguando. Essa capacidade do corpo, que não é o corpo dos órgãos da medicina, nem do fitness, mas é esse corpo em sua vulnerabilidade ao mundo. Essa capacidade é a nossa principal bússola, é o nosso principal instrumento que como vivos humanos temos – e o animal tem também. Então batalhar pela ativação dessa capacidade é o foco principal de uma luta micropolítica. (ROLNIK, 2014, s/p).
Este apagamento do saber-do-corpo em acessar suas memórias resulta num saber que fixa as imagens em modelizações e que fazem da percepção o órgão privilegiado de acesso ao conhecimento. Fecha seu campo cognitivo, que, reduzido às representações, às imagens-forma, obtura o acesso às imagens-força, às imagens-acontecimento.
O aspecto real do imaginário está, justamente, no fato de que as imagens devem ser tomadas de modo “literal”, e não significante, por entender que elas se produzem por extração, e não por abstração. As imagens, portanto, não devem ser reduzidas a uma significação, sobretudo discursiva. Operando por contágio, no acesso ao campo das forças, solicitam o pensamento pela sensação. Podemos dizer, ainda, que os processos de produção de imagens são extratos de devires reais do corpo social.
Warburg, segundo Didi-Huberman (2013), nos trouxe a possibilidade de ir a contrapelo da ideia dominante, hegemônica, da imagem reduzida ao campo da representação e, portanto, da imagem como abstração. Esta revisão nos permite sair do paradigma cientificista que vem dominando as ciências humanas durante alguns séculos e aproximarmos uma nova leitura ético-estética ao saber clínico, tornando possível conectar-se a um campo de produção e pensabilidade oriundo do campo das forças, que veicula modos singulares de subjetividades, uma cartografia composta de “referenciais cognitivos, mas também míticos, rituais, sintomatológicos” (GUATTARI, 1990, p 9). Enfim “a alma da palavra” (p. 12).
Neste sentido, cabe sublinhar que colocar em cena a imagem-acontecimento é evidenciar a força de um imaginário como capaz de extrair do real elementos invisíveis, que perfuram o lugar comum dos mesmos e, confrontando paradoxalmente as imagens dogmáticas, criam desvios necessários à produção de pensamento. Guattari (1990) nos fala da produção de imagem, ressaltando que seu tipo de inteligibilidade não se efetua sobre um plano estrutural de um sistema simbólico, nem fantasmático, na medida em que opera com a lógica da sensação.
Essa dimensão sensorial fará, necessariamente, rever a posição do psicanalista e aproximá-lo de uma percepção em que é menos o texto e mais as vivências do corpo – ou seja, a comunicação discreta que habita o setting. Tal perspectiva nos fala do respeito ético à diferença que se conquista. Entre a relação de objeto e o uso de objeto, um corpo é fabricado inscrevendo o sujeito na chance de abraçar sua existência e realizar a proposta nietzschiana de fazer da vida uma obra de arte.
Uma postura globalmente interpretativa, amnésica, deve delimitar uma zona de verdade, de significante-chave. Uma cartografia analítica, pelo contrário, só pode trabalhar num movimento expansivo, não orientado, miscelaneo. (POLACK, SIVADON, 2013, p. 21).
O saber-do-corpo, diferentemente do eu identitário, implica-se na dimensão dos ritmos singulares do existir; é o tempo que escoa, é a porta pela qual podemos acessar as memórias dos afetos que toda palavra contém; as forças das formas, a alma da palavra. É a experiência da duração que só pode ser apreendida pelo movimento do movimento dos corpos.
A vida vibra em uma existência rica de afetos; afetar-se é desdobrar-se; são as exigências do presente, com suas sucessões de imperativos que nos fazem buscar novas emoções, permitindo nos tornarmos outro. Apropriados desse corpo vivo, torna-se possível viver a experiência de poder perder, perder-se para vibrar a cada deslocamento, afirmando-o. Como o gesto de um dançarino que, por um instante, marca sua existência e logo segue outra trajetória.
Ressaltamos que, para que isto se opere, é necessário um ambiente em que as trocas sejam horizontais, em que as políticas estejam visando à vida em todos os planos de produção. Neste sentido, é ainda Guattari (1990, p. 17) quem nos diz: “A única finalidade aceitável das atividades humanas é a produção de uma subjetividade autoenriquecedora de maneira contínua na sua relação com o mundo”.
NOTAS:
- Termo utilizado por Suely Rolnik para apontar a capacidade afetável do corpo em sua relação com o mundo, precipitando novos devires.
- “Para além dos enunciados discursivos, Foucault (1967), tomando o termo emprestado de Blanchot, denomina “Fora” o que se desvia da linguagem codificada, revelando um complexo campo de conexões com domínios epistemológicos mais amplos que permitem que certas coisas sejam ditas ou não. O Fora apresenta este duplo, este outro do pensamento que não cabe no pensamento razão-consciência, no pensamento fechado do signo. (BORGES, 2009, p. 23).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BORGES, H. Sobre o movimento: o corpo e a clínica. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) – Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
DELEUZE, G. Francis Bacon. Logique de la sensation. Paris: Seuil, 2002.
______. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34,1997.
______. A Dobra Leibniz e o Barroco. São Paulo: Editora 34, 2000.
DIDI-HUBERMAN, G. A Imagem sobrevivente: história da arte tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
______. Phalènes. Essais sur l’apparition. 2. Paris: Minuit, 2013.
GUATTARI, F. Linguagem, consciência e sociedade. In: LANCETTI, A. (Org.). Saude e Loucura 2. 3ªed. São Paulo: Hucitec,1990. p.3-17.
HAAG, G. O teatro das mãos. Revista de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre. Porto Alegre, v. X, n. 1, abr. 2003.
POLACK, J. C.; SIVADON, D. A íntima utopia. São Paulo: N-1 edições, 2013.
ROLNIK, S. Entrevista – Suely Rolnik, em 24 out. 2014.
WINNICOTT, D. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed, 1983.
______. Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago,1990.
FONTE
Texto publicado na Revista Polêm!ca, v. 15, n.2 (2015).