É corriqueiro ver por ocasião de um enterro, pessoas tomadas por um ataque de riso. Nervoso… é o que dizem. Sem dúvida… E algo mais: em cada um de nós dormita uma viúva-alegre. E nem é preciso que “o morto” tenha sido um marido odioso do qual finalmente teríamos conseguido nos livrar. Pode se tratar de um ser verdadeiramente querido cuja morte é dolorosamente ressentida. Isso não impede que, nos dias seguintes, a pessoa enlutada experimente um estado de grande erotização.
Concisamente essa frase ouvida: “O cadáver estava ao lado e fiz amor com um quase desconhecido…”
Des-encadeamento das pulsões, desencadeamento da vida e de Eros, antes mesmo que o verdadeiro trabalho de luto se instale.
Por mais querido que seja o outro, o morto, foi ele quem morreu… e não eu… Palavras, frases indizíveis, impensáveis e que… colocamos em ato. Furtivamente, com culpa. É o tropeçar, o zombar da morte. E o luto, por mais intenso que seja, não é a mortalha do ser em sua totalidade.
A vida é sem escrúpulos quando ela está reduzida ao estado puro da vida, ao estado de pulsões des-encadeadas. E a morte de um outro próximo – amado – pode justamente fazer subsistir apenas a vida em estado bruto. Assim como pode fazer surgir sentimentos extra-ordinários por ocasião de uma ruptura.
Uma mulher acaba de perder brutalmente seu filho pequeno. Ela vem me ver há muito tempo… devido a dificuldades pessoais. A perda da criança é brutal, inesperada. Ela está siderada de dor. Eu a olho: está resplandecente de beleza. Desencadeiam-se, nela, sentimentos violentos e de grande nobreza: ela quer agir, salvar outras crianças… nunca, antes, fora tão criativa, tão inteligente. Isto durou uma semana ou duas. Após o que se abateu o verdadeiro luto: ela encolheu, ela envelheceu e apareceu em seu rosto a marca indelével da desgraça que a atingira.
A morte pode, pois, ter dois efeitos paradoxais:
- De um lado, libera as pulsões que estavam investidas em representações estruturadas com a figura do vivo, o qual, uma vez morto, deve desaparecer de cena. A reestruturação dessas representações é o verdadeiro trabalho de luto. Mas, entre esse momento e o da depreciação pulsional, pode se dar uma espécie de ruptura, um desencadeamento pulsional em que fazemos coisas não usuais, momento em que a vida irrompe com violência, sem levar em conta a moral.
- O outro efeito da morte pode parecer o inverso desse, mas também repousa sobre a desorganização: a única coisa que para o espírito humano é incontornável em seu mistério é justamente a morte. Ora, não cessamos de querer contornar esse pensamento na vida cotidiana. A morte de um próximo, de um ser amado, apaga por um instante toda mesquinhez, faz recuar as preocupações e opiniões preconcebidas do cotidiano, o jugo dos necessitados… vindo à luz o homem metafísico. A própria questão do sentido da vida não tem como deixar de se colocar… questão que, para muitos, apenas a proximidade da morte torna aguda e não subvertida pela preocupação cotidiana do utilitário. A morte faz cessar por um instante a procura do útil.
Entre as pulsões liberadas e a questão perante a qual o próprio grito permanece mudo, não há frequentemente nenhuma ligação, aberturas do psiquismo.
Ainda mais que, hoje em dia, não sabemos mais muito bem o que fazer dos mortos. O que fazer dos cadáveres.
Sinistras as cerimônias religiosas, quando não possuímos mais nenhuma crença.
Sinistra a ausência de cerimônia. Enterros leigos, enterros furtivos. Nós nos livramos dos mortos.
Faltam-nos festas funerárias capazes de se encarregar da vida deixada vaga, das libidos desorganizadas, das pulsões desconectadas pela perda, dos espíritos à procura de uma representação unificadora e portadora de sublimações aceitáveis.
Cada vez mais, em nossas inevitáveis decadências, se não reencontramos a festa que celebra o morto e a morte, que permite a uns chorar, a outros se pensar e se projetar a si próprio como morto, cada vez mais, por desespero treparemos ao lado dos túmulos.
Esta é a crise de uma civilização: quando as palavras começam a faltar, quando os gestos se tornam insignificantes para representar a morte aos sobreviventes.
Falo daquilo que se convencionou chamar de morte “natural”. Somente as catástrofes suscitam, ainda, palavras e gestos… mas tornaram-se tão numerosas… que aí também um certo silêncio não tardará. Só nos restam discursos políticos destinados a nos fazer aceitar a morte violenta, a morte não-natural.
Será que e preciso ser soldado, guerreiro, morto de fome, prisioneiro… para poder morrer? Será que só podemos discursar aos mortos no limite do anonimato: os que morreram pelos outros? Trata-se aí de discursos de tempos de crise e mais: de discursos de guerra que não se apresentam enquanto tal.
Ora, uma civilização pode enterrar seus mortos um a um: assim como se morre um a um.
Então mais fortes ainda serão os des-encadeamentos…
Não falarei aqui do preço de alguns desses des-encadeamentos que pude ouvir. Nem dessas tristezas, excessivamente bem-dominadas, por um filho morto por uma nobre causa… nem das sinistras consequências desses enterros furtivos. Túmulos, latas-de-lixo do humano.
Este é o conteúdo de análises frequentemente muito longas… quando esses sobreviventes têm como pagar uma análise…
Mas nenhum analista, nenhuma análise, nenhuma quantidade de analistas poderão fazer frente aos efeitos da inexistência de cerimônias funerárias, nem à implosão das representações coletivas da morte singular privada e responsável.
Esta é nossa decadência, e a psicanálise só pode acompanhar.
Falo daquilo que eu observo aqui, na França.
Quem sabe é diferente no Brasil? Espero que os brasileiros, possam, já que é grande seu interesse pela psicanálise, não tomar a psicanálise por panacéia universal, nem por pensadora de leis, caso essa palavra seja importada daqui pela própria psicanálise. Os psicanalistas apenas constatam, às vezes reparam, com muita dificuldade, alguns estragos. Até quando? Uma vez que eles próprios estão assujeitados à mesma decadência, à mesma indigência imaginária. E a questão se coloca:
— Que valor têm as teorias – psicanalíticas no presente caso – produzidas num mundo, numa coletividade, numa sociedade que não sabe mais o que fazer de seus mortos? Qualquer pensamento proveniente de uma terra, não é por si só suspeito?
Pensamentos provenientes de psiquismos que já se sabem cadáveres mal-enterrados.
FONTE
Texto originalmente publicado em Caderno de Psicanálise, 3(4), Instituto de Psicanálise da Sociedade de Psicologia Clínica do Rio de Janeiro, 1984.
Publicado no livro “Ah! As belas lições” (ed. Escuta, 1995). Tradução: Caterina Koltai.