Curso realizado em 1978 no SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE, GRUPOS E INSTITUIÇÕES, Rio de Janeiro/RJ.
AULAS 1 E 2*
*Nota da RT. Por problemas na transcrição, juntamos a aula 1 e 2.
– As teorias, e muitas vezes as intervenções no campo das Ciências Sociais, as chamadas Humanas, as Políticas, as Semióticas etc., com certa lamentável predominância, trabalham exclusivamente com palavras.
Comecei enfatizando para vocês que, como poderão observar que, hoje em dia, para tratar das coisas importantes no mundo, não se pode, ao tomar em conta questões de palavras, nem por meio de palavras. Nesta exposição não poderemos mais que exprimir-nos, colocar os problemas e as saídas em termos de palavras. Acrescentemos que em tudo quanto tratemos, há participação de máquinas. Existe uma realidade e modos de abordá-la que remete às máquinas. Para mim, essa questão das máquinas acontece não só num encontro internacional como este, mas será encontrada em todos os ramos de produção, quer seja na produção mercantil ou de qualquer outra natureza, por exemplo, na produção cinematográfica, na produção artística, mas também, na produção de desejo. Eu penso, junto com meu amigo Gilles Deleuze, que o inconsciente está povoado de máquinas e é cada vez mais povoado de máquinas. Com a condição de que tenhamos uma ideia um pouco diferente da que habitualmente temos do que é uma máquina. A máquina, no sentido mais comum é algo que tem engrenagens, pêndulos, pensa-se, pois, em uma bicicleta, em um relógio. Mas há também máquinas de outra natureza, bem mais estranhas e inquietantes, como os computadores, por exemplo. Há também máquinas econômicas, se diz, e com justiça, que a bolsa de valores é uma curiosa máquina.
Para saber exatamente o que é uma máquina, é preciso compreender que nunca se trata apenas de engrenagens materiais, mas de um funcionamento que põe em jogo formas, coloca em jogo sistemas de signos e, no fundo, trata-se de algo que implica certa adjacência de um indivíduo com a máquina. Em toda a tradição humanista queixa-se de que a máquina vai absorver o indivíduo. Mas de fato não é verdade que as coisas se passem desse modo; creio que são os indivíduos que absorvem as máquinas. É verdade que sistemas sociais transformam os indivíduos em engrenagens de máquinas. Mas são máquinas velhas, alienantes, que se servem dos indivíduos não como produção saudável, mas como engrenagens de velhas locomotivas.
Então, toda questão é que os indivíduos se servem das máquinas e não são, de modo algum, alienados pelas máquinas. De modo que vamos começar recusando toda ideia de retorno à natureza contra o maquinismo. Quando, com Gilles Deleuze, falamos em máquinas desejantes, não era para dizer que o desejo é mecânico, e sim para tentar mostrar que a essência do maquinismo pode ir no sentido de liberação do homem do desejo. Então, sobre essa máquina, não importa qual seja, com a qual lidamos, sem dúvida devemos saber quem a emprega, quem a utiliza, que tipo de relação social ela impõe, em que tipo de relação social ela está imbricada. Relações (rapports) sociais e relações (rapports) de produção, noções que são perfeitamente bem definidas no quadro do marxismo. A relação é mais ou menos como uma “torta de chantilly” que se encontra facilmente em todas as partes, mas deixemos isso de lado.
Portanto, creio que importa saber, por um lado, para que serve o maquinismo, para que tipo de exploração ele serve, e como este maquinismo pode funcionar no inconsciente; por enquanto, vamos falar assim, como ele pode ter um caráter liberador. Mas isso implica também que o maquinismo não seja compreendido como um objeto material, mas o que na máquina funciona em um registro que chamaremos de semiótico. Ou seja, aquilo que na máquina funciona como signo, como relação de linha, relação de forma, aquilo que Sanders Peirce chamou de diagramatismo. Diagramatismo é simplesmente o fato de que, por exemplo, um avião célebre como o Concord não teria existência sem os planos, os desenhos, sem toda a aparelhagem semiótica que permitiu elaborá-lo. Mas ele também não funcionaria sem a aparelhagem semiótica que lhe permite voar, todos os sinais que as ondas hertzianas veiculam. Por outro lado, ele também não funcionaria por muito tempo, devido à semiótica econômica à qual está submetido, da qual ele depende.
Vocês sabem que na física teórica atual fala-se em partículas que vivem muito pouco tempo, milionésimos de segundo, ou que se transformam em outras. O fator tempo, o fator vida e morte fazem parte da existência. Se decidirmos, por exemplo, tratar a questão do avião francês Concord, acharemos a mesma coisa, esse enorme avião é como uma partícula muito precária, ele nasceu não rentável.
Como vocês seguramente sabem, se fabricaram na França um número limitado dessas máquinas maravilhosas, mas depois houve um brusco silêncio. Não se falou por muito tempo no Concord, e depois se publicou a notícia de que não iria mais ser fabricado. Isso não aconteceu só por ter havido um acidente ou no Concord haver alguma inconsistência semiótica de fabricação, ou por sua dificuldade de circular no espaço aéreo; ele tem uma doença semiótica de outra natureza, uma doença semiótica econômica, pois não é economicamente viável. Pois bem, eu diria que de qualquer objeto, eu preferiria falar de objeto de agenciamento, noção que nos permite englobar não só objetos, mas indivíduos, sujeitos, pessoas, relações. Qualquer agenciamento põe em jogo todo tipo de componente semiótico. Desses componentes semióticos devemos reter o fato que são um tipo de máquina que deles têm a chave. Chamo essas máquinas de máquinas abstratas ou máquinas desterritorializadas.
A máquina desterritorializada do Concord é o conjunto de equações, planos, desenhos, mas é também o conjunto de sistemas de controle, de submissão, semiótico e mecânico, as torres de controle dos aeroportos. O maquinismo abstrato do Concord é também o fato dele não ser economicamente viável. O objeto Concord pode ser localizado nas coordenadas espaço-temporais; ele foi produzido em tal ou qual fábrica na Inglaterra, na França, hoje em dia há uma vintena de exemplares que existem e estão em tal ou qual linha aérea, no nível da máquina material visível do Concord. Mas, no entanto, a essência do agenciamento Concord se joga também nas bolsas de Londres, Nova Iorque e Paris, e o maquinismo abstrato que funciona nessas bolsas é igualmente essencial. Ele é tão essencial quanto o combustível que se põe no Concord, quanto o sistema que lhe permite voar e aterrissar.
Então, se vocês aceitarem essa distinção entre as máquinas reais ao nosso entorno, tais como o microfone, a câmera fotográfica, e o que chamo de máquina abstrata, vocês verão que nossa existência, nos seus mais mínimos detalhes cotidianos, está inteiramente aprisionada no interior dessa máquina abstrata. Pela manhã quando tomamos o café de manhã, no quarto ou na sala, cada um de nossos atos é de algum modo teleguiado e aprisionado em um campo de relações semióticas que faz as vezes de máquina abstrata. Disseram-me que o melhor café do Brasil não é consumido pelos brasileiros, pois bem, e mesmo o que vocês pensam em suas cabeças, em sua solidão, em sua intimidade, com seu cônjuge e algo passa pela cabeça de vocês, mas de onde isso vem? Frequentemente vem da mídia, de algo que vocês viram ontem, e isso reenvia vocês para além do seu contexto familiar, doméstico.
Pois então, chegamos a um ponto em que eu gostaria de colocar a seguinte questão: se consideramos que noções como o inconsciente, por exemplo, é algo essencialmente ligado a objetos intrapsíquicos, é alguma coisa determinada por certos fatores que aconteceram na infância em um determinado momento, se pensamos que o inconsciente é o que há de mais íntimo na intimidade, então o inconsciente não tem nada a ver com as máquinas abstratas de que falei, não tem nada a ver com essa interpenetração que faz com que estejamos sempre em adjacência de mil, cem mil máquinas que funcionam por vezes a 10.000 km de nós. Por vezes nossa sorte é decidida em Washington, nosso destino econômico, o fato de fazermos uma ou outra atividade, mas também o que pensamos, mas também nossos sonhos e nossos fantasmas.
Digo o seguinte, o modelo de inconsciente que foi proposto por Freud e pelos freudianos foi elaborado por pessoas que viviam ainda em um mundo em que havia o sentimento, a ilusão de sermos nós mesmos por nós mesmos, é um inconsciente de profissão liberal. Mas é cada vez menos um inconsciente para pessoas como nós que estamos neste turbilhão, que faz com que o mercado seja globalizado, e também a produção. De modo que nossa sorte está ligada a esse conjunto do sistema produtivo que se joga ao nível planetário. Hoje em dia, não há um problema político e econômico local que não ponha em jogo problemas demográficos, ecológicos, problemas de luta de classe e problemas de relações de força, problemas de escolha tecnológica que de fato são colocados em escala internacional.
Então, creio que é insuficiente se entrincheirar por trás dessa velha definição de inconsciente, ou de fazer outra escolha que seria a de dizer: “bom, já que essa definição de inconsciente não nos permite compreender o mundo tal como ele, o mundo em que estamos, então vamos deixar de lado tudo o que nos foi dado pela psicanálise”. Eu penso simplesmente que o problema do inconsciente, o problema da análise do desejo, é algo essencial ao nosso funcionamento, à nossa vida, mas não podemos deixar de lado nem a teorização, nem a prática, e deixar isso para psicanalistas que ficam agarrados ao modelo liberal da psicanálise, ao modelo humanista da psicanálise, do qual eu não quero fazer nenhum julgamento moral, mas que não corresponde de modo algum à nossa realidade atual. Bom, dir-se-á que essas são críticas que já fiz com Gilles Deleuze. Não quero ficar nesse ponto de vista crítico. Mas, no entanto, tampouco tenho vontade de respeitar o título dessa exposição que, se bem compreendi, seria uma explicação do Anti-Édipo. Na velocidade em que as coisas correm o Anti-Édipo é um livro superado, um livro velho. Portanto, creio que seria melhor tentar falar de coisas que nos preocupam atualmente, posto que, infelizmente há atividades de exegese, de comentário, e coisas deste tipo a propósito do Anti-Édipo. Atividades que consistem frequentemente em impor aos estudantes uma atividade de exegese, em lugar de um trabalho que poderia ser mais criativo. Eu vou deixar essa exposição referente ao Anti-Édipo para os universitários. O que eu gostaria de explorar com vocês nas três conferências que vou fazer, não é um ponto de vista crítico, mas tentar ver como podemos razoavelmente considerar uma teoria e uma prática do inconsciente em ruptura com essas antigas definições. Não é fácil, pois nos achamos diante de problemas em que é preciso buscar e forjar ferramentas, tentar encontrar novas abordagens mais práticas, com todo caráter precário e derrisório que as experiências têm em um novo campo. Por um lado, há a enorme montanha bibliográfica dos autores em voga e, por outro, alguns conceitos, alguns exemplos, pequenos murmúrios, portanto eu lhes peço indulgência. Não basta dizer, embora muita gente já o diga, que os problemas intrapsíquicos, que o problema do desejo, os de sexualidade têm algo a ver com o campo social, isto não é uma grande novidade. Há muitos psicanalistas, dos mais ortodoxos, que dirão: “mas isso sempre foi dito, no entanto, é preciso fazer certa divisão de trabalho, nós nos ocupamos da escuta analítica”. Há uma palavra, que não sei se vocês a conhecem muito bem, mas que no momento faz furor em Paris, todos se ocupam dos matemas do inconsciente. O inconsciente em Paris já não é mais apenas estruturado como linguagem, mas estruturado segundo matemas à maneira de uma linguagem. Retomarei esta questão, talvez não hoje. Vamos refletir sobre as condições semióticas que estão no fundamento do estruturalismo psicanalítico, mas por enquanto deixo de lado esta questão.
Retomando, um psicanalista diria: “mas eu não desprezo de modo algum o campo social, mas não é nossa especialidade”. Então é especialidade de quem? Ah! Isso depende, pode ser a especialidade de um político, de uma assistente social, de um trabalhador social. Portanto, para deixar de lado essa primeira dificuldade, vamos estabelecer o fato de que tudo que diz respeito ao inconsciente, que diz respeito ao desejo, à sexualidade, não está constituído de tal modo que um especialista possa dizer que é seu domínio. Tomemos, recuperando um termo da Idade Média, não há qualquer universal, a história e os problemas sociais atravessam o inconsciente, mas atravessam de tal modo o inconsciente que não sobra qualquer universal.
Então, para fazer essa demonstração seria preciso mostrar que o que foi apresentado como universal no inconsciente é algo que está bem ligado a certa condição histórico-social, por exemplo, certo status da família, certa concepção puritana da sexualidade, certa concepção da educação das crianças, certa condenação da “perversão”, como por exemplo, o homossexualismo. Portanto, toda uma série de atitudes micropolíticas que serviram de moldura às interpretações freudianas. No entanto, é preciso ir mais além, tentar compreender que os modelos de representação que serviram para fazer uma topologia, uma tópica do inconsciente, são datados. Não somente nas coordenadas históricas, mas também naquilo que eu chamaria de sistemas de coordenadas relativas à percepção, relativas à correlação com o corpo, relativas à vinculação ao movimento.
Mais precisamente, tomemos o exemplo da identificação, o sistema de identificação tal como foi proposto pelo freudismo, para dizer de maneira simplista, foi posto em jogo antes da televisão e antes do cinema. Em virtude do que eu disse anteriormente, por exemplo, as representações que fazemos do rosto têm uma relação muito importante com os meios de comunicação de massa. E podemos nos perguntar se os rostos que vemos na televisão não modificam os rostos que vemos na realidade. Tomemos uma criança pequena de um país desenvolvido. Para que ele não chateie o pai e a mãe, se possível, põe-se um tranquilizante na sua mamadeira, e isso que digo é verdade, acontece. Mas nos casos normais põe-se a criança diante da televisão. Sem dúvida, ela vê muito mais os rostos da televisão do que o rosto de sua mãe. E então podemos nos perguntar se ela não vê a mãe como uma locutora de televisão. É preciso estudar muito isso, eu tentei fazê-lo num livro que está no prelo. Mas, em lugar de falar em identificação como um mecanismo geral, eu vou empregar uma expressão que lhes parecerá bárbara, falarei de componentes de rostidade. E esses componentes de rostidade eu não diria a priori que eles não têm nada a ver com o rosto do pai e da mãe, mas eu diria simplesmente que eles também têm muito a ver com a televisão. E como, pelo menos na França, o pai e a mãe, têm muito a ver com a televisão, eu diria que os componentes de rostidade, em lugar de reenviar a fixações arcaicas, cristaliza na atualidade mesma coisas em que existe, sem dúvida, o pai e a mãe, mas também os sistemas de modelização veiculados pelas comunicações de massa.
Poder-se-ia dizer, muito bem “senhor Guattari”, mas a nós, psicanalistas, o que nos interessa são as identificações relacionadas ao polo simbólico representado pelo pai, por exemplo. O resto é importante, mas do ponto de vista da análise é acessório. E aí vemos a encruzilhada, porque o que é importante nos leva a certa prática da análise e o que não é importante é lançado para fora do campo da análise. Encontramos o mesmo problema nos estabelecimentos especializados em crianças. Um analista crerá que seu problema diz respeito à transferência, por exemplo. Eu me lembro de um educador que me dizia: “o psicanalista que trabalha no nosso estabelecimento me disse a respeito de uma criança da qual me ocupo bastante: “pare de se ocupar dessa criança, porque você está atrapalhando a minha transferência!” É preciso escolher, há a via real de acesso ao inconsciente que é a transferência, e depois todas essas coisas de animação, de atividades, de grupos sociais, que nada têm a ver com o inconsciente, como nós sabemos. Esta escolha, esta opção, é micropolítica, porque o próprio psicanalista do exemplo também, de algum modo, vê televisão e, portanto, está capturado nesse campo de significados e valores dominantes. Então, não há primazia a ser dada nos componentes de rostidade àquilo que está ligado ao problema do pai e da mãe. Podemos dar outros exemplos e talvez eu retorne a isso, que é sobre a estruturação do tempo. Simplesmente não vivemos em uma categoria universal de tempo, vivemos em cristalizações do tempo, em semiotizações do tempo que são completamente diferentes de um país a outro, que é inteiramente diferente quando passamos de um bairro rico para uma favela, mas que é também diferente quando passamos do sono à vigília. O que nos faz marcar a medida do tempo? Não são também os universais, se estamos capturados em máquinas abstratas que marcam o tempo; é o fato de que estejamos aprisionados no que chamo de ritornelo do tempo. Há gente que ao acordar liga o rádio, outro se lembra de um ritornelo e vai seguir num certo ritmo de tempo como se estivesse marcando o ritmo do tempo. Depois, se vai ao trabalho em seu automóvel, ele vai mudar de registro de temporalização. A organização da subjetividade e de sua relação com o tempo e sua relação com as imagens vai mudar de velocidade. Ele vai entrar em outro tipo de estilo de temporalização, talvez, bruscamente se um obstáculo surge adiante, ele muda de registro e outro tipo de agenciamento semiótico aparece. Sabemos muito bem que não vivemos o mesmo tipo de tempo quando vamos ao cinema, quando datilografamos, quando estamos com alguém de quem gostamos muito. A vivência do tempo muda radicalmente quando estamos com alguém que detestamos. Essas máquinas de marcar o tempo, elas também, estão totalmente em interação com o conjunto de maquinismos que nos circunda.
Do mesmo modo que eu dizia que a rostidade habita o inconsciente, e com cada rosto problemas micropolíticos e microssociais entram na nossa subjetividade, igualmente se passa com relação ao tempo. E o que há de mais íntimo que nossa relação com o tempo? Tudo isso é completamente habitado por esse modo de ritmização do tempo. Eis então considerações que talvez nos permitam avançar em direção a aspectos mais construtivos.
Quando os freudianos procuram analisar um sintoma, uma inibição, uma angústia, eles buscam o ponto de origem, a origem. Eles, no pior dos casos, tentam encontrar um traumatismo infantil. Depois as coisas vão melhorando, e eles se perguntam que tipo de chave significante causou aquela derrapada. Mas eles vão sempre atribuir os começos a uma série de mecanismos universais. Em um caso, falarão de estado inconsciente, de regressão, de fixação; em outro caso, falarão de renúncia de imagéticas familiares e se fará referência a um tipo de matemática estrutural do inconsciente, se empregará algoritmos, se falará da função, da função pequeno a. Mas, para o problema que coloco, isso não muda nada, nós buscaremos uma origem precisa dos sintomas da angústia, da inibição. Bem, talvez seja preciso considerar que as coisas se passam de outra maneira. O fenômeno da angústia todos nós temos e constantemente, por vezes são microangústias que não detectamos de modo manifesto. Em lugar de atribuirmos à intrusão de tal ou qual objeto, de uma imagem, de uma ameaça, talvez seja preciso ver um funcionamento diferente. Eu vou propor uma categoria extremamente geral, que deverá permitir ao componente histórico-social encontrar suas vias de acesso. Em lugar de fazer o que se faz, modificar a realidade histórico-social para que ela se adapte aos nossos conceitos e teorias, eu vou propor um termo extremamente abstrato e geral, porque, se vocês aceitarem, não vou sair de uma opção quanto ao funcionamento do inconsciente.
Em geral, vou buscar meus exemplos na física, longe do campo das ciências humanas. Falo de máquina, de revolução molecular, mas desta vez não vou buscar meus exemplos na microfísica, senão na astrofísica. Falarei dos fenômenos de buracos negros, mas se vocês não gostam deste exemplo, podem deixá-lo de fora e buscar outro para seu uso próprio. O que vou dizer agora não pretende nenhuma cientificidade, mas simplesmente mostrar com que tipo de ferramenta estou trabalhando, todavia não pretendo fazer exportação deste tipo de ferramentas. Pois bem, por que buraco negro? Porque a meu ver trata-se de um fenômeno no inconsciente que atrai para si todos os fenômenos de corte, de bloqueio. Um buraco negro não é em si nada de positivo, é um fenômeno de eco, de ressonância em toda uma série de bloqueios de inibições. Se vocês quiserem, é como o exemplo de outro dia, a passagem de um exército sobre uma ponte. Se os soldados marcharem com passo marcado haverá um fenômeno de ressonância, e é possível que a ponte desmorone, aí temos o buraco negro. Se a marcha tem o passo rompido, havendo então diversidade de marcha, uma heterogeneidade de relações, de modos, de ritmos, não haverá buraco negro.
Vamos falar em exemplos simples, estamos em um balcão, uma varanda, a grande altitude e um processo mental ocorre em vocês: Eu poderia cair. O próprio enunciado traz em si, no nível de seu conteúdo, uma ameaça de morte, uma possibilidade de morte, é o buraco negro por excelência. Este pequeno núcleo semiótico, esse pequeno enunciado que gira: cuidado, eu poderia cair! entra em eco com outros componentes, garganta seca, câimbra no estômago. E poderia mesmo haver componentes visuais, componentes perceptivos contaminados. Não se vê mais a borda do balcão do mesmo modo, não se sente o solo da mesma maneira, vocês talvez conheçam a experiência de vertigem, é o que há de pior. Não é a vertigem que se sente por si, mas a vertigem que se sente pelo outro: cuidado, não chegue perto! Não se pendure! A relação com o outro é contaminada pelo fenômeno do buraco negro.
Então, piedade! Façamos com que os freudianos se afastem. Economizemos as explicações desse tipo: Qual é o desejo inconsciente que lhe habita? Não terás um desejo de morte? Não preenchamos o inconsciente com interpretações, simplesmente o que há é um fenômeno de eco, de buraco negro. Nós poderíamos multiplicar todos os exemplos da Psicopatologia da vida cotidiana: medo, o medo do escritor, o medo do artista, o pânico, o medo da impotência. Eu digo que temos interesse em proceder dessa maneira, porque deixamos entrar todo tipo de componente semiótico em sua heterogeneidade, abrimos caminho à análise para todos os componentes que não poderiam ser considerados na análise clássica. O que é importante não é de modo algum fazer uma redução behaviorista e dizer: vou levar em conta apenas aquilo que posso ver, aquilo que posso medir. Eu ficaria muito zangado se pensassem que estou dizendo isso. O que é importante é limpar o espaço do inconsciente para que possam entrar componentes que antes não havia.
Se quisermos levar em consideração componentes econômicos, urbanísticos, múltiplos componentes de poder, escolar etc., é preciso não falar no lugar dos outros, é preciso deixar entrar num agenciamento. Não é preciso, por exemplo, pensar a priori que o professor representa o pai, há casos em que é o pai quem representa o professor. Na França, com a dita liberalização da educação, quando o professor não passa um dever para os alunos, é o pai e a mãe que passam o dever. De modo que a coisa caminha nos dois sentidos. Se quisermos fazer entrar novos componentes semióticos, não é para empobrecer o inconsciente, mas sim para enriquecê-lo. Minha crítica ao inconsciente freudiano é que ele é redutor, ele é determinista, ele só tem uma via de acesso privilegiada, o protocolo da análise. Há no inconsciente a detectar, a encontrar, a analisar, a pôr em obra, componentes que antes não havia.
Para resolver o problema da angústia, de uma inibição, não é necessário encontrar alguma coisa que está lá no fundo do inconsciente. É preciso encontrar algo que vem em adjunção ao inconsciente. Eu critico a teoria analítica, mas sou muito prudente quanto à prática dos analistas; porque em alguns casos sua prática é eficaz, a despeito de toda mistificação das teorias existentes. Porque, quando eles pensam estar avançando por meio da interpretação, encontra-se algo que já estava no inconsciente por sua própria relação com o paciente, pela intrusão enorme que representa o fato de ir à análise 3, 4 vezes por semana, pagar somas colossais, falar de um modo todo particular que faz com que qualquer coisa que a pessoa diga nunca leve a um diálogo normal, em que se tem uma resposta normal. É um acontecimento curioso. Digo que é o diálogo normal que leva à normalidade. É um filme novo, um filme diferente dos que vemos normalmente.
Então, ir à análise representa uma mudança considerável, principalmente quando vem associada à sensação de uma promoção, entramos na categoria dos analisandos e quem sabe talvez um futuro analista, mesmo que seja do porteiro. Os grandes clubes, como o Jóquei Clube, não sei se funcionam bem, mas o clube de analistas e analisandos funciona muito bem. E as pessoas que têm problema de dinheiro deveriam ter consciência dessa coisa, que para entrar nesse clube há que pagar muito caro; se todos pudessem ser sócios do Jóquei Clube não haveria graça. Então é de fato um acontecimento, a análise realmente funciona, ela modifica completamente a paisagem subjetiva. Conheço dezenas, talvez centenas de pessoas, que só pensam na análise. Ou seja, a análise não deixa de ter seu efeito. Conheço muitos em que ela faz uma destruição enorme; pessoas que não têm problemas do tipo Jóquei Clube, e pessoas que vão à análise para mudarem sua vida, não para normalizarem, para se curarem, para poder viver, para se articularem ao mundo. E, em lugar de chegarem ao mundo, a um modo de funcionamento que lhes abra a este mundo, para potencialidades, progressivamente, a terapia analítica funciona como uma droga, uma droga pesada.
E, progressivamente, há um investimento de todas as outras potencialidades, tudo passa pela análise. Quantos analistas, por exemplo, são tirânicos em relação às férias: “Você vai tirar férias no mesmo período que eu”. No princípio o despotismo ainda era mais assustador, pois havia aquela ideia da abstinência generalizada durante a cura. As curas duravam de 3 a 6 meses, agora as curas duram de 4 até 10 anos.
Então, essa teoria do inconsciente e para certas práticas, nem todas, eu não quero lançar o descrédito sobre as práticas dos analistas, é preciso fazer a distinção entre a prática real das pessoas e o seu tipo de teorização. Digo que infelizmente certas teorias e também determinadas práticas conduzem não apenas a levar em consideração apenas elementos pobres, como também a reduzir o inconsciente. Por exemplo, ali onde havia uma problemática cristalizada em um casal sobre a imagem do outro, ali onde o mundo já havia encolhido a uma relação de despotismo, de ciúme, o analista em alguns casos conseguirá transferir isso para a própria relação analítica. Com efeito, há um progresso, enquanto que a vida se fecha, como na peça de Sartre, Huis clos, sendo que agora são dois personagens, ou mesmo um, em lugar dos quatro originais. Pois, se pensarmos bem, não há duas pessoas na cura analítica clássica, há apenas uma; é uma escuta que desaparece cada vez mais, é um Huis clos de uma só pessoa.
As pessoas que são drogadas pela análise acabam trabalhando em horário integral, dia e noite. Digo que essa política tem um sentido político maior. É incrível esse poder de neutralizar as pessoas a ponto de que elas pensem apenas em sua interioridade. Há que se considerar que há um pequeno modelo experimental em um pequeno laboratório, um novo tipo de poder. Façamos um pouco de ficção científica. Ao invés de uma ordem policial, uma ordem militar, para controlar a força de trabalho, imaginemos que possamos fazer com que todo mundo faça análise. Isto ajudaria muito para resolver os conflitos de trabalho, para solucionar as tensões sociais. No dia em que alguém tiver a ideia de que o essencial do que se passa com ele no campo do desejo nada tem a ver com componentes histórico-sociais ao seu redor, mas tem a ver com algo que se passa no seio desse inconsciente solitário, fechado sobre si mesmo, fechado sobre o passado, dobrado sobre a linguagem, nesse dia haverá um tipo de micropolítica que entra em interação com as políticas reacionárias.
Amanhã falarei mais detalhadamente sobre em que direção a que tipo de inconsciente se orienta a sociedade atual.
AULA 3
– Eu ontem procurei mostrar que o freudismo trouxe um processo que diminuía, que reduzia o inconsciente à formação do inconsciente. Nós vamos ver agora por que fazer entrar os problemas sociais no inconsciente, para evitar essa redução.
Primeiro, vou tomar um exemplo microssocial, antes de falar dos problemas sociopolíticos de outra escala. Como é que Freud enfrenta o problema da sexualidade infantil no livro que vocês todos conhecem, eu suponho que todos vocês conhecem esse assunto, por isso tomei isso como exemplo. O pequeno Hans tem sintomas fóbicos, e é um tipo de fantasia de agressão que entra o animal, o cavalo. Eu não quero descrever nada, apenas estou lembrando vocês o que acontece. Durante toda essa monografia nós vemos o pai e o professor pai, professor Freud, que intervêm na criança. Para explicar a criança e a natureza das perturbações que ela sente, vê-se que a dupla pai e professor Freud intervém na mãe, a mãe é acusada de ser demasiadamente terna, na teoria de Édipo, de ser muito edipiana, de ter um comportamento incestuoso, e, por vezes, vemos a mãe mudar de repente a sua atitude e intervir quanto à masturbação da criança. Por vezes vemos a criança se revoltar contra o que diz o pai, principalmente quando a ideia de que a ideia fóbica tem uma relação com o pai. O aspecto do cavalo é um desejo de agressão da criança em relação ao pai, a criança se revolta, discute, não está de acordo e finalmente cansada a criança cede. Tudo que faz Freud é muito rico do ponto da expressão, ele tem muito cuidado justamente com essas descrições; aliás, isso não acontece com os outros psicanalistas, pode-se fazer outra leitura desta monografia com outro ponto de vista, outra perspectiva. Vemos que aparece sempre uma série de problemas, problemas ambientais, o menino Hans, por exemplo, um dia se enamora de uma vizinha. Como o pai do menino Hans está muito interessado pelos problemas freudianos, isto é ouvido muito atentamente. Há, portanto, todo um jogo que estabelece aí quanto ao amor do menino Hans pela vizinha. Até o dia em que Hans “pega a escova de dente” e diz: “eu vou dormir com a menina”. Ali a piada já toma um aspecto mais sério, naturalmente não se trata disso, e o pai diz ao menino para voltar para casa e deitar. O menino Hans não se dá com a vizinhança por motivos sociais, não é gente de bem. À medida que o menino quer atravessar a rua, quer sair, acontece justo o contrário, o espaço diminui cada vez mais e ele fica cada vez mais preso ao círculo familiar. Ele não tem muitos amigos, ele muda sempre de amigos, ele tem muitas dificuldades, ele acaba gostando das coisas que estão perto dele, como exemplo as carícias quando a mãe dá banho nele. Ele gosta de entrar na cama dos pais, mas como agora nesta família já se conhece os perigos do incesto, o pai intervém. O espaço dele, portanto, diminui cada vez mais, o espaço agora já diminui mesmo dentro de casa, porque ele já não pode ir ao leito dos pais. Então, ele se fecha sobre si mesmo e se dá à masturbação. Mas mesmo aí há uma opressão, porque naquela época a masturbação era considerada como algo de muito grave. Freud não tinha aceitado as teorias da masturbação que existiam na época, mas ele tinha imposto outras, o território diminui cada vez mais, a criança não se masturba mais com o pênis, ele se masturba na cabeça, ele assume essa repressão num sistema fantasmático, que permite a ele virar todas as relações micropolíticas, todas as relações de poder. Desta vez ele tem uma fantasmatização que vai envenenar toda a família, ele agora já não tem mais o desejo de ir ao exterior, ele recusa ir ao exterior, e toda a família vai se concentrar em cima desse objeto “desterritorializado”, que é a fantasia. Eu tomei essa ilustração para mostrar que o que é atribuído ao complexo de Édipo, ao complexo de castração, é uma montagem pré-estabelecida, é uma montagem cibernética no psiquismo. Isso se une com a entrada de outros componentes, os vizinhos, o tipo de educação que se dá nesse meio, o componente corporal de carinhos, carícias, o poder despótico do pai sobre a mãe, as relações de saber entre o professor e o pai etc. A monografia do professor Schreber também mostra outro universo, permitindo dar interpretações inteiramente diferentes. Para mim, o problema é saber se a análise vai no sentido do reducionismo ou no sentido de abertura de entrada de componentes heterogêneos. Temos um inconsciente redutor e homogêneo que depreende de certas fórmulas, de certos tipos, um consciente heterogêneo que aceita todas as entradas possíveis e todas as possibilidades de intervenção possíveis, porque nós podemos fazer uma interrogação a respeito do menino Hans em vez de uma psicoterapia por pessoa interposta. Teria sido mais interessante ocupar-se da vida microssocial do Hans, do círculo desse menino que não encontrava saída para todos os seus problemas sociais, sexuais etc. Os psicanalistas de crianças, hoje em dia, não agiriam absolutamente desta maneira, mas eu estou certo que eles ainda fariam bem pior.
Mas vamos deixar isso de lado, agora vamos passar a uma escala maior, sobre o que é o modelo do inconsciente que convém à nossa sociedade hoje em dia. Aí nós temos um paradoxo, que apareceu ontem em uma discussão, em um dos painéis. O modelo do freudismo tal como apareceu naquela sociedade rica vienense é inteiramente ultrapassado, ele não nos permite, por exemplo, compreender o que acontece na Melanésia, nas pessoas que moram na favela do Rio, mas também ele não nos permite compreender o que acontece nas elites, e como é que essa teoria ultrapassada então tem tanto sucesso? E, aliás, é porque ela é ultrapassada que ela tem muito sucesso, porque a sua função está inteiramente invertida, ela não tem mais uma função de descoberta e de exploração. O inconsciente, de acordo com o que estudei durante minha formação psicanalítica, nos países da Europa, ele tem uma função de adaptação, de encerramento, de fechamento, isso, aliás, está perfeitamente explícito na psicanálise norte-americana. Aliás, esses fenômenos nada têm de excepcional, o caráter criador do marxismo nas suas origens foi transformado pelos poderes de Estado, numa teoria que absolutamente não apresenta enriquecimento de espécie alguma, foi transformado num dogma que, pelo contrário, impede qualquer exploração teórica. O freudismo, portanto, é atual porque é ultrapassado. Ele propõe um modelo familiar, que serve de inspiração para reconstituir um tipo de família, em que a evolução socioeconômica já varreu todos os modelos de família. O inconsciente não está cheio de representações como, por exemplo, as tragédias de Sófocles. Eu não creio, tampouco, que o inconsciente esteja estruturado segundo chaves estruturais, de chaves matemático-poéticas. Ele é povoado de outras coisas, por coisas que são fabricadas pelos equipamentos coletivos, por formações de poder que procuram controlar os indivíduos. Quando se fala com crianças, as crianças não falam de conflitos edipianos, é preciso forçá-las, manipulá-las para que elas falem de conflitos edipianos. Na França elas falam de índios, de cowboys, elas falam de guerra, elas falam de tudo que aprendem pelos meios de comunicação de massa, falam de motocicletas, de automóveis, carros, e por mais que se diga a essas crianças que a motocicleta é o falo, não, na verdade o que elas têm na cabeça é o carro, é o automóvel. Ela volta a falar no que ele falou ontem, os maquinismos abstratos que são trazidos pelos automóveis. Como é que nós vamos unir tudo isso aos polos familiares? O inconsciente como a família não se relaciona mais com o mundo privado, nem mesmo com uma sociedade civil. A família tornou-se uma fábrica, um ateliê, um ateliê indispensável ao funcionamento das nossas sociedades, tão indispensável quanto as fábricas, escritórios, as escolas, as prisões, os hospícios. O que se fabrica nessas fábricas? Fabrica-se a reprodução da força coletiva de trabalho. Temos a impressão de que essas fábricas estão dispersas, mas elas não estão dispersas, elas estão em concentrações urbanas, que são elas mesmas uma única fábrica, elas estão apanhadas num sistema de interação, através da subordinação monetária, através da vigilância mútua que é exercida pela vizinhança, através dos meios de comunicação de massa, os equipamentos coletivos. As famílias são, portanto, elementos de uma imensa máquina; nessas fábricas, há algo de inconsciente que é fabricado, o que se fabrica de inconsciente é certo modelo de pai assalariado, de mãe educadora que está num mundo doméstico, de utensílios domésticos, de criança que é apanhada em toda uma trajetória que é destinada a adaptá-la em sociedade, e o papel não desprezível de fabricar isto para o consumo, fabricar o consumo para fabricar a produção. Isso, aliás, não é original, porque Marx já disse isso. O que eu descrevo diz respeito a certa parte da força coletiva de trabalho, a parte que diz respeito aos setores dos mais vitais, com a família como elemento coletivo, propomos um modelo, um modelo que só é atingido nos cinemas, nos filmes, propomos um modelo de referência. Na verdade, o capitalismo mundial integrado não tem nenhuma intenção de propor esse modelo, ao conjunto da humanidade, o que ele quer controlar são as forças do trabalho no bastião do capitalismo. Quanto ao terceiro ou quarto mundo, segundo o caso, emprega-se a força brutal, nós temos exemplos terríveis de coisas que aconteceram no Irã, na Nicarágua; em outros casos, temos sistemas de assistência, de bem-estar na escala internacional para pegar todas aquelas margens que não participam dessa fortaleza do capitalismo internacional. Se quisermos avançar, progredir nessa questão, não podemos nos contentar sobre generalidades quanto à importância da sociedade, quanto a esses problemas do inconsciente. Na verdade, estamos nesse momento em uma esquina decisiva que cada vez mais vai colocar na ordem do dia a questão da mudança do modelo do inconsciente.
O freudismo propõe ser um sistema de referência para tudo que diz respeito àquilo que escapa ao comportamento normal, às significações dominantes, tudo que diz respeito a uma singularidade do desejo; ele está na descoberta da sexualidade infantil, da homossexualidade, do discurso da histeria. E ao mesmo tempo ele forjou categorias nosográficas que são muito mais ricas que as da psiquiatria clássica e implicam uma concepção inteiramente rica do psiquismo, mas que nem por isso deixa de contribuir para situar esses problemas de margem, esses problemas de singularidade em relação ao novo tipo de normalização. Normalização muito menos repressiva do que a que existia, mas normalização moderna para a época, perfeitamente adaptada a um novo tipo de abordagem desses problemas. No entanto, o problema das normas das marginalidades se apresenta de uma maneira inteiramente diferente. Imaginemos uma estatística que abranja os últimos 150 anos e que nos levaria a pensar que na sociedade industrial desenvolvida há sempre, grosso modo, o mesmo tipo de porcentagem de marginais. Por vezes colocamos alguns em categorias que os levam à prisão ou ao hospício, por outro lado eles vão para os ambulatórios ou então vão para clubes de férias, mas no fundo, nas sociedades desenvolvidas há sempre um grande número de inadaptados, inadaptados muito perigosos que vão para a prisão ou então para o hospício, ou o inadaptado brando com quem se utiliza o cinema, os meios de comunicação de massa. Para cada uma dessas categorias de inadaptados, há equipes especializadas, equipamentos especializados e créditos, pede-se créditos para essa gente que, afinal de contas, tem direito de viver.
Há grande reivindicação humanista para o direito dessas minorias. Mas há fenômenos inteiramente diferentes, vemos minorias de outras naturezas, no seio daquelas antigas minorias, há minorias que já dizem um discurso inteiramente diferente, nos homossexuais, tem gente que diz: “mas eu não quero defender meus direitos, como se eu fosse um desviado, um monstro; deixe-nos viver”. Eles dizem: “não, para nós o homossexualismo é uma coisa que diz respeito somente a nós”. Aliás, isso diz respeito a toda a sociedade também. As minorias feministas que provocavam no início da década, aqueles que iam com as bandeirinhas pedir para votar, não somente elas reclamavam direitos elementares, elas não queriam ser perseguidas, exploradas, violadas; elas punham em questão, além disso, o conjunto da sociedade, o conjunto das hierarquias da organização social. Eu não continuo nesta enumeração, eu poderia falar dos doentes mentais, dos estudantes. Ao lado desta modificação que trabalha as marginalidades vemos aparecer novas marginalidades, algumas são involuntárias, independem da vontade das pessoas. São milhões de desempregados, são milhões de estudantes inteiramente sem perspectivas que sabem que aquilo não vai dar em nada, milhões de trabalhadores e migrantes que são jogados de um lado para o outro numa deportação que lembra muito bem o tempo do nazismo. Na França, de um dia para o outro, pega-se uma carta de identidade de um trabalhador estrangeiro, rasga-se a carta de identidade e manda-se ele para um país com regime de repressão. Esta nova categoria não entra naquelas estatísticas antigas, porque na crise econômica, na crise de reestruturação do capitalismo, essas margens são gigantescas, há regiões inteiras condenadas como o Sul da Itália, a Bretanha, a Córsega.
O capitalismo além de ter devastado as economias tradicionais, as tentativas de industrialização que foram feitas em um lugar e no outro caem e fica uma nova situação de marginalidade. E há um terceiro tipo de marginalização que é o que mais apaixona ultimamente, são as pessoas que recusam simplesmente, recusam qualquer tipo de sociedade, qualquer tipo de trabalho, são pessoas que trabalham ou não, mas que recusam todo tipo de trabalho que lhes é oferecido. Ficou bem claro nos debates que tiveram lugar na Itália ultimamente, que os “emarginati”, como se diz, eles se arranjam para sobreviver de uma maneira ou de outra, mas eles recusam todas as finalidades de trabalho que lhe são propostas, há um novo tipo de luta operária em que se engajam, que se lançam em uma concepção de trabalho inteiramente diferente daquela que existia hoje. O que o movimento comunista tinha feito entrar na subjetividade da classe operária é que os melhores militantes, os melhores dirigentes deveriam ser também os melhores trabalhadores. Agora nós temos um novo tipo de subjetividade nos trabalhadores. Não há razão para respeitar esse tipo de ideal, moral do trabalho já que todas essas finalidades do trabalho se destinam unicamente a um estado repressivo, a uma organização estratificada da sociedade, a uma sociedade falocrática, a devastações ecológicas imensas. Quando juntamos os três tipos de marginalidades que foram mencionados a vocês, temos algo de extraordinário. Porque vemos que as marginalidades não são mais minoria, elas estão se transformando em maioria. No curso de sua vida passa de uma posição a outra; num momento do dia, vocês estão do lado do poder, no outro momento você passa para outro tipo de marginalidade. Essa frente de luta nessa economia do desejo não está muito bem desenhada, é preciso uma lógica que nos faça compreender essa dinâmica constante. O militante operário é aliado numa certa situação, numa outra ele é um tirano doméstico, o burocrata por vezes representa um papel muito importante em uma luta e, num outro nível, ele perde a expressão das pessoas.
Essa nova posição das marginalidades, essa nova posição das normas não nos permite mais impor sistemas de leis sociais tais como existia antigamente. Nem de leis morais tal como existiam antigamente, nem de superegos como existiam antigamente. Trata-se de um sistema de leis a outro, constantemente, nessa situação, nesse agenciamento social, nesta composição social somos uns necrosados; também podemos nos tornar perversos, podemos nos tornar hiperadaptados, mas não há um critério intrínseco para fazer uma categorização. Diante do aparecimento dessas novas marginalidades, o capitalismo tem que dar respostas urgentes; de um lado, ele propõe modelos de reconstituição familiar por todos os meios, ele estabelece sistemas de modernização consideráveis, sistemas de controle permanente. A educação da criança começa na idade mais tenra possível, e para cada ato da vida há uma referência de trabalhador social. O importante é que haja estratificação, segregação social para evitar que uma frente de luta possa se estabelecer por fora da bateria de controle do capitalismo mundial integrado. Nesse sistema deve-se, portanto, preservar uma oposição maniqueísta homem/mulher. É indispensável preservar a oposição entre gerações, entre os trabalhadores técnico-científicos e os trabalhadores manuais. Reproduzir mesmo de maneira muito sutil as relações racistas, e para esse trabalho não funcionam apenas as forças visíveis do poder do Estado, há também aquelas forças tradicionais da esquerda e dos movimentos revolucionários. Porque aí é preciso recuar um pouco, se é verdade hoje em dia que a produção mundial está integrada em vários territórios, um elemento produzido depende de coisas que são agenciadas em diversos países. Mas paralelamente a essa integração mundial, há uma integração molecular, que faz com que não se possa produzir um valor mercantil numa fábrica, em uma loja, sem que se leve em consideração o trabalho de semiotização que é feito nas escolas, nas universidades. E também naquelas famosas famílias fábricas. Se para qualquer produção há uma integração em todo esse campo social, então devemos saber até que ponto esse tipo de reivindicação salarial, por exemplo, se tornou tradicional. Eu me lembro que houve uma época que os sindicatos não admitiam um pré-salário para os estudantes. Eu me lembro também de uma época em que foi dito, quando começou a ser dito que o salário, que o trabalho das mulheres devia ser assalariado como o trabalho dos homens, o trabalho doméstico. Por que os fluxos monetários devem ser canalizados para os homens? Pelo pai de família? Resta saber se o pai é um assalariado, se o assalariado é um pai; para o psicanalista, o que conta é que é o pai. Mas o pai em nível do inconsciente, ele não é o delegado de um sistema de segregação social? O delegado de um sistema de segregação sexual? O delegado de um sistema de segregação entre as diversas idades, entre as raças, entre as regiões desenvolvidas e subdesenvolvidas? Num dos últimos Congressos de Psicanálise que eu participei na Escola Freudiana de Paris, discutiu-se a função do dinheiro na psicanálise. De repente, eu coloquei: “Os psicanalistas estão de acordo que a psicanálise é um trabalho, no sentido profissional do termo?” E o que acontece quando se fala, por exemplo, no sentido do trabalho do sonho (elaboração)? Se o analista faz um trabalho, o analisando (o seu “aparelho psíquico”) faz um trabalho também. O analista recebe (e se recomenda que receba) os honorários pela sua tarefa. Cabe então se perguntar: por que não há um salário para quem faz esse “outro” trabalho elaborativo? Afinal de contas é um trabalho social como qualquer outro. A resposta que recebi foi da ordem de que a análise gratuita apresentava sérios problemas, ou “Você sugere que o analista pague para trabalhar”? Essas réplicas não responderam as minhas perguntas. Obrigado.
FONTE
Texto publicado em UM ENCONTRO INESQUECÍVEL. PRIMEIRO SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE, GRUPOS E INSTITUIÇÕES. Rio de Janeiro, Brasil, outubro de 1978. Editora: Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais (CRP-MG); Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições (IBRAPSI) – Belo Horizonte: CRP-MG, 2023, 650p. Org. Gregorio Baremblitt.