As Klínicas Esquizoanalíticas, é um texto que compõe a 3ª edição revisada do livro Introdução à Esquizoanálise (Ed. FGB/IFG, 2010), de Gregorio Baremblitt. A Fundação Gregorio Baremblitt e o Instituto Félix Guattari descrevem no prefácio deste livro que a principal intenção da Coleção Esquizoanálise e Esquizodrama, a qual o livro se encontra, é “a publicação de textos que sejam de utilidade para todos os interessados nessa práxis, em especial, agentes sociais implicados na transformação do mundo contemporâneo”. Cabe acrescentar que este não é um texto que se encontrava disponível na Internet, pois através das minhas buscas e releituras pude perceber que o livro-PDF disponível na rede faz parte de uma antiga edição, sendo este trabalho revisado e atualizado. Desta forma, em conexão com a intenção acima, transcrevi esta re-edição onde Baremblitt acrescenta novas linguagens e ideias críticas-reflexivas sobre As Klínicas Esquizoanalíticas. Para finalizar, quem desejar ir além desta leitura, sugiro que busque (também) experimentar a leitura da edição mais recente do livro.
Respeitamos sinceramente as denominações (que pretendem “determinar” um estatuto) e as periodizações (que atribuem uma ou outra ordem sequencial) à obra de Deleuze e Guattari. Mas sabemos que se trata de um rizoma multiplicitário inesgotável, e nunca submetido a um decalque definitivo que o divida em partes estanques e inamovíveis. Nada tenho contra uma leitura filosófica ou lógica, ou sociológica da citada obra. Mas, parece-me poder prevenir a aparição de um fenômeno surpreendente: as leituras feitas feitas desde um ponto de vista específico muito frequentemente dão dois resultados notáveis (entre outros). Primeiro, a leitura especifica em questão, para poder assimilar a esquizoanálise a seus domínios (e, portanto, a seus alcances) acaba por “podar” o rizoma esquizoanalítico, desvitalizando-o e triando-lhe audácia e ousadia. Segundo, a “impregnação” esquizoanalítica da especificidade em pauta é tão intensa, que acaba por “digeri-la”, ou por “contaminá-la”, como gostariam de dizer Tarde, Artaud e Camus.
O acima exposto não questiona de modo algum o fato de que, cada um, dê à sua cartografia o nome que lhe pareça mais original e expressivo, já que terão percorrido sempre itinerários únicos e não repetíveis.
Mas,e as navegações que eu tenho proposto e feito, por pobres que possam ser, não são por sua vez, singulares e nunca exaustivas? Sem dúvida alguma, mas o que queremos ver como diferença é que temos escolhido rotas, canais e portos que procuram não sair da esquizoanálise mesma ( se é que esse poliverso mutante, esse oceano turbulento de máquinas livres em variação contínua admite um simulacro de mesmidade). Não digo que “Capitalismo e Esquizofrenia” deva ser o primeiro livro, nem o último a ser visitado, apenas sustendo que é indispensável passar por ele.
Quanto aos nomes, creio que são: esquizoanálise ou pragmática universal (segundo constam em O Anti-Édipo e em Mil Platôs, respectivamente), mas também cabem à esquizoanálise os apelativos de ecosofia, ecopráxis, micropolítica, “uma cura”, “uma vida”. Assim como também se pode dizer dela que é sabedoria… e filosofia… e ciência… e arte (sobretudo literatura e música)… e política… e clínica… e delírio e qualquer individuação por hecceidade. Nenhuma dessas denominações nos estranharia. O importante é que depois desse livro-evento… já nada será como antes… e que esse advento merece, além de “todos os nomes da história”, um nome próprio. Algo assim como “O efeito Deleuze e Guattari“, “esquizoanalizar, 1968, Paris“. Mas, justamente por isso, é preciso perguntar se depois desta individuação, “todos” os nomes-estatutos e os “inventários de diferenças”, tanto quanto suas “periodizações-hierarquizações” (por exemplo, as especificidades e as profissionalidades) não tendem a tornarem-se irreversíveis e transversalmente mutantes?
Em outras palavras: uma vez fragmentadas, pinçadas, “digeridas” e ejetadas parcialmente pela esquizoanálise, as profissionalidades e as especificidades devem deixar de existir como tais? “Tudo” se torna assim parcialmente esquizoanálise? Isto é, ou bem uma questão de “gostos” ou uma escolha meramente estratégica. Brincando um pouco com a questão do “gosto”: quem quer que seja, quando se trata, por exemplo, de automóveis, pode preferir um Cadillac modelo 1950 a um Sedan ecológico movido a energia solar, ou a um trem bala movido a fusão atômica. Mas tendo satisfações de colecionador e ainda de restaurador, nada se saberá da potência estratégica e da “dose” de realteriadade das invenções mencionadas; por isso é pouco o que pode ter a esquizoanálise de “retrô” ou de “revival”. Pelo menos é certo que em muitos itens a esquizoanálise reavalia releituras de um passado que realmente foi melhor.
Da esquizoanálise se pode fazer uma cartografia materialista dialética, ou uma empirista lógica, ou neo-positivista, ou fenomenológica, ou existencialista, ou humanista, ou estruturalista, mas o “viés” de leitura da especificidade em questão terá inevitavelmente “um não sei que a mais de diferente” que confere à disciplina em questão um “valor agregado” inconfundível. Não importa demasiado se a especificidade em questão acaba apropriando-se caladamente de moléculas, partículas ou fluxos da esquizoanálise (como tem ocorrido regularmente). Segundo acredito, uma das razões para conservar os modos, processos e efeitos, assim como assumir explicitamente cada uma dessas respectivas leituras, são suas inesperadas e não reconhecidas mutações, o qual tem muito a ver com a importância que Deleuze e Guattari atribuem nos experimentos esquizoanalíticos a certa dose de real, possível e impossível, que serve de algo como uma ancora do barco na tormentosa travessia do especialista no insondável e proceloso mar esquizoanalítico.
Não falta quem diga, com mais interesses que inspiração, que a militância, a educação, as “ciências médicas”, a vida cotidiana etc. são “aplicações clínicas” da esquizoanálise. Talvez seja assim, mas é interessante que nenhuma das práticas mencionadas se gaba especialmente de ser uma e só uma especificidade.
Tampouco, falta quem interrogue que o que denominamos de psicanálise nunca poderá ter nenhum viés esquizoanalítico? Parece evidente que não, mas se isso chegar a acontecer, será que a psicanálise não terá já devindo esquizoanálise? Por que não? E ainda, se deveio e se seguirá devindo esquizoanalítica, o fará, inevitavelmente, de maneiras singulares, e como multiplicidades, ou seja, sempre como o outro de uma suposta esquizoanálise princeps que, a rigor, não existe como tal. Mas o certo é que conceber uma psicanálise assim, é como (guardando as devidas distâncias) disfarçar qualquer fascismo aggiornado. Será ridículo conservar o nome, o divã, a semiologia do significante, o sujeito, “isto é o que você queria dizer”, a “fama”, o marketing, o inconsciente edipiano etc.
Por isso, os deleuzianos “de carteirinha”, assim como os pundonorosos reativos a uma presuntiva ortodoxia esquizoanalítica impossível, tanto em termos como de fato, podem dormir tranquilos. O problema não é esse. A questão consiste em como aprender a sonhar acordados.
As klínicas esquizoanalíticas, com k, obviamente, têm tudo a ver com o klinamen: desvio produtivo na queda dos átomos que, segundo os atomistas, os epicúreos e os estóicos, gerava um encontro de trajetória que “criava” o novo. Tais klínicas, que pouco e nada tem a ver com o clinos (o paciente deitado, reclinado passivo etc), não serão importantes demais para constituir um patrimônio dos clínicos convencionais? Particularmente, dos intelectuais que ostentam antigos e diversos títulos que os consagram como tais? Refirmo-me, especialmente, aos que se proclamam filósofos-professores, psicanalistas, holistas, sistêmicos… ou não sei o quê?
Não se pode desconhecer que muitos desses clínicos devêm ocasionalmente esquizoanalistas sem sabê-lo (e que talvez nem precisem inteirar-se disso). A partir da ideia de heterogênese (o diferente que nasce do diferente, o diferente que estoura no seio do igual), jamais conseguiremos nem ignorar nem conhecer a infinita variedade dos dispositivos klínicos, assim como a dos efeitos klínicos dos agenciamentos que, desde a superfície de registro-controle, não se identificam como klínicos. Mas tampouco, cabe desconhecer que há quem se acha esquizoanalista e se apresente, por exemplo, como psicanalista, o qual não aparenta propriamente ser, nem uma estratégia de infiltração, nem um disfarce segundo o qual um simulacro se fantasie de “boa cópia”; mais parecem ser “más cópias” que aspiram aos benefícios que, na “República”, estão reservados aos “autênticos pretendentes”. Certamente, sabemos que certas denominações e títulos podem ser inevitáveis para poder “infiltra-se” num trabalho que, embora seja micropolítico ou minoritário, pode envolver multidões (multiplicitárias). Não é por causalidade que Gilles Deleuze cunhou o prognóstico: “vislumbro um mundo no qual todos seremos clandestinos“. Desde uma micro percepção hiper veloz, não costuma ser muito difícil distinguir um militante esquizoanalista disfarçado de membro do establishment de um psicanalista supostamente “apócrifo”, ou de um professor ortodoxo fantasiado de esquizoanalista, ou de um esnobe de variadas titulações ou de nenhuma. Não me parece que quando necessário, seja complicado fazer essa distinção. Por um lado, dá para ver um esquizoanalista disfarçado de sacerdote de um culto filosófico (supostamente para poder sobreviver, pretensão essa que não temos porque questionar). Por outro lado, é bastante menos difícil “diagnosticar” como esquizoanalista a um líder indígena lutando pela demarcação das suas terras para dar-lhes um uso agrícola “orgânico” do que um “esquizoanalista na moda” exibindo uma coroa de penas, desfilando num hotel cinco estrelas.
Por tudo isso, será que “não dá a pensar” que devir um klínico esquizoanalista não passa pelos títulos que legitimam ou “autorizam” essa condição, mas que passa muito mais por um modo de klinicar, por um modo de viver desejante, produtivo, revolucionário? Será que para conceitualizar esse modo de viver, basta a fórmula indubitavelmente magnífica: não fascista? Ou é preciso acrescentar, por exemplo: não neoliberal e até não social real ou não social-democrata?
Ou seja, não-heterogestor e não-hetero-analítico?
Será que para um viver desse modo, fazer klínica esquizoanalítica exige-se delimitar qual parte do afetar e ser afetado da existência do “expert” corresponde ao “ofício” de klínico?
Já ouvi e até escrevi que na formulação das perguntas estão implícitas as respostas. Mas gostaria muito que o leitor não tomasse estas interrogações como deliberadamente retóricas. Porque, é acaso “ponto pacífico” como devém e devirão as ofertas, as demandas, os contratos, as implicações, as caixas de ferramentas, os diagnósticos e as curas nas klínicas esquizoanalíticas? São por acaso “ponto pacífico” quais serão os espaços e os tempos, os personagens klinicais (tanto por parte dos “agentes”, como pela dos “pacientes”): individuais, coletivos, equipes, grupos, organizações, civilizações? Como seria a formação de um klínico esquizoanalista, como seriam suas “sociedades científicas ou acadêmicas”, suas “comunicações bibliográficas”, seus “conselhos e sindicatos”?
Por um lado: faz sentido colocar estas perguntas, boa parte de cujas formulações já começam obsoletas para a nova klínica (tanto como esquizoemas como enquanto recursos de intervenção), já que constituem exatamente o que há que se criticar e recriar? E, não obstante: faz sentido tratar de prever o imprevisível, de dizer o indizível, de conceitualizar o virtual recém atualizado ou por atualizar? As klínicas esquizoanalíticas como transmutação? Ou como elegante aggiornamento subliminar homeopático, mais ou menos flagrante? Falando nisso: o leitor já ouviu falar em homeopatia quântica? Será que já tem uma homeopatia esquizoanalítica? Que diabos será isso?
Mais substancialmente: as klínicas esquizoanalíticas estarão destinadas exclusivamente às elites pagantes? … Ou ao Povo? … Seja até mesmo que se entenda um “povo que está por vir”?
Sabemos que “máquina de guerra” não significa “artefato bélico”, mas, assim como os “mundos” estão cheios de genocidas: vale a pena qualquer maquinação, que não tenha, pelo menos, uma dimensão guerreira? Como se assegurar para distinguir a “biolência” combativa necessária de uma violência pela morte?
Interessa, por exemplo, interrogar-se o que não seria klínica esquizoanalítica, embora a negação não seja um recurso preferencial da esquizoanálise?
É bom recordar que das proposições indecidíveis surgem as conexões inventivo-revolucionárias e também pode surgir a geléia pós-moderna.
Nessa Catedral flutuante, chamada O Anti-Édipo, construída por dois geniais compagnons (trabalhadores autogestionários da construção, no século XII, na França), estão prescritos dois tipos de tarefas para a esquizoanálise: as negativas e as positivas. Será arbitrário demais imaginar que todos os escritos “anteriores” e “posteriores” (enfatizando Mil Platôs), não fazem outra coisa que cumprir “lisa” e “aionicamente” com essas duas tarefas? Que outra coisa podemos fazer, os klínicos esquizoanalíticos, que continuar reinventando esses trabalhos?
Uma klínica com um paradigma estético, uma estética klínica, ou uma klínica estética sem paradigma algum? Uma ciência menor dita em uma língua menor, que se transversalize com uma literatura menor… Uma filosofia sem fundamento, um pensamento sem imagem, uma micropolítica do desejo… Uma práxis da diferença, de conexões que dêem à luz as singularidades intensivas, da proliferação de multiplicidades incapturáveis, da geração de hecceidades irredutíveis, da concepção de individuações inclassificáveis… O certo é que todos esses conceitos, funções e variações (esquizoemas) são para nós, contemporâneos, um inapreciável “presente dos deuses”, com a condição de que as valiosas instruções acerca de “como fazer um corpo sem órgãos” (ou “como montar dispositivos caósmicos”) são capítulos maravilhosos que narram o “que se passou”, mas não o que “está se passando”, nem o que “está por passar”.
Uma klínica como uma desabituação dos hábitos e uma canalização para a conexão das afinidades paradoxais? Uma klínica como uma desmitificação das semelhanças, das analogias, das contradições da representação e da noção? Uma klínica como da afirmação da diferença? Uma Klínica como a promoção de um novo entendimento para gestar “bons encontros”? Uma klínica como uma nova arte do uso disjunto das faculdades? Uma klínica como geração do acontecer-sentido? Uma klínica como uma nova lógica do sentido e da sensação? Uma klínica como assunção da univocidade do ser e do eterno retorno da diferença, tanto quanto como da transvalorização dos valores? Uma klínica como reformulação de “falsos problemas” e como “estratégias” para a atualização do virtual? Uma klínica com a inclusão de semióticas a-significantes? Uma klínica nômade dos espaços lisos, das dobras infinitas, do pensamento do fora, do diagrama e não do programa, da desterritorialização, das linhas de fuga, do acontecimento, dos novos ritornelos literários ou musicais contra a brusca interrupção ou a aceleração ao infinito do processo esquizôntico, contra as reterritorializações normais, neuróticas, e perversas (de divã), paranóicas, melancólicas e esquizofrênicas (de manicômio), contra o edipismo, o familiarismo, o estatismo, os fundamentalismos, totalitarismos, tiranias, dita-duras ou “brandas”, ou contra o organismo? Uma klínica maquínica? Uma crítica e klínica… Uma noologia klínica… Uma klínica do devir mulher, uma klínica do devir animal, do devir célula, do devir imperceptível, do devir cérebro? Uma klínica que funciona “entre”, ou seja, que provoca realizações da realteridade nos interstícios “entre” as realidades molares, sejam elas micro ou macro.
Apenas como uma menção vale opinar que, em geral, as klínicas mais intensivantes são as que se valem das artes e das artesanais, mas, especialmente, as que passam pelos corpos, tanto os que descritivamente denominamos “meu” ou “teu” corpo (que em geral tem alguma correspondência com o corpo anátomo-fisiológico), mas falando muito mais amplamente, se refere aos diversos corpus: físico-químico, neuronal, familiar, grupal, institucional, linguístico, corporativo, “imaginário”, “simbólico”, intuitivo, cultural etc. Isto seja dito sem perder de vista que em cada um desses estratos, códigos e territórios pode-se tratar tanto do corpo sem órgãos, como do corpo-cheio, como do corpo pleno.
Do mesmo jeito que cada leitor pode fazer suas próprias cartografias na leitura da obra esquizoanalítica, cada operador pode inventar suas klínicas. Isso não implica que não possa inspirar-se em algumas que já existem e que podem ser-lhe afins.
O autor destas páginas inventou em 1973 uma klínica que denominou esquizodrama. Muitos companheiros o têm praticado e incrementado desde então em diversos países da América Latina e Europa. Trata-se da obra de uma multiplicidade de autores.
Cabe suspender aqui estas linhas reconhecendo que tem capítulos extraordinários de Capitalismo e Esquizofrenia aos que não temos tido aqui folego para referir-nos em detalhe. Ficarão, talvez, para outra oportunidade. Ars longa vita brevis.