LACAN: PARTIR DA PERSONALIDADE / UMA QUESTÃO DE MÉTODO – por Vladimir Safatle

Aula 2 do Curso Integral Introdução à Jacques Lacan, realizado na Universidade de São Paulo (USP) em 2009.


PARTIR DA PERSONALIDADE

Na aula de hoje, começaremos nosso primeiro módulo, este dedicado à leitura da tese de doutorado de Jacques Lacan, defendida em 1932. Gostaria de tratar de algumas questões centrais capazes de direcionar a leitura da primeira parte do livro, esta intitulada: “Posição teórica e dogmática do problema”, assim como a Introdução. Da primeira parte, peço especial atenção para o capítulo “Crítica da personalidade psicológica”.

Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade é o nome de sua tese de doutorado em medicina, o primeiro livro publicado por Lacan[1]. Já seu título deixa evidente a tentativa de estabelecer uma relação entre análise de estruturas patológicas (psicose paranoica) e processos gerais de constituição da subjetividade (personalidade) que coloca a tese, ao mesmo tempo, como uma reflexão clínica e como indagação sobre fatos que devem ser catalogados no interior de uma teoria geral do sujeito.

Orientada pelo psiquiatra Henri Claude, chefe de clínica do Hospital parisiense de Saint-Anne, a tese não deixava de trazer algumas marcas de seu orientador: era aberta a uma tentativa de articulação entre psiquiatria e psicanálise e insistia na autonomia da causalidade dos distúrbios psíquicos em relação aos fenômenos orgânicos, isto ao menos no caso da análise da psicose paranoica. De fato, a dita “Escola de Claude”, baseada no Hospital de Saint-Anne, foi responsável pelos últimos grandes trabalhos da escola francesa de psiquiatria. Henri Claude era uma das figuras mais influentes do meio psiquiátrico de então e havia trabalhado pela introdução de psicanalistas em serviços de psiquiatria, assim como tentara constituir um quadro nosográfico híbrido, capaz de reconhecer tanto estruturas causais psíquicas quanto orgânicas na determinação das doenças mentais. Algo de seu hibridismo continuará nas concepções “organo-dinamistas” de Henri Ey, outro de seus alunos que influenciará de maneira decisiva o debate sobre a clínica das doenças mentais na França.

A tese de Lacan procurava defender uma perspectiva à época chamada de “psicogênica” e que consistia em afirmar que: “na ausência de qualquer déficit detectável pelas provas de capacidade (de memória, de motricidade, de percepção, de orientação e de discurso), e na ausência de qualquer lesão orgânica apenas provável, existem distúrbios mentais que relacionados, segundo as doutrinas, à ‘afetividade’, ao ‘juízo’, à ‘conduta’, são todos eles distúrbios específicos da síntese psíquica”[2]. Pois: “um delírio não é um objeto da mesma natureza que uma lesão física, que um ponto doloroso ou um distúrbio motor. Ele traduz um distúrbio eletivo das condutas as mais elevadas do doente, suas atitudes mentais, seus julgamentos, seu comportamento social”[3]. Ou seja, tratava-se de uma perspectiva que insistia na irredutibilidade de um certo quadro de distúrbios mentais a toda e qualquer explicação causal de natureza orgânica ou funcional. Quadro no qual encontraríamos, de maneira privilegiada, o que a psicanálise ainda hoje compreende por psicose paranóica. De fato, Lacan se baseia em uma distinção tacitamente aceita à época entre psicose e demência, onde a segunda estaria necessariamente associada a uma lesão orgânica, já que ela seria uma doença mental adquirida, de origem exógena pois exterior ao psiquismo (sendo que a aquisição de uma doença mental poderia se dar por fatores toxi-infecciosos ou por lesões cerebrais), enquanto a primeira seria a manifestação de distúrbios da síntese psíquica resultante de doenças mentais congênitas, de origem endógena pois interior ao psiquismo (não porque são predisposições constitucionais, mas porque indicam sistemas de reação a situações sociais). Síntese esta que Lacan não temia em chamar de personalidade. Daí porque, Lacan definirá: “É psicogenético um sintoma – físico ou mental – cujas causas se exprimem em função dos mecanismos complexos da personalidade, cuja manifestação os reflete e cujo tratamento pode deles depender”[4].

Baseando-se em uma definição clássica, Lacan dirá que a personalidade é uma categoria construída para dar conta das operações de síntese de nossa experiência interior, da intencionalidade presente em nossas ações e da responsabilidade resultante da possibilidade de determinar constâncias para além das variações sentimentais e modificações de situação. Unidade sintética, sede da imputabilidade e categoria que expõe a natureza voluntária da ação: eis as três características fundamentais deste conceito de personalidade.

Por outro lado, no edifício clínico psicanalítico lacaniano, a paranoia é concebida como uma das três categorias nosográficas próprias à estrutura psicótica (as outras duas são a esquizofrenia e a melancolia ou psicose maníaco-depressiva). Estruturas estas cujo sintoma definidor é, principalmente, a produção sistemática de delírios e alucinações. Atualmente, em manuais diagnósticos de transtornos mentais como o DSM-IV, a paranóia aparece como um subtipo da esquizofrenia. Fala-se então em esquizofrenia do tipo paranóide. No entanto, tanto em tais manuais quanto na literatura psicanalítica, temos um quadro de identificação relativamente simétrico que vê, na paranóia, um comportamento psicótico marcado pela produção sistemática de interpretações delirantes (ligadas normalmente a temáticas de perseguição, ciúme, grandeza e erotomania) e por uma certa ausência de deterioração intelectual (o que explica o uso relativamente ordenado da linguagem e a consistência da conduta). 

Lacan baseava sua análise da paranoia em uma noção relativamente comum à época que atribuía a gênese da doença a um problema evolutivo da personalidade. Kraepelin e Krafft-Ebbing, por exemplo, insistiam no fato dos delírios paranoicos surgirem sem hiato em relação à personalidade anterior, como se “a economia do patológico parecesse calcada sobre a estrutura normal”[5].

Mas caso de Lacan, isto lhe permitia insistir que apenas a compreensão do processo de formação da personalidade poderia fornecer a inteligibilidade da psicose paranoica. Uma personalidade que não poderia ser analisada tal como analisamos um objeto físico que decompomos em várias propriedades separadas. Daí porque ela não era definida como centro funcional que poderia ser analiticamente decomposto em faculdades (como sensação, imaginação, entendimento etc.) e funções intencionais (crenças, desejos, sentimentos, memória etc.) isoladas.

A personalidade a que Lacan se referia seria, ao contrário, uma totalidade indivisível cujas funções e faculdades estariam organicamente relacionadas, até porque cada ato do indivíduo, cada percepção de objeto atualizaria uma estrutura global de conduta e de inteligibilidade. Por isto não seria possível apreender o sentido da mais simples reação ou reflexo sem reportá-lo à totalidade representada pela personalidade individual. Esta temática do comportamento como uma totalidade funcional, desenvolvida à época graças principalmente à psicologia da Gestalt, será importante para Lacan. Ela lhe permitirá lembrar como a personalidade nos coloca diante de um sistema onde, digamos, o todo não é o resultado da somatória das partes, já que o sentido de uma função ou faculdade é sempre resultante das interações com o conjunto do sistema[6]. Desta forma, a personalidade, ao permitir uma “síntese psíquica”, forneceria o verdadeiro solo para a compreensão do sentido da conduta e da intenção.

Neste sentido, não é por outra razão que a tese começa com uma citação bastante clara de Spinoza: “Um afeto qualquer de um indivíduo discrepa do afeto de um outro tanto quanto a essência de um difere da essência do outro”[7]. Spinoza põe tal afirmação a fim de lembrar que todos os afetos estão relacionados ao desejo (cupiditas) e que o desejo de um indivíduo (individui) difere do desejo de um outro, tanto quanto a essência de um difere do outro. Ou seja, só é possível compreender o que está em jogo em um afeto através da introdução de um conceito que visa fornecer uma perspectiva global de inteligibilidade da conduta, um conceito que teria o peso de determinação essencial. Este conceito é o desejo, pensado, como já vemos desde o início, em chave francamente filosófica.

Esta noção de personalidade está na raiz da recusa lacaniana em dissociar o diagnóstico das patologias mentais em síndromes separáveis, assim como algo desta noção será responsável pela sua tendência em sempre trabalhar com “grandes estruturas” como psicose, neurose e perversão. Pois tais estruturas conseguiriam articular uma transformação global da personalidade, das relações com o meio ambiente e da concepção de si mesmo, não se contentando com a descrição de modificações pontuais de conduta.

Lacan em momento algum ignora o que ele mesmo chama de “bases biológicas dos fenômenos ditos de personalidade”[8], mas ele insiste que o regime de causalidade de tais fenômenos só pode ser definido por “relações de compreensão”. Com isto, ele se apoiava em uma distinção maior para a psiquiatria de inspiração fenomenológica da época, a saber, a distinção entre explicação (erklären) e compreensão (verstehen). 

A distinção, que podemos encontrar na maneira com que Dilthey procura distinguir o regime de causalidade em operação nas ciências da natureza (Naturwissenschaft) e nas ciências do espírito (Geistwissenschaft), havia sido introduzida em psiquiatria por Karl Jasper, isto a fim de distinguir dois regimes de causalidade dos fenômenos psíquicos. Jasper lembrava que perseguimos na psicopatologia a identificação de conexões entre fenômenos. No entanto, há conexões especificas que nos demonstram como um evento psíquico é produzido por outro evento psíquico. Nestes casos: “O psíquico é ´resultado´ do psíquico de maneira que é para nós compreensível”[9], ou seja, há uma dimensão de reação psicológica que, para ser apreendida, não exige nada mais do que a determinação de conexões entre estados psíquicos. Esta compreensibilidade é sinal de uma evidência provada devido à experiência em relação às personalidades humanas. No entanto, tal evidência, para se mostrar real, deve basear-se em pontos de apoio tangíveis, como os conteúdos verbais, as criações mentais, atos, movimentos expressivos, etc. É ainda passível de compreensão o desenvolvimento da personalidade que tem por origem somente as disposições individuais que evoluem, de maneira coerente, durante as épocas da vida.

Esta dimensão da conexão compreensiva não pode ser simplesmente redutível aos fenômenos que são apreendidos através do desvelamento de conexões causais, ou seja, de relações estritas de causa e efeito facilmente encontráveis no mundo físico. Jasper utilizava este modo de conexão causal para dar conta da influência, nos estados mentais, de processos orgânicos diversos ocasionados por lesões, intoxicações ou infecções que alteravam os ciclos de evolução típicos do desenvolvimento psíquico. A partir desta perspectiva: “podemos conceber o estado anímico do perseguido ´colocando-nos em seu lugar´ (fenomenologia) e podemos compreender suas reações de violência, desespero e medo (compreensão genética); podemos também compreender a relação entre a ideia elevada que ele faz de si mesmo,  sua desconfiança inquieta do mundo e as injúrias que ele sofre (quer sejam correntes ou estejam em relação direta com sua própria atitude), por um lado, e o desenvolvimento do delírio, por outro; mas não podemos compreender o estado anímico permanente a que chamamos ´constituição paranoica´, referindo-o assim a uma causalidade genética, biológica, hereditária, e a mecanismos extra-conscientes cerebrais”[10].  É isto que leva Lacan a dizer que os fenômenos da personalidade: “tem para nós um sentido (verstehen) sem que tenhamos necessidade de descobrir neles a lei de sucessão causal que nos é necessária para explicar (erklären) os fenômenos da natureza física”[11]. 

Como foi dito, a personalidade para Lacan teria um processo de formação que pode ser compreendido a partir de uma certa coerência, algo que Lacan alude ao falar do “desenvolvimento regular e compreensível” da personalidade. Tal desenvolvimento seria, fundamentalmente, o resultado de dinâmicas de socialização visando a individuação. Este seria o campo da objetividade, por exemplo, dos fatos mentais ligados aos distúrbios da síntese psíquica. Daí porque Lacan deve lembrar que todo conceito de personalidade comporta três elementos: um desenvolvimento biográfico, uma concepção de si mesmo e, sobretudo, uma certa tensão das relações social, já que a personalidade é, desde o início, um conceito relacional. Desta forma, ela não se funda nem no sentimento  da síntese pessoal, nem na unidade da consciência individual, nem na extensão dos fenômenos da memória.

Forma-se a personalidade através da socialização do indivíduo no interior de núcleos de interação como a família, as instituições sociais, o estado. Tal processo de socialização implica em uma certa gênese social da personalidade que deve servir de horizonte para a compreensão de patologias que se manifestam no comportamento. O que não significa negar as bases orgânicas da doença, mas em insistir em um domínio de causalidade vinculado àquilo que Lacan chama à época de “história vivida do sujeito” ou ainda “história psíquica”. Por isto, ele pode dizer não ser supérfluo: Informar-se sobre o conjunto da personalidade do doente”, já que “a concepção subjacente que ele tem de si mesmo transforma o valor do sintoma”. O que não poderia ser diferente quando afirmamos que:

Um delírio na verdade não é um objeto da mesma natureza que uma lesão física, que um ponto doloroso ou uma perturbação motor. Ele traduz uma perturbação eletiva das condutas as mais elevadas do doente; de suas atitudes mentais, de seus julgamentos, de seu comportamento social. Além do que, o delírio não se exprime diretamente através desta perturbação; ele se significa em um simbolismo social. Este simbolismo não é unívoco e deve ser interpretado[12].

Note-se que não se trata de negar a possibilidade de que estados mentais possam ser descritos como estados físicos, mas trata-se de negar que descrevemos a causalidade de tais estados mentais quando encontramos seu paralelo fisiológico.

Este é um ponto importante porque tais considerações sobre a relação entre a personalidade e as doenças mentais eram, no fundo, animadas por uma verdadeira questão de método a respeito da objetividade dos fatos psicológicos em geral. Neste sentido, não devemos esquecer como, a esta época, uma das influências mais visíveis de Lacan era um pequeno panfleto que marcará o debate epistemológico a respeito da clínica dos fatos mentais na França a partir dos anos trinta: Crítica dos fundamentos da psicologia (1928), de Georges Politzer. Panfleto cuja zona de influência se estendeu a Merleau-Ponty, Sartre, Canguilhem e ao jovem Michel Foucault.

UMA QUESTÃO DE MÉTODO

Georges Politzer era filósofo e teórico marxista de origem húngara, embora vivesse em Paris desde 1921, isto devido a sua participação no movimento fracassado que levou ao efêmero governo socialista de Bela Kun. A partir dos anos 30, ele dará aulas de materialismo dialético na Universidade Operária de Paris. Desde cedo interessado pela psicologia e pela psicanálise, Politzer irá, a partir dos anos 30, tomar distância da última de maneira ferrenha, isto a fim de se dedicar à economia política e à difusão do marxismo. Ele morrerá fuzilado pelos nazistas em 1942.

Crítica dos fundamentos da psicologia foi saudado à época como um acontecimento no que diz respeito à reflexão epistemológica sobre a psicologia e a psicanálise. A golpes de machado, Politzer insistia na inadequação em pensar a racionalidade da psicologia a partir da transposição de esquemas interpretativos e paradigmas de análise próprios às ciências físicas, ou seja, a partir de possibilidade de mensuração, de redução quantitativa e de abstração a um padrão geral de cálculo. Pois estas são “ciências da terceira pessoa” que descrevem seus objetos como se descreve algo na terceira pessoa. Ao contrário, para que a psicologia seja possível, fazia-se necessário uma “ciência da primeira pessoa”, ciência de fatos que só fazem sentido quando reportados à primeira pessoa do singular ou, se quisermos utilizar o vocabulário do jovem Lacan, a uma personalidade. Esta ciência seria uma “psicologia concreta”, ou seja, uma psicologia não mais dependente de abstrações que só nos permite tratarmos do homem “em geral”, da vida “em geral”. Pois ela poderia fornecer o verdadeiro campo das relações concretas que permite a inteligibilidade da conduta humana[13]. Um campo constituído exatamente por aquilo que Lacan chamava à época de “história vivida dos sujeitos”.

Mas demoremos um pouco em Politzer a fim de melhor compreendermos o que estava realmente em jogo em suas elaborações. Politzer pretende falar da: “morte da psicologia oficial, desta psicologia que se propõe estudar os processos psicológicos, seja procurando apreendê-los em si mesmos [ou seja, de maneira imediata, como um dado imediatamente disponível à introspecção da consciência], seja através de seus concomitantes ou determinantes fisiológicos [como se a fisiologia fosse naturalmente o espaço causal capaz de orientar os métodos próprios à clínica], seja através de métodos “bricolados”[14]. Ou seja, trata-se de colocar em suspeição tudo aquilo que se apresentava como progresso na fundamentação do conhecimento dos fatos psicológicos desde que Wundt aparecera como fundador da psicologia moderna por ter sido o responsável pelo primeiro laboratório do mundo dedicado à psicologia experimental.

De fato, Politzer lembra como Wundt aparecia enquanto momento mais bem realizado de uma trajetória visando livrar a psicologia do penso de noções metafísicas de “alma” ou da possibilidade de apreensão imediata de dados da consciência através da auto-observação. Daí normalmente a maneira de descrever o impacto das pesquisas de Wundt como um abandono da submissão da psicologia à filosofia, abandono da noção de psicologia como “ciência da alma”, isto a partir do uso massivo de técnicas experimentais de mensuração de constantes fisiológicas objetivamente identificáveis. Uso massivo que pressupunha reduzir estados e eventos mentais à mensuração objetiva de estímulos e respostas fisiológicas. Desta forma, aparece uma “psicologia fisiológica” que determinava o fato psicológico fundamental como a “excitação” a partir de órgãos externos de sentido.

Mas esta submissão da racionalidade da psicologia à fisiologia era o resultado de uma longa tradição racionalista que procurava definir a psicologia como “física do sentido externo”, ou seja, como o que permite o cálculo capaz de: “determinar as constantes quantitativas da sensação e as relações entre tais constantes”[15]. O que deve ser salientado aqui é como a física matemática aparece enquanto padrão de racionalidade para a constituição da objetividade da psicologia. A objetividade do objeto da psicologia deveria ser pensada tal como a objetividade própria a fenômenos que são objetos da física, ou seja, a partir de possibilidade de mensuração, de redução quantitativa e de abstração a um padrão geral de cálculo.

Esta perspectiva própria à psicologia fisiológica de Wundt é criticada por Politzer através da acusação de “formalismo”. Um formalismo que demonstraria como a psicologia experimental não seria outra coisa que um disfarce responsável pela sobrevivência da psicologia clássica, esta mesma que seria marcada pelas crenças metafísica na noção de “alma”.

De fato, tal afirmação de Politzer parece, a primeira vista, o mais completo contrassenso. Pois em que a psicologia experimental continuaria ainda tributária dos descaminhos próprios a uma noção pré-científica de psicologia? Politzer lembra que a história da psicologia a partir da psicologia experimental de Wundt (ou seja, esta história marcada principalmente pelo advento do behaviorismo, da Gestalt e da psicanálise) não era, como poderíamos esperar, a consolidação de um corpo não-problemático de conceitos e de uma partilha tacitamente aceita de métodos. Ao contrário, esta história não é de uma organização, mas de uma dissolução. Daí a afirmação central: “O movimento psicológico contemporâneo é apenas a dissolução do mito da natureza dupla do homem”[16].

A ideia central aqui é: a psicologia foi até então tributária de uma mitologia vinculada a própria natureza de seu objeto, ou seja, o sujeito enquanto centro funcional de condutas e emoções. Esta mitologia deve ser dissolvida para que a psicologia como ciência possa se instaurar, para que a psicologia possa acordar de seu “sono dogmático”. Mas para que este despertar ocorra, faz-se necessário o reconhecimento claro do fato de que a psicologia clássica não é outra coisa que a elaboração nocional de um mito.

Politzer acredita que a psicologia nunca conseguiu escapar das conseqüências de um pretenso dualismo entre mente e corpo. Daí a oscilação infinita entre duas saídas possíveis. Por um lado, o subjetivismo espiritualista que restituía à alma os seus direitos graças às ilusões da imediaticidade da interioridade. Uma psicologia baseada nos usos clínicos da introspecção, uma certa ciência do sentido interno, seria resultado resultante daquilo que poderíamos chamar de “ideologia da vida interior”, ou seja, a implementação clínica de um conceito normativo de sujeito baseada na autonomia espontânea, na transparência imediata de si a si e no rebaixamento do corpo enquanto pólo de determinação do sentido da conduta. Mas sua essência é apenas a “abstração”, já que ela implica apenas o homem “em geral”, a vida “em geral”, e não a vida humana inserida na particularidade da história de seu desejo.

Por outro, o materialismo objetificador que interpretava o comportamento e o pensamento humano através de um paradigma reducionista ou tal como, por exemplo, a psicologia do reflexo, as diferentes formas de associacionismo e a psicologia experimental. Contrariamente a noção de que a consciência deveria ser  distinta das leis causais que determinam o mundo físico, tratava-se de insistir que a mesma objetividade própria a descrição dos fenômenos físicos deve ser aplicada à apreensão da inteligibilidade dos fatos psicológicos.

Este ponto pode ser melhor compreendido se lembrarmos das colocações que Politzer apresenta a respeito do behaviorismo. Enquanto tentativa de preencher as condições do que o próprio Politzer define como uma psicologia concreta, o behaviorismo teve o mérito de renunciar à noção de vida interior. Mérito de criticar a noção de vida interior como resquício de um pensamento animista no interior da ciência. Watson percebeu que a única atitude científica possível para a psicologia consistia em fazer tabula rasa de tudo o que se apresentava como introspecção e espiritualidade. Mas, ao salvar a objetividade, o behaviorismo perdia a psicologia. Pois tudo o que o behaviorismo pode nos ensinar é da ordem da mecânica animal. Continuamos presos à alternativa dualista do “dentro ou fora”. Ou elegemos a percepção interna como o fato psicológico ou, como fazem os behaviorista, escolhemos a percepção externa: “Para suplantar a antítese clássica, dirá Politzer, faz-se necessário renunciar a ver o fato psicológico em uma percepção qualquer e consentir em colocar, na base da ciência psicológica, um ato de conhecimento de uma estrutura mais elevada do que a simples percepção”[17]. 

O importante a renunciar é a perspectiva realista ingênua que acredita ver, no fato psicológico, um dado simples que corresponde a uma realidade perceptível, seja ela interna ou externa. É neste ponto que o psicólogo da introspecção e o behaviorista se tocam: todos os dois acreditam na premissa epistemológica do fato naturalmente dado. Enquanto os primeiros acreditam que “nada é mais bem conhecido pela mente do que ela própria” e, por isto, os estados mentais estão diretamente presentes à consciência, os segundos invertem a posição teórica afirmando que são os estados físicos que naturalmente são dados à consciência e recaem no realismo metafísico. O behaviorista prefere ignorar que a percepção de um estado físico depende do que estamos acostumados a ver[18]. Ela é inferencial e não imediata.

Note-se que a questão de método aqui diz respeito à definição do que é um fato psicológico ou, se quisermos, um fato mental. Politzer quer lembrar que o fato psicológico não é uma simples reação, reflexo ou tropismo. O fato psicológico é aquilo que sempre procura realizar uma aspiração de sentido. Enquanto objeto do conhecimento, ele não é um dado simples mas, como a compreensão do comportamento humano resulta de uma percepção apoiada pela compreensão; trata-se de um dado construído. Pois quem diz sentido diz algo que pode ser compreendido pelo outro, algo que pode ser comunicável. Por isto, a compreensão do sentido implica o acesso ao modo de relação entre o sujeito e seu meio ambiente social. Modo de relação que é a definição mesma da noção de personalidade, isto ao menos segundo o jovem Lacan. Ou seja, a personalidade não é o refúgio de alguma forma de singularidade radical, ela é o solo que me permite compreender a estrutura relacional entre o sujeito e o outro.

Pensando em algo semelhante, Politzer gostava de dizer que um gesto tomado isoladamente não é um fato psicológico, ele só se torna um quando consigo mostrá-lo como um segmento “do drama [histórico] que representa minha vida. A maneira com que ele se insere neste drama é dado ao psicólogo pela narrativa que eu posso fazer sobre tal gesto. Mas é o gesto esclarecido pela narrativa que é o fato psicológico e não o gesto à parte, nem o conteúdo realizado da narrativa”[19]. Representar minha vida não apenas para mim, mas para o outro que trago pressuposto enquanto garantia de compreensibilidade de cada gesto que faço. Saber quem é este outro, esta representação social à qual cada segmento de minha conduta se endereça só é possível à condição da reconstituição do desenvolvimento histórico da personalidade que me fornece um “contexto de significação das ações” que não deixa de estar vinculado a uma história individual.

Eis o que Lacan tem em mente ao insistir nas relações entre psicose paranóica e desenvolvimento da personalidade; isto a ponto de defender que a verdadeira psiquiatria só poderia ser uma “ciência da personalidade”. O que demonstra como, contra o materialismo organicista, Lacan não temia em sugerir algo como um materialismo histórico aplicado às clínicas dos fatos mentais.  


NOTAS

  1. Para uma análise exaustiva da tese de doutorado de Lacan, ver o já clássico Richard Simanke, Metapsicologia lacaniana (São Paulo: Discurso Editorial, 2002) e Bertrand Olgivie, Lacan: a formação do conceito de sujeito (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988)
  2. LACAN,Jacques; Da psicose paranóica em sua relação com a personalidade, pag. 1. Décadas mais tarde, Lacan se afastará de sua postura psicogênica de juventude, como podemos ver nas primeiras páginas do Seminário III. Mas, neste caso, não se tratava de a noção de uma causalidade não redutível a processos fisiológicos. Tratava-se, na verdade, de tomar distância da noção de relação de compreensão, tal como desenvolvida pelo psiquiatra e filósofo Karl Jasper. Noção fundamental para a constituição da perspectiva psicogênica à época.
  3. LACAN, idem, p. 105
  4. LACAN, De la psychose paranoïaque …, p. 45
  5. Idem, p. 56
  6. Como dirá Georges Canguilhem em O normal e o patológico, dez anos mais tarde: “Quando classificamos como patológico um sintoma ou um mecanismo funcional isolados, esquecemos que aquilo que os torna patológicos é sua relação de inserção na totalidade indivisível de um comportamento individual” (p. 65).
  7. SPINOZA, Ética, Livro III, prop. LVII
  8. LACAN, De la psychose paranoïaque …, p. 14
  9. JASPER, Karl; Psicopatologia geral, p. 363
  10. BECHERIE, Paul, Os fundamentos da clínica, p. 265
  11. LACAN, De la psychose paranoïaque …, p. 38
  12. LACAN, De la psychose paranoïaque … . p. 105
  13. O termo “concreto”, tão utilizado por filósofos e psicólogos à época indica simplesmente o campo da experiência sócio-histórica nos quais indivíduos estão inseridos.
  14. POLITZER, idem, p. 2
  15. CANGUILHEM, Etudes d´histoire et de philosophie de la science, p. 370
  16. POLITZER, idem, p. 7
  17. POLITZER, Georges; Critique des fondements de la psychologie; pag. 249.
  18. Ver, RORTY, Richard; Behaviorismo in  A filosofia e o espelho da natureza, pp. 83-89.
  19. Georges Politzer, Critiques des fondements de la psychologie, PUF, 2005, p. 248

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