“O que seria uma cidade que pretende acabar com os territórios marginais? Não seria um delírio?” A. Lancetti
LANCETTI BRASILEIRO¹ é o primeiro episódio da série PSICANALISTAS QUE FALAM.
Em foco, Antonio Lancetti, personagem emblemático da luta antimanicomial no Brasil. Psicanalista nascido na Argentina, exilado político no Brasil desde 1979, Lancetti mergulhou na causa da saúde mental, liderando a intervenção que transformou Santos (SP) na primeira cidade brasileira sem manicômios. Foi consultor do Ministério da Saúde, trabalhando com a problemática das drogas e do crack — um grande desafio para a cidade e para a saúde pública em São Paulo. Sua significativa contribuição inclui também a direção da coleção SaúdeLoucura, hoje com 50 títulos, publicada pela editora Hucitec. É autor de “Clínica Peripatética” e “Contrafissura e plasticidade psíquica”.
[temas abordados e disparadores de diálogos*]
* os parágrafos destacados entre aspas são trechos do episódio LANCETTI BRASILEIRO
A psicanálise fora do setting tradicional: a clínica em movimento
A psicanálise fora do setting tradicional é tema de uma das principais obras de Lancetti — “Clínica peripatética” (ed. Hucitec, 10a edição). Os ensaios que o compõem o livro narram e problematizam experiências ocorridas na fronteira entre a dependência e a morte, entre a loucura e a cidadania, entre o exílio e o comunismo múltiplo e micropolítico ativado em práticas de saúde.
A clínica em movimento aparece como um tema transversal durante todo o episódio. Os trechos a seguir destacam-se como disparadores de diálogos:
[“Psicanalistas que se lançam a trabalhar fora do setting tradicional, na rua, na cracolândia, precisam ter formação, capacidade de escuta, alto grau de plasticidade psíquica para manter o tônus erótico.”]
[“Para trabalhar com psicanálise, é preciso de certo grau de esquizoidia – poder esquecer, estar em vários lugares, abandonar um e entrar em outro.”]
[“Um dos problemas dos terapeutas é o que eu chamo de metáfora da pilha. Pilha normal descarrega – o mesmo o terapeuta: ele não aguenta. Mas existe a pilha autocarregável. Há várias formas de se recarregar… a análise é uma delas. Mas a principal é a própria experiência: o momento de cura é o ato de escutar o outro.”]
[“Um psicanalista que não tem cultura, que não lê literatura, filosofia, é como um lutador vesgo: ele vai apanhar.”]
Psicanálise e territórios marginais
Lancetti trabalhou, entre outras coisas, com a problemática das drogas e do crack – um grande desafio para a cidade e para a saúde pública em São Paulo.
Foi consultor especial do programa DE BRAÇOS ABERTOS, desenvolvido pela Prefeitura de São Paulo e que buscava transformar a cracolândia a partir do acolhimento e de uma política de redução de danos.
O projeto inicou-se em janeiro de 2014, praticando o resgate social dos usuários de crack por meio de trabalho remunerado, alimentação e moradia digna, com orientação de intervenção não violenta.
Em suas diretrizes encontrava-se um novo olhar sobre o dependente químico, que deixou de ser tratado como um caso de polícia e passou a ser encarado como cidadão, com direitos e capacidade de discernimento. O tratamento de saúde é uma consequência das etapas anteriores, e não condição prévia imposta para participar do programa.
Uma pesquisa sobre o projeto publicada em setembro de 2016 mostrou que mais de 70% dos beneficiários do programa diminuíram significativamente o uso de crack e outras drogas, os cuidados com a saúde melhoraram muito e a adesão ao trabalho foi de aproximadamente 75%.
O programa é inspirado em políticas públicas de ponta nos Estados Unidos e Canadá, mas tornou-se alvo de constantes ataques e polêmicas – e interrompido pela nova gestão da Prefeitura, que iniciou em 2017.
Para Lancetti, o fim do programa seria um equívoco, e responde ao alarmismo social criado em torno do problema.
[“Existe essa campanha excessiva da mídia em cima do crack, da epidemia do crack. É o fenômeno de contrafissura, que afeta toda a sociedade.”]
CONTRAFISSURA, no vocabulário de Lancetti, é o sintoma social contemporâneo – presente na mídia, na política, na clínica, na subjetividade – representado pela tentação de se cair no erro da guerra aos usuários de drogas pelo alarmismo infundido na população e ações violentas e repressivas justificadas pelo discurso da criminalização.
[“Podemos oferecer em vez de eliminar ou esconder: oferecer uma rede. É o que nós da saúde podemos fazer. (…) De Braços Abertos é uma experiência complexa e controvertida, que vai na contramão de outros programas do Estado baseados na ideia de eliminação, abstinência, ideias convencionais e reducionistas. É reducionista achar que o problema do crack é apenas a droga.”]
[“Uma pesquisa da Fiocruz mostra que 80% das pessoas em zonas de uso são homens, negros ou pardos, 80% que não completaram estudos primários, e 50% são egressos do sistema penitenciário.”]
[“Senso comum é que o drogado é um cara safado que, se beber ou usar outra droga, não será atendido. O perdão é mais poderoso que a culpabilização.”]
Luta antimanicomial
Lancetti é um personagem fundamental da luta antimanicomial no Brasil. Militante histórico da Reforma Psiquiátrica Brasileira, trabalhou ao lado de David Capistrano em Santos, cidade pioneira nessa questão e que disparou a reforma psiquiátrica em outros lugares do Brasil.
Durante cerca de 30 anos, Santos abrigou a Casa de Saúde Anchieta, um hospital psiquiátrico particular situado em um complexo de 5 mil metros quadrados. Os proprietários eram pagos pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para manter mais de 500 pacientes em dependências capazes de abrigar, no máximo, 250 pessoas. O local era alvo de denúncias de maus-tratos contra os internos.
Em maio de 1989, a prefeitura interveio no local em ação liderada principalmente por Lancetti, Tykanori, Cenise Monte Vicente e Williams Valentini – durante a gestão de David Capistrano como secretário de Saúde de Santos.
Os funcionários foram proibidos de trancar ou agredir os pacientes, além de não poderem mais recorrer a qualquer forma de violência. A força seria medida apenas de contenção – e não como justificativa de tratamento. O Anchieta foi fechado anos depois, em episódio conhecido como o “fim da Casa dos Horrores”.
Lancetti era amigo pessoal de David Capistrano e companheiro de militância e trabalho. Capistrano foi secretário de Saúde de Santos de 1989 a 1992, e prefeito da cidade entre 1993 e 1996. Desenvolveu e implementou políticas públicas precursoras e inovadoras na área de saúde que acabaram por se tornar referência em todo o mundo – colaborando inclusive com o texto que deu origem ao capítulo sobre o SUS na Constituição de 1988. Também ganhou diversos prêmios internacionais.
[“Aprendi muito com ele. ‘Primeiro a vida, depois a lei; faça, depois pense’. É o que chamo de ‘Paixão Capistrano’. Sou considerado uma das viúvas do David. Com muito orgulho, mas temos que superar.”]
Sobre a situação dessa luta, Lancetti provoca:
[“A reforma psiquiátrica no Brasil é triunfante, mas vem sofrendo derrotas. Foram desativados 60 mil leitos, mas outros tantos foram criados pelas clínicas.”]
[“O que seria de uma cidade que pretende acabar com os territórios marginais? Não seria um delírio? Todo o movimento antimanicomial se organizou em torno da utopia de uma sociedade sem manicômios, e hoje é surpreendido pela utopia de uma cidade sem drogas. Alguém já pensou o que seria uma sociedade sem drogas? Seres humanos que não pudessem sair de si? Que teriam que permanecer na normatização chata, quadrada da vida contemporânea desse capitalismo idiotizante que a gente vive?”]
Psicanálise e empatia
[“Deveríamos organizar um colóquio sobre o ódio social produzido no Brasil, sobre esse ressentimento, esse senso comum sobre corrupção.”]
[“Nossa existência é tão achatada. Temos tantas ameaças à nossa subjetividade que urge se encontrar com as próprias potências.”]
[“Vou citar um pedaço do texto que estamos escrevendo a quatro mãos, eu e esse rapaz, o Gabriel, que eu conheci ali no fluxo, na cracolândia. Chama-se ‘Gabriel e o mundo do submundo’: ‘(..) O negócio é o seguinte: você nunca vai ser dono do que é seu, por isso você vai ter tudo o que você precisa, e nada do que você deseja. Porque quem não sabe o que faz, não sabe o que quer’.”]
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NOTA
1. O texto apresentado está disponível no site da produtora TATURANA, descrito como material complementar. Nesta publicação foi alterado para a data presente, pois quando publicado originalmente, Antonio Lancetti encontrava-se entre nós – ainda vive, de certa forma.
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BIBLIOGRAFIA
LANCETTI, Antonio. Contrafissura e Plasticidade Psíquica. São Paulo, Hucitec, 2015.
___________________ . Clínica peripatética. São Paulo, Hucitec, 2006.
___________________ (org.) . Coleção Saúdeloucura. São Paulo, Hucitec.
___________________ . “Fim do programa De Braços Abertos seria um grande equívoco”. Revista Brasileiros, 27 de setembro de 2016. Disponível em: https://brasileiros.com.br/2016/09/fim-programa-de-bracos-abertos-seria-grande-equivoco/
FIORE, Maurício; RUI, Taniele; TÓFOLI, Luis Fernando. “Programa De Braços Abertos: uma análise dos impactos e perspectivas”. Cebrap, Open Society e outras: https://www.ibccrim.org.br/tvibccrim_video/504-Programa-De-Bracos-Abertos-uma-analise-dos-impactos-e-perspectivas.
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FONTE(S)
TATURANA – MOBILIZAÇÃO SOCIAL.
PSICANALISTAS QUE FALAM – CANAL YOUTUBE