O psicanalista Jacques Lacan e o filósofo Gilles Deleuze possuem uma história, porém o que se passou entre eles não sabemos além das breves passagens biográficas que encontramos em alguns livros. E como não é muito comum encontrar comentários de Lacan acerca de Deleuze, destacaremos aqui alguns de seus posicionamentos no Seminário 16 “De um Outro ao outro” (1969).
Neste seminário Lacan ao falar acerca das contribuições de Deleuze no que concerne ao gozo masoquista e de suas críticas à “vibrante imbecilidade que impera na psicanálise”, ele o nomeia como “nosso amigo”. E de fato houve uma amizade, uma amizade não como semelhante, mas como diferença, deslocando o pensamento, inventando conceitos. Como bem salientou Nietzsche em ‘Assim falou Zaratustra’, o amigo é um terceiro entre eu e mim e que me incita à transformação.
Lacan menciona os livros ‘Diferença e Repetição’ e ‘Lógica do Sentido’ de Deleuze, quanto ao primeiro, afirma: “vocês podem ver que ele deve ter alguma relação com meu discurso, coisa de que o autor é certamente o primeiro a saber”; e em relação ao segundo diz ter tido “a grata surpresa de ver aparecer” em sua escrivaninha, e que “isso foi uma verdadeira surpresa, aliás, porque ele não me havia anunciado nada disso na última vez em que eu o vira, após a defesa de suas duas teses”.
O título de seu seminário é “De um Outro ao outro”, e de acordo com Lacan, “(…) O Outro é justamente isso, é um terreno do qual se limpou o gozo. É no nível do Outro que aqueles que se derem” ao trabalho de ler Deleuze “poderão situar o que é articulado” em seu livro, “com um rigor e uma correção admiráveis, como distinto de e consoante com tudo o que o pensamento moderno dos lógicos permite definir do que se chama os acontecimentos, a encenação, e todo o carrossel ligado à existência da linguagem. E aí, é no Outro que está o inconsciente estruturado como uma linguagem.”
Lacan acerca de Deleuze diz aos seus ouvintes:
“Não seria vão alguém, um de vocês, por exemplo, se apossar de uma parte desse livro. Não digo do livro inteiro, porque ele é muito grande, mas, afinal, foi feito como se deve fazer um livro, ou seja, cada um de seus capítulos implica o conjunto, de modo que se tem o todo ao pegar uma parte bem escolhida.
Não seria nada mau perceber que ele, em sua felicidade, soube ganhar tempo para reunir num único texto não apenas o que está no cerne do que meu discurso enunciou – e não há dúvida de que esse discurso está no âmago de seus livros, já que ele o confessou como tal e que “O seminário sobre A carta roubada” constitui seu passo inicial, definiu seu limiar -, mas também todas as coisas que auxiliaram meu discurso, que o alimentaram, que numa ou noutra ocasião lhe forneceram sua aparelhagem, como a lógica dos estóicos, por exemplo.
Com a suprema elegância da qual têm o segredo, Deleuze pôde mostrar o lugar de sustentação essencial que ela ocupa, tirando proveito dos trabalhos de todos os que esclareceram esse aspecto da doutrina estóica, que é difícil porque só nos foi legada por trechos dispersos de depoimentos estrangeiros, com os quais somos obrigados a reconstituir, como que com luzes rasantes, qual foi efetivamente a sua relevância – relevância de um pensamento que era não apenas uma filosofia, mas uma prática, uma ética, uma forma de se manter na ordem das coisas.”
“(…) Quando vocês lerem Deleuze — talvez alguns se deem esse trabalho, vão se acostumar com coisas com que o convívio semanal com meus discursos aparentemente não bastou para familiarizá-los, caso contrário eu teria mais produções desse estilo para ler (…)”.
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