INTRODUÇÃO
Este trabalho é a transcrição da palestra apresentada por ocasião do VIII Seminário Conexões: Deleuze e corpo e cena e máquina e… que teve lugar em 2019, na UNICAMP. Primeiro gostaria de expressar uma vez mais a minha gratidão, em meio à distância, às pessoas presentes na palestra e, em particular, aos organizadores desse maravilhoso evento. Gostaria, também, de saudar, celebrar e agradecer a todos os amigos com quem partilhamos uma oportunidade tão maravilhosa de tornar o nosso trabalho coletivo e com quem partilhamos um certo compromisso militante. Eu, sempre tão inspirada, sem dúvida, pelos textos desse “agenciamento Deleuze/Guattari” – permitam-me o uso apressado do jargão¹. Um certo tom militante que traz como bandeira a ideia de pensamento como acontecimento. Que persegue, sem dúvida, o objetivo de fazer do pensamento uma performance de emancipação. Há muito tempo que sentimos que é perturbador, aqui, nos nossos contextos de pesquisa na América Latina, exercer uma profissão que financia a produção do “discurso” à maneira da filosofia ocidental. Um campo que legitima e legaliza um certo exercício profissional de cruzamentos teóricos entre autores – majoritariamente masculinos, muito poucas autoras -, que nos chegam por uma lógica burguesa de editorialização de textos² e que faz com que aqui tenhamos de nos encontrar com essas teorias e não com outras. Esta situação já não nos parece menor. Hoje interrogamo-nos, com crescente responsabilidade, até que ponto estamos conscientes das formas, por vezes sutis, por vezes grosseiras, em que funciona a axiomática colonial.
Neste caso, se trataria desses autores franceses que inicialmente nos convocam. Mas acontece, e sobretudo em relação a Deleuze e Guattari, que temos ignorado um certo tom de autoadvertência das marcas do cinismo do humanismo ilustrado nos próprios textos – embora no início pareça tímido -, o que é, de certa maneira, um indicador diferencial. Um tom que eles ativam no momento da alusão ao que por ora se apresenta apenas como uma marca, a marca colonialista do pensamento filosófico que circula em maior volume e frequência nos circuitos teóricos centrais. E perante o qual é urgente parar e questionar as suas ultimas consequências. Não há muito a dizer sobre isto, pois parece que ficamos sem uma língua para podermos fazer face a esta necessidade. Muito menos para advertir que não se trata apenas de uma impressão e marca.
É, portanto, uma tarefa a resolver, abordar esse tom autorrequerente que percorre todo o pensamento de cada um deles. Por exemplo, e em relação a Deleuze em particular, a tarefa poderia ser traçar uma linha – não necessariamente diacrônica – a partir das abordagens da lógica do fundamento e da fundação (nas aulas sobre Leibniz dos anos oitenta), em que aparece a suspeita sobre a absolutização do logocentrismo, e a luta para sair desta visão “autocentrada” (MIGNOLO, 2010, p. 18) que atravessou a crítica do ego conquistador, em O Anti-Édipo (1972-1973), no qual Deleuze e Guattari articulam o ego cartesiano ao ego da psicanálise, a fim de denunciar as operações de um Ocidente conquistador. Depois, devemos mencionar a genealogia da democracia imperial, que tanto se realiza em Mil Platôs (1980) como em O que é a Filosofia? (1993), motivada pela suspeita de que apenas “aqueles que Kant excluiu dos caminhos da nova Crítica (…) deveriam assumir a responsabilidade de criar o futuro das ‘nossas democracias'” (DELEUZE; GUATTARI, 1993, p. 11). É igualmente necessário mencionar a riqueza dos tratamentos dos problemas conjunturais em todos os artigos, compilados por Lapoujade, nos quais se pode ver claramente o interesse de Deleuze pelos problemas da Palestina e da Argélia, entre os mais relevantes para este trabalho. Um capítulo separado seria digno do tratamento dado ao cinema latino-americano. Os parágrafos eloquentes de A Imagem-Tempo (1985), dedicados ao cinema do “Terceiro Mundo”, tal como aí aparece, confrontam-nos uma vez mais com um Deleuze que, por vezes, aponta toda a sua artilharia de suspeição para a Europa e as suas tendências e concentra todas as suas intenções na tarefa de sacudir as potências egocêntricas que insistem nos atuais projetos colonialistas. Aí, alude ao cinema latino-americano como o único capaz de extrair a potência criativa da “ferida colonial”, para usar outro termo de Mignolo (2010, p. 45), mesmo em filmes com pretensões antieuropeias feitos por realizadores europeus (DELEUZE, 1987, p. 288).
No caso de Guattari, não é necessário distinguir entre erva daninha textual e algum surto libertário. Toda a sua obra tece um solo fértil para a ação militante a favor das lutas de libertação anticolonial. Famosos são os seus altos e baixos com o Partido Comunista Francês, do qual se afasta quando este se exprime a favor da guerra contra a Argélia (DOSSE, 2007, p. 47); também a sua proximidade com o Brasil, o seu encontro com Lula (DOSSE, 2007, p. 575). E, claro, esta aliança, bendita aliança com Deleuze, que reconhecerá, com veemência, que graças a Guattari ele conseguiu fazer a viragem para a política. Talvez, depois de passarmos por estas linhas, possamos presumir que essa, para além de ter sido a sua viragem para o político, foi a sua viragem anticolonial.
O ANTI-ÉDIPO EM QUESTÃO
Há muito a esclarecer e a desarquivar, desta vez certamente de outra abordagem. Estamos interessados, por agora e especialmente, em insistir na abordagem de O Anti-Édipo. Porque é ali que, em nossa opinião, está selado um certo empenho e compromisso com a escrita anticolonial; porque é ali que uma certa fúria é lançada contra a Europa, e que nas leituras mais em voga dessa obra monumental, não é considerada. Uma certa fúria cujo contexto já não é o pós-guerra, nem as guerras de libertação, mas a persistência indizível e mesmo a intensificação do necroísmo – e já não o tanatismo, pois o tanatismo é relativo à morte tranquila, enquanto o necroísmo indicaria uma certa restrição do político à provocação de uma morte sinistra – o necroísmo diz daquilo que chamarei – emulando Guattari – o Colonialismo Mundial Integrado. E porque é ali que se dá o encontro com Fanon, que é precisamente um dos emblemas centrais do movimento teórico e militante anticolonial, e cujo trabalho e participação ativa no movimento de libertação argelino dos anos 50 são perturbadoramente bem conhecidos, embora permanentemente colocados em segundo plano pelos intelligentsia franceses de meados do século XX. A exceção, porém, seria nada mais nada menos que Sartre, cujo empenho e compromisso nos movimentos independentistas é bem conhecido, e que escreveu o famoso prólogo Os condenados da Terra (1961). No entanto, e precisamente por isso, insisto na surpresa causada pela distância notória com que os intelectuais da época assumem as questões relativas.
Já estivemos interessados nessas cruzes antes. Nos artigos liminares, propusemos colocar em tensão o alcance das noções de “desterritorialização” do pensamento de Deleuze e Guattari e de “desprendimento descolonial”, de Aníbal Quijano³. Tínhamos proposto examinar as implicações epistemológicas paradoxais de ambos. O que fizemos nessa ocasião foi analisar alguns efeitos que surgem de ambas as categorias e que acabam por não ser notados de outra forma que não seja através da tensão entre elas. Concentramo-nos na objeção da contradição pragmática, que efetuaria o pensamento descolonial em relação às teorias da “deseuropeização”, quando essas teorizam o sujeito como um nômade ou devir-sujeito. Como Julie Wuthnow (2002), que denuncia as consequências desfavoráveis que a descorporização e a nomadização do sujeito implicam em relação às lutas concretas indigenistas. Na direção oposta, colocamos o foco na objeção da micropolítica do desejo ao pensamento pós-colonial, de não avaliar em todo o seu alcance a diferença entre história e devir, nem a concepção de agenciamento de Deleuze e Guattari (1975), que está longe de se referir a uma instância contratual operativa da axiomática colonial.
Num outro trabalho, abordamos o cruzamento conceitual e político dos escritos de Frantz Fanon, Gilles Deleuze e Felix Guattari4 (já estávamos começando a vislumbrar a possibilidade de um certo efeito F/D/G). Abordamos este cruzamento conceptual na altura em que todos eles trabalhavam numa crítica da representação enquanto categoria filosófica e política. O que fizemos nessa ocasião foi articulá-los dentro do movimento crítico da modernidade, mas também da colonialidade, como tínhamos feito no artigo anterior. Esta última categoria permitiu-nos ligar textos, conceitos e escritos para compreender a dimensão organizacional dos corpos na diferença colonial e na racialização. Nessa encruzilhada, e parafraseando o artigo aludido, poderíamos pensar que a escrita de Deleuze e Guattari é solidária com os escritos anticoloniais na medida em que ambos mostram um limite não negociável na crítica fenomenológica da consciência. Vimos que Fanon (2009), por seu lado, considera que a consciência representacional não existe nos corpos racializados; que, na descrição de Merleau-Ponty (1993) do que acontece entre a natureza e o corpo (embora ele se proponha superar em chave da experiência fenomenológica as limitações das explicações empiristas e intelectualistas, por exemplo, através da categoria de arco intencional) acontece que o corpo continua a estar ali perfeitamente organizado e dotado para a constituição. Ou, em outras palavras, que esta abordagem merleaupontiana parte do pressuposto de que a situacionalidade de um organismo adequadamente discriminado provoca uma resposta prática. Ou seja, não deixa espaço para um segundo deslocamento; por exemplo, o deslocamento fanoniano que informa sobre a impossibilidade de qualquer ligação naturalizada quando se trata de corpos em situação colonial.
Descobrimos que embora esse olhar fenomenológico vise superar os dualismos, o ato de hipóstase de uma consciência intencional, mesmo tendo em conta o momento de confusão com o mundo e o desafio do organismo na tentativa de alcançar o equilíbrio, implica uma dialética naturalizada que não deixa margem para questionar as vias de gestão e regulação dos corpos. E notamos que, na mesma linha, quando Deleuze e Guattari insistem em refutar a associação clássica da filosofia transcendental entre os esquemas conceptuais e a experiência possível, essa crítica se estendeu à perspectiva fenomenológica que aponta, como sustenta Zourabichvili (2011), para a experiência ordinária, para a experiência de qualquer um e de um “todos” que não é questionada. Ligados ao discurso fanoniano, ambos os autores nos mostraram, através das suas variadas conexões escriturais, na sua leitura de Artaud, Kafka, Beckett, entre outros, que a experiência vivida do corpo sem órgãos tem a ver com uma questão de direito; de um direito de maneira alguma já inscrito em alguma instância natural que tem de ser revelado e separado do fato, mas com o direito a uma redistribuição de pontos sensíveis, que nós, aqui, estimamos como uma mobilização radical das forças que compõem as vidas. Pretendendo atingir a dimensão material, essa condição anticolonial mostra que não é um mundo fenomênico com o qual o corpo se debate, nem a sua ausência. Nelas, o corpo é debatido numa zona de indeterminação que podemos bem comparar com a zona de não ser, relatada por Fanon, na qual emerge a inexorável necessidade de criar um corpo, de dinamizar forças inusitadas que ultrapassam a configuração subjetiva de um “eu” em busca de equilíbrio.
Depois desse trabalho, paramos no problema do desejo na escrita fanoniana e nas suas projeções no espaço da filosofia de Deleuze e Guattari5. Nessa ocasião, defendemos que a figura do desejo nos escritos fanonianos estava a se transformar gradualmente de uma ideia de desejo como falta em desejo como positividade, que se adaptava às condições pós-coloniais da imaginação política e coincidia, desde outros pontos de vista analíticos, com as formas como Deleuze-Guattari pensavam o problema do plano de imanência. Vimos que nesta passagem ocorreram dois processos cruciais: o primeiro foi a crítica da lógica compensatória das categorias face ao colonialismo, por exemplo, a função compensatória da categoria de Édipo – entre outras; e o segundo, a crítica da representação. No final, sugerimos que, com tudo isso, ambos os escritos foram precisos, conseguindo conjugar esses processos a partir da produção de espaços não regulados pela relação modernidade-colonialidade.
Os últimos ensaios destinavam-se a colocar uma questão incômoda e insistente. Macri, Bolsonaro, Piñera, Lenin Moreno, Martin Vizcarra, todos esses nomes têm pairado constantemente, este ano, como antimotivos para o pensamento. Constantemente atacados por uma sensação de raiva e impotência, a questão da servidão voluntária irrompeu nos nossos contextos de pesquisa, mas agora deslocada. Algo da ordem do masoquismo foi o que emergiu como uma paleta categorial à mão. Analisamos aquilo que chamamos a zona masoquista, que, assumimos, constituía, em termos da teoria da subjetividade, a tática colonial por excelência.
Em suma, pudemos verificar que a lógica predominante nessa zona masoca, como lhe chamamos, funcionava diferencialmente, como se segue. Com o halo fanoniano, conseguimos redesenhar aquele cenário em que o colonizador deseja ser masoquista para sustentar a soberania da zona masoca, onde vive, produz e consome; onde o colonizado é masoquista a partir de seu desejo de ser branco, para invadir a zona, numa tentativa de ser/estar, sempre adiado num tempo impossível, num spatium de tempo impossível. Onde o colonizado é masoquista porque não pertence. Assim, descrever como funciona o masoquismo em cada uma das abordagens exigiu- nos não a edificação de uma ponte, mas desarticular genealogicamente operações de adiamento que sustentam a soberania de dita área e cujas estratégias é preciso, clínica e teoricamente, desbloquear.
OUTRAS LEITURAS
Foi apenas nesse ponto que pareceu apropriado partilhar um certo estado de coisas sobre a articulação de Fanon no pensamento de Deleuze e Guattari. Tal como já observamos noutra ocasião, devemos reconhecer que já muitos ensaístas sublinham que é a contribuição de Fanon que justifica a urgência de uma leitura pós- colonial de Deleuze e Guattari. Mas temos também de reconhecer que não existe entre eles latino-americanos. Um detalhe que contribui para reforçar os condimentos para a – iminente – necessidade de rever as metodologias padronizadas no nosso meio acadêmico. Na maioria dos ensaios, se não em todos, o que é ponderado é principalmente a influência fanoniana no tratamento das categorias psico. A questão é detectar até que ponto as diferentes leituras conseguem alcançar esse efeito modulado ou persistem em interpretações de estilo hermenêutico ou autorreferencial. É o caso de algumas leituras que se centram em resguardar o pensamento deleuziano/guattarino das críticas pós- coloniais, que o consideram na linha dos textos europeus modernos (por exemplo, os ensaios compilados por Bignall, Simone e Patton Paul, 20106). Outros consideram que, embora admitam concordar em revelar a operação de codificação da subjetividade pelo triângulo edipiano, salientam, no entanto, duas maneiras diferentes em que um e outros levam adiante dita ação de revelar. Para Musser (2012), por exemplo, os fluxos afetivos que se abrem por interpelação têm as suas raízes, no caso de Fanon, no social e histórico, não na sensação, como acontece em Deleuze e Guattari. Finalmente, com Young (2003), Herzog (2016) e Sibertin-Blanc e Lombana Reyes (2015), proponho a condição pós-colonial do texto de Deleuze/Guattari, considerando-o alinhado com Fanon, na medida em que em ambos os casos se opera – em certos sentidos que tenho vindo a explicitar – uma articulação entre as esferas do psico, social e político que performa uma crítica ao esquema de representação branca, patriarcal e racista.
Comecemos por Amber Jamilla Musser (2012), que tem trabalhado o cruzamento Fanon e Deleuze/Guattari em relação ao desejo em chave da dinâmica de Édipo. Como antecipamos, ela pretende distinguir criticamente as duas maneiras pelas quais um e outros revelam a operação de codificação da subjetividade pelo triângulo edipiano. Para Musser (2012), ao contrário de Deleuze e Guattari – para quem a intrincada fuga dos fluxos afetivos no que diz respeito à captura social e histórica é realizada em relação à sensação – no caso de Fanon são os mesmos acontecimentos sociais e históricos que levam a experiência ao limite da representação. Refutamos essa leitura, pois consideramos que todo o tratamento do desejo por parte de Deleuze e Guattari como “fluxo imanente” é uma forma de superar o alcance subjetivo da sensação e de dar à sensação um estatuto trans-subjetivo. De fato, se interpretarmos o desejo imanente como um fluxo de sensação individual, não podemos sustentar a leitura de Deleuze e Guattari de que eles desbloqueiam a codificação da subjetividade pelo triângulo edipiano, quanto mais localizar um operador colonial no desejo masoquista.
Robert Young (2003), por seu lado, percebe uma série de analogias entre Fanon e Deleuze e Guattari, relativas às relações entre as dimensões da psique individual e a social. Young argumenta que, quando Deleuze e Guattari ligam a dimensão geográfica à psíquica através do que eles chamam de “o imperialismo analítico do complexo de Édipo” (YOUNG, 2003, p. 163), já não há qualquer possibilidade de entender esse fator como uma forma aberrante da civilização europeia, mas como um processo de recodificação do “fluxo do desejo” em várias ordens, uma territorialização interior e ideológica da psique, uma colonização “perseguida por outros meios” (YOUNG, 2003, p. 162). Na mesma linha de argumentação, não se trata, então, de uma estrutura normal, mas de uma codificação do fluxo do desejo que se inscreve em reterritorializações artificiais de uma estrutura social repressiva. Assim, graças às leituras de Fanon, o que o espaço colonial revela é que Édipo não é universal, que não há como entendê-lo fora da axiomática capitalista, isto é, fora das parcelas da sociedade colonial.
Dagmar Herzog (2016), por sua vez, sustentando a tese sobre O Anti-Édipo como texto psicanalítico e não apenas influenciado pela psicanálise, relaciona-o com as teorizações inscritas no contexto que ela designa como “pós-Nazismo”, que procuram compreender e articular como as condições econômicas e políticas configuram as subjetividades – e vice-versa (HERZOG, 2016, p. 14). Partindo da atribuição a Deleuze e Guattari da necessidade de elaborar um quadro teórico capaz de assumir a questão da servidão voluntária, Herzog (2016) adverte que, em O Anti-Édipo, a crítica de Reich é ultrapassada, pois, segundo os autores, o psiquiatra marxista alemão que pretende explicar Hitler, persiste em identificar as componentes irracionais com o desejo individual (HERZOG, 2016, p. 36). O autor sublinha que o desafio é encontrar, questionando com Klein e Lacan, a estabilidade, o limite e a coerência do indivíduo, as formas efetivas de expressar não só a multiplicidade interna, a fragmentação, a dispersão das psiques individuais (nos termos de Guattari: “somos todos grupelhos” [nous sommes tous des groupuscules]) mas também as suas muitas interligações com o mundo social mais vasto (HERZOG, 2016, p. 22)7. Assinala, ainda, que é se afirmando em Fanon que Deleuze e Guattari sustentam que os fenômenos de interconexão e intersecção entre o intra e extrapsíquico são omnipresentes, e não apenas os resultados de situações limite.
Por outro lado, Guillaume Sibertin-Blanc (2018) articula a contra psiquiatria realizada por Fanon a partir dos colonizados com a contra metapsicologia elaborada a partir do esquizo trabalhada por Deleuze e Guattari. Considera ressonante entre Fanon e Deleuze e Guattari a tese sugestiva de que a impossibilidade de deslocar o gozo para o sintoma leva à impossibilidade de distinguir o clínico do político. Ao colocar o ponto de inflexão no limite experiencial do colonizado, Sibertin-Blanc (2018) destaca a eficácia deste para o desdobramento da subjetivação da resistência à opressão, que terá como consequência inevitável a reabertura de uma produtividade do sintoma psicótico. Tudo acontece, escreve, “como se os mecanismos de defesa, no processo patológico que os agrava, testemunhassem simultaneamente a reconstrução de uma capacidade política, ou de uma potencialidade “metapolítica” de adversidade, nas estruturas do sujeito sofredor” (SIBERTIN- BLANC, 2018, s/p). O autor insiste no problema do limite de “resistência”, fundamentalmente no momento em que esta exibe a necessidade de decidir sobre ela. E é ali, onde Fanon e Deleuze e Guattari coincidem, seguindo esse argumento, que não se trata de idealizar os tormentos do corpo e do espírito na resistência política, mas de transitar os limites paradoxais onde “a clínica diferencial de uma politização da subjetividade e de um impolitizável do sintoma é absolutamente decisiva, mas irredutivelmente incerta, e ambas ao mesmo tempo” (SIBERTIN-BLANC, 2018, s/p). Neste contexto, podemos interpretar o desejo masoquista como a tendência reacionária para persistir às portas de tais limites.
EM QUE CONSISTE LER FANONIANAMENTE O ANTI- ÉDIPO?
O que seria, então, uma leitura fanoniana de O Anti-Édipo? Pensamos realmente que D/G estão apenas “citando” Fanon? Será que Fanon viria apenas acrescentar a um certo sentimento de reprodução de solilóquios academicistas?
Parece-nos que não se trata de um nem do outro. Somos atraídos, sim, a resgatar para os nossos contextos de pesquisa certos efeitos que permitem construir uma linguagem categorial eficaz para a situação que descrevemos no início. Precisamos de uma linguagem capaz de teorizar os signos de alerta e advertência das marcas de colonialismo nas nossas práticas acadêmicas.
No final, a sensação que permanece é a de que, se em Fanon a batalha contra o colonialismo e a racialização está na dimensão performativa da escrita que trata e lida com a zona de não ser, em D/G é neste tom de autoadvertência a que aludimos no início, num compromisso que palpita na forma de surtos de “deseuropeização” como podemos chamar a priori, como advertência de uma certa trama configurada com categorias-bumerangue, que por não atingirem o alvo, se voltam contra os próprios interesses epistemológicos.
Nós consideramos o inconsciente como uma delas. Atualmente, estamos investigando como ambas as escrituras modulam uma determinada reivindicação, não de um conteúdo representativo adequado, mas de um direito ao inconsciente. Nós nos concentramos em dois eixos complementares para explicar esse direito. O primeiro considera que Fanon é aquele a quem Deleuze e Guattari apelam para a rearticulação entre o psico e o político, já que o pensamento de Fanon mostra os limites de uma clínica endogâmica que bifurca e racializa o inconsciente. O segundo eixo é que este “efeito Fanon”, que abre caminho a uma reescrita de Édipo como Édipo colonial, também abre caminho à
reconfiguração dos limites do político e do social. Ou, em outras palavras, fertiliza uma teoria em torno do contrato social como crítica/clínica da condição colonial da axiomática capitalista e, em termos do plano narcisista, como uma crítica/clínica do que denominei de “condição masoca”. Enquanto esse duplo padrão, com o qual a reescrita do inconsciente é feita no texto fanoniano, é performativamente assumido como uma ruptura com as construções-telas que gerenciam o narcisismo racista, em Deleuze e Guattari há uma mudança das teorias do inconsciente neurótico para o esquizo, ou da função compensatória do inconsciente para a de produtora, que funciona efetuando os cortes “extrafamiliares”, “subfamiliares” e dessedimentando as identificações sociais bifurcadas. Ambos os textos se cruzam, neste sentido, no momento de repensar a famosa questão, que me propus localizar naquela zona masoca a que me referi anteriormente, sobre o porquê do desejo das massas pela sua própria dominação. Questão que hoje está tomando força e que, a partir de uma abordagem pós-colonial, só pode ser formulada em termos de por que permitimos o ressurgimento conjuntural dos governos com base na bifurcação psico-sócio-política. Especificamente, não seria uma espécie de militância teórica para o direito de derrubar o eu cartesiano ou o Sujeito (com um “S” maiúsculo), que seria o objetivo da psicanálise mais em mãos. Neste caso, seria uma expansão desejante, que, se não gera coletivos políticos estratificados, contribui intensamente para o contágio, como dizem Deleuze e Guattari, que, por não ter a ver com representação, o que eles contribuem para as conjunturas emancipatórias é precisamente matéria desejante.
Neste sentido, uma leitura fanoniana de O Anti-Édipo é uma leitura que é feita a partir de uma área habitada por questões finais: que categorias podem ser resgatadas das ruínas do anti- humanismo colonialista, que armas podem ser tiradas?
É uma que antecipa o fim do dito anti-humanismo, mas a partir das trincheiras do direito que se encontram no meio do contrato epistemológico colonial que se apropria de todas as categorias, considerando-as como variáveis psico-socio-políticas de ajuste.
Uma leitura fanoniana seria uma leitura para a qual precisaríamosconceder infalivelmente uma constância de contágio, uma certa sensação de estarmos coabitando uma “zona de intensidade” – mais uma vez atentos ao entupimento com o jargão -, uma zona, digo eu, povoada por essas “categorias-bumerangue”, que, se capturadas no discurso academicista produzido pelo próprio colonialismo, e para mostrar o risco de que o seu uso resulte numa mera aplicação insípida, inútil e até prejudicial, muitas vezes poderia ser conveniente modulá-la entre essas três escritas. E ensaiar e experimentar com o que propomos como o “efeito Fanon/Deleuze/Guattari”, o que nos permite criar toda uma linguagem adequada para lidar com estas projeções. E depois maquinar tensões, deslocamentos, intensificações, e todas as combinações possíveis. (No tom do boom dos efeitos…).
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NOTAS
- Responsabilizo-me pela ordem em que são nomeados, uma vez que me aproximo pessoalmente de Deleuze primeiro e depois de Guattari, percebendo o risco que corro de ser associada a uma certa inércia epistemológica que o priorizou em relação a Guattari.
- Gostaria de acrescentar algumas considerações, a fim de facilitar a sua leitura. Pela expressão “lógica burguesa de editorialização de textos”, refiro-me à absorção da distribuição editorial pelas políticas mercantilistas. Sublinho este fator, dado que essas políticas afetam duplamente os contextos latino-americanos de recepção: ao fazer depender a circulação dos textos das leis do mercado – que, na maioria dos casos, não correspondem ao valor emancipatório de alguns textos -; e, além disso, pelo fato dos movimentos comerciais dos países latino-americanos serem submissos aos centros de decisão financeira.
- Cf. PÓSTLEMAN, C., 2013.
- Cf. OTO, A. de.; PÓSTLEMAN, C., 2016.
- Cf. OTO, A. de; PÓSTLEMAN, C. 2018.
- No momento em que escrevo esses ensaios, verifico que concordo com Alexander Weheliye, que também considera este tom defensivo em alguns artigos compilados por Bignall e Patton. Cf. WEHELIYE, 2014.
- Tradução do inglês pela autora.
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FONTE
Texto escrito por Cristina Póstleman (Universidade Nacional de San Juan – UNSJ, Argentina), publicado em Conexões: Deleuze e Corpo e Cena e Máquina e…… São Carlos: Pedro & João Editores, 2021, 209p.
Esse texto foi traduzido por Sebastian Wiedemann, doutorando em educação pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP.