Monique David-Ménard: DELEUZE ou FREUD/LACAN? – por Bento Prado Júnior

Resumo: Este texto foi escrito tendo em vista a apresentação de Repetir e inventar segundo Deleuze e segundo Freud, de Monique David-Ménard, à ocasião do I Encontro Nacional de Pesquisadores de Filosofia e Psicanálise

Gostaria de dizer, inicialmente, como fiquei feliz ao saber que a tarefa de comentar a conferência de Monique David-Ménard me fora atribuída. É verdade que minha descoberta da obra de Monique foi tardia, através da bela tradução brasileira de seu livro La folie dans la raison pure (cujo título, que parece contrariar o senso comum, recebeu em nossa língua um suplemento de sentido na rima interna A loucura na razão pura). Mas rapidamente pude encontrá-la e discutir um pouco questões que são as nossas hoje. Tal felicidade estava um pouco comprometida por uma certa inquietação. Como eu, que não sou analista e nunca fui analisando, em minha condição de simples filósofo ou neurótico (ou ainda melancólico, como sugere a antiga tradição filosófica retomada por Kant em seu pequeno livro Die Kopfkrankenheiten), como eu poderia estar à altura exigida pelo comentário dos escritos de alguém que é, ao mesmo tempo, filósofo e psicanalista, e que é capaz de circular pelos dois domínios sem prejuízo? Mas a leitura antecipada de Repetir e inventar segundo Deleuze e segundo Freud me tranquilizou. Pois, com ele, estamos do lado da filosofia, mesmo que a clínica aí também se encontre. Além do mais, recebi esta semana o último número da revista Rue Descartes onde encontrei uma outra conferência de Monique David-Ménard (1) que escutara em Paris no ano passado e cujo sentido eu não havia apreendido completamente. Ao relê-la, as coisas se esclareceram e me ajudaram a compreender melhor a conferência de hoje, pois estes dois textos se entrecruzam e se iluminam.

Meu comentário das duas conferências será necessariamente breve, tendo em vista os limites de tempo, assim como os limites de minha competência. Grosso modo, digamos que os dois textos colocam em cena uma mesma e dupla operação. Trata-se de descrever as relações entre Deleuze e a psicanálise, levando em conta duas fases de seu pensamento: a primeira, na qual o pensamento de Deleuze se alimenta também da psicanálise, e uma segunda, na qual fica evidente o distanciamento crítico em relação a Freud e Lacan. No fundo, apenas uma questão: quais são as razões propriamente filosóficas que obrigaram Deleuze a tal distanciamento?

Seria possível, creio eu, pensar na dimensão biográfica de tal corte. Não estariam, na origem deste desvio, a associação com Guattari e a prática clínica de La borde? Ele não começaria, se não estou enganado, com a publicação de O anti-édipo?

Mas voltemos ao essencial. O que descobri de novo nestes dois textos, o que escapara a mim, que escrevo sobre Deleuze há quase trinta anos? Parece-me que o essencial do encaminhamento de Monique David-Ménard é o seguinte: em sua segunda fase, Deleuze perdeu a possibilidade de diálogo com a psicanálise devido a um retorno (talvez não pensado) à filosofia pré-crítica. Em uma palavra, retorno à filosofia do infinito: Leibniz, certamente, a quem Deleuze direcionou explicitamente sua atenção, mas (surpresa!) a Hegel. Ou ainda à Dialética do Absoluto, que sempre foi o adversário principal da filosofia da diferença e da repetição (por sinal, a tradição que consiste a opor a ideia de repetição à ideia de síntese dialética é antiga: basta lembrar de Kierkegaard e de Nietzsche, assim como o bergsoniano Charles Péguy de Clio, que se situa no ponto de partida de Diferença e repetição).

É verdade que em um texto de mais ou menos dez anos eu dizia que a ideia de imersão no caos não estava distante da ideia exprimida no prefácio da Fenomenologia do Espírito onde Hegel afirma que, para se advir Razão, o simples Entendimento deveria imergir no delírio dionisíaco da Substância! Para mim, tratava-se de um cruzamento puramente local e sem muita importância.

O que me faltava, para bem ver as coisas, era o momento da filosofia crítica. Tanto é verdade que, em um texto mais antigo (do final dos anos 1970), procedi à análise de um parágrafo de Diferença e repetição, lido em uma direção que ia de Hume a Bergson, isto a fim de situar a diferença entre Freud e Skinner. O título do artigo era “Hume, Freud, Skinner (em torno de um parágrafo de Gilles Deleuze)”(3).

Trata-se do parágrafo que vai da página 129 à 130, consagrado à tentativa de corrigir a versão corrente da ideia de hábito, com suas consequências para a ideia de princípio do prazer. É um parágrafo do capítulo “A repetição por ela mesma” muito próximo dos parágrafos do mesmo capítulo comentados por Monique David-Ménard na conferência de hoje. Como se trata de um parágrafo muito longo, não posso me permitir citá-lo na íntegra. No entanto, posso resumi-lo. O hábito não pode ser reduzido à reprodução de um prazer obtido. A ideia de um prazer obtido ou a obter só pode agir a partir de um princípio:

Mas o hábito, como síntese passiva das ligações, ao contrário, precede o princípio de prazer e o possibilita”. Ao final, lemos: “Mais uma vez, não devemos confundir a atividade de reprodução e a paixão de repetição que ela recobre. A repetição da excitação tem, por objeto verdadeiro, elevar a síntese passiva a uma potência da qual derivam o princípio de prazer e suas aplicações, futuras ou passadas. (Deleuze 2, pp. 129-30)

Ao lado da luz lançada sobre o princípio de prazer, eu insistia, em meu texto, que a ideia de reforço nada tinha a ver com um reflexo (uma síntese, digamos, passiva), pois ela implicava, na ideia de repetição a que está vinculada, uma forma de temporalidade invertida – como se apenas os efeitos posteriores de um gesto pudessem defini-lo como um gesto propriamente dito. É como se (mais uma surpresa) encontrássemos, no muito norte-americano, pragmatista e naturalista Skinner, o ponto de partida de Clio, de Charles Péguy, que inicia com a tese de que a repetição nunca implica em um acontecimento primeiro.

Assim, sem passar por Kant, eu me aproximava do que nos diz Monique David-Ménard, mesmo privilegiando os textos da primeira fase, sugerindo que, com Guattari, e sobre o fundo da mesma tradição empirista, Deleuze se aproximava mais de Skinner do que de Freud – como se a concepção “maquínica” do inconsciente nos aproximasse mais da prática do reforço e da extinção do behavior do que da prática da interpretação. Com efeito, a explicar o funcionamento da prática, Deleuze faz em algum lugar um belo trocadilho ao elogiar o nome de um estado norte-americano: Connecticut – literalmente, ligar e cortar, ou talvez, reforçar e extinguir.

Era uma maneira menos rica, do que esta de Monique David-Ménard, de descrever o desvio de Deleuze em relação à psicanálise. Mas que é convergente com a dela. O fato é que eu não havia lido A loucura na razão pura. Não poderia fazê-lo nos anos 1970, et pour cause. Mesmo após ter lido e comentado O que é a filosofia?, em particular o misterioso parágrafo sobre os movimento de velocidade infinita que atravessam o caos, eu não tinha adivinhado o retorno subterrâneo à filosofia do infinito. Após esta conferência e os outros textos de nossa colega Monique, precisarei reler toda a obra de Deleuze. Mas esta é talvez a felicidade da prática da filosofia: poder sempre recomeçar.

São Carlos, 27 de outubro de 2004.

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NOTAS

  1. DAVID-MÉNARD, Monique. Créer des concepts, dessiner l’impensé in Rue Descartes, no 45-46, Paris: PUF, 2004.
  2. DELEUZE, Gilles. Différence et répétition. Paris: PUF, 1999.
  3. PRADO JR., “Hume, Freud, Skinner (em torno de um parágrafo de Gilles Deleuze)” in Alguns Ensaios, São Paulo: Paz e Terra, 2000.

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Publicado na Revista Discurso (USP), n. 36 (2007). 

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