Morte e Filosofia, se trata de uma viagem através do primeiro Ensaio do filósofo francês Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592), criador do gênero conhecido por ensaio e que inicialmente seguiu seu percurso por ideias sócraticas e platônicas, mas posteriormente se encontrou por linhas helenísticas.
Durante muitos séculos a morte foi tratada como tabu. Atualmente é perceptível que se encontre banalizada, principalmente por meio das mídias. Porém ao mesmo tempo, nossa sociedade não coloca em pratica o exercício de falar sobre: a morte.
O filósofo grego Aristóteles (384-322 a.c) nos disse “todo homem é mortal”. A morte é um fato em nossas vidas, não se pode ignora-la. Todos nós um dia morreremos. E por não refletirmos acerca da morte, produzimos finais com uma carga a mais.
Cícero (Marco Túlio Cícero (106–43 a.C.) em latim: Marcus Tullius Cicero), filósofo romano, é quem nos apresenta o filosofar como uma preparação à morte.
Em determinado momento, Montaigne, ao pensar sob um estado contemplativo, se perguntou: “O que será que eu sei?”. A partir dessa questão iniciou sua obra Ensaios, escrevendo o que lhe vem a mente. Portanto, criou uma obra descompromissada, sem a tentativa de fixar uma ideia ou defender somente um ponto de vista. Neste exercício, demonstra que o pensamento humano funciona como um fluxo e deste modo os respeita em sua escrita.
Ao se autorizar uma experimentação de escrita livre, se permite criar, contradizer, tropeçar em suas próprias palavras. Pois se há uma verdade que não alcançamos, estamos todos abertos a negar nossa própria ideia e, deste modo, repensar nossos pontos de vista. Não se trata de um devaneio irracional, mas não deixa de ser algo que possui certo descompromisso com a defesa de uma lógica da racionalidade.
Cabe ressaltar que Montaigne escreveu três Ensaios, mas aqui é destacado questões somente do primeiro, mais precisamente do capítulo XX “Filosofia uma aprendizagem para morrer”. Neste ensaio, escreve: “A meta de nossa existência é a morte; é o nosso objetivo fatal”.
O filósofo inaugura seu escrito em torno do eventual caráter essencial da morte, estabelecendo um firme contraste entre aqueles que a consideram um “mal” e os que a consideram um “bem”:
Ora, essa morte que alguns chamam de a mais horrível das coisas horríveis, quem não sabe que outros a denominam o único porto contra os tormentos desta vida? o soberano bem da natureza? o único esteio de nossa liberdade? e receita comum e imediata contra todos os males? E enquanto alguns a esperam trêmulos e apavorados, outros suportam-na mais facilmente que a vida (MONTAIGNE, 1991).
Platão, em sua obra A República, concebe o homem constituído por corpo e alma (alma no sentido de interioridade, de psiquê; evidentemente que não se trata de uma alma como na interpretação religiosa). Para ele, o nascimento é o aprisionamento da alma no corpo, enquanto a morte é a separação de ambos, a libertação. Desse modo, quando filosofamos, experimentamos a desagregação do corpo e da alma. Assim, considera-se que filosofar é aprender a morrer, pois a alma deve governar o corpo, jamais o contrário.
Cabe ao sujeito, através de seus pensamentos, saber conduzir sua vida, pois somente por este caminho poderá se guiar entre o bem e a verdade. Montaigne, segue por esse caminho, mas por uma escrita cética, seguindo um fluxo de desprendimento de ideias fixas. Afinal, “O que pensa o homem quando se permite pensar sem amarras?” (Montaigne, 1991).
FILOSOFIA: UMA APRENDIZAGEM PARA MORRER
Eduino José de Orione, em sua tese de doutorado “A meditação da morte em Montaigne” (USP, 2012) divide o capítulo XX em quatro partes: 1ª – O mote “filosofar é aprender a morrer” relacionado à vida feliz e reflexões entre virtude e volúpia; 2ª – Conjecturas de Montaigne sobre o vulgo; 3ª – Monólogo da natureza; e 4ª – crítica de Montaigne aos funerais da época. Caminho neste exercício por essa mesma divisão.
1ª parte – O mote “filosofar é aprender a morrer” relacionado à vida feliz e reflexões entre virtude e volúpia.
Diz Cícero que filosofar não é outra coisa senão preparar-se para a morte. Isso, talvez, porque o estudo e a contemplação tiram a alma para fora de nós, separam-na do corpo, o que, em suma, se assemelha à morte e constitui como que um aprendizado em vista dela. Ou então é porque, de toda sabedoria e inteligência, resulta finalmente que aprendemos a não ter receio de morrer. Em verdade, ou nossa razão falha ou seu objetivo único deve ser a nossa própria satisfação, e seu trabalho tender para que vivamos bem, e com alegria, como recomenda a Sagrada Escritura [Eclesiastes 3,12: “Então compreendi que não existe para o homem nada melhor do que se alegrar e agir bem durante a vida”]. Todas as opiniões propõem que o prazer é a meta da vida (…). Digam o que disserem, na própria prática da virtude o fim visado é a volúpia. E agrada-me repetir essa palavra que pronunciam constrangidos (…). Um dos principais benefícios da virtude está no desprezo que nos inspira pela morte, o que nos permite viver em doce quietude e faz se desenrole agradavelmente e sem preocupações nossa existência (…) (MONTAIGNE, 1991).
E, se assim não fosse – em relação aos benefícios da virtude -, negaríamos de imediato, pois quem em nossa sociedade daria ouvidos a alguém que apontasse a pena e o sofrimento como os objetivos da existência? A esse respeito, as divergências entre seitas filosóficas são simplesmente cheias de palavras sem nexo: “deixemos de lado essas sutilezas” (Sêneca); em tais discussões entra mais obstinação e provocação do que convém à própria filosofia. Mas em qualquer papel que se proponha desempenhar situa no homem um pouco de si mesmo.
Ao fazer alusão ao mote originado em Platão, encontramos nesta primeira parte, a inspiração de Montaigne na Antiguidade. Entretanto, é importante observar que o faz nas palavras de Cícero, grande admirador de Platão, porém rejeita a teoria das Ideias. Desta forma o pensador afasta-se do platonismo e se aproxima da era helenística.
Esse posicionamento antimetafísico, não o leva a ver a filosofia como uma experimentação preparatória para a separação alma/corpo, mas, ao contrário, se aproxima, de forma não dogmática, das éticas helenísticas, fundamentada no bem viver, para o qual aceitar a morte como condição natural da finitude humana é indispensável à vida feliz, da qual o prazer é indissociável.
2ª parte – O vulgo
A questão colocada por Montaigne neste ponto é: se a morte nos apavora, como poderemos dar um passo à frente sem temer? Nossa existência tem somente uma meta: a morte. Esse é o nosso objetivo fatal, assinala o filósofo.
Somos seres mortais, logo a morte atinge a todos os seres vivos, é algo inevitável em determinado momento de nossa vida. O remédio ao senso comum consiste em não pensar na questão da morte. Mas por qual motivo nega-la? O não exercício de uma reflexão sobre a morte, permite que pessoas a esmaguem por toda parte, acreditando esconde-la em algum vazio.
Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer desaprendeu a servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e constrangimento (MONTAIGNE, 1991).
“Nenhum homem é mais frágil do que outro, nenhum tem assegurado o dia seguinte” (Sêneca, citado por Montaigne). O que esperamos para iniciar uma prática e prolongar nossos trabalhos de existência? Nossas produções podem estar inacabadas, mas quando chegar o momento a morte será indiferente. E “se nossa morte é súbita e violenta, não temos tempo de receá-la; se não, na medida em que a enfermidade nos domina, diminui naturalmente o nosso apego à vida. Custa-me muito mais aceitar a ideia de morrer quando gozo saúde do que quando estou com febre. Quando não me sinto bem, as alegrias da vida me parecem menos valiosas, tanto mais quanto não estou em condições de usufruí-las, a morte se me afigura menos temível. Disso concluo que, quanto mais me desprender da vida e me aproximar da morte, mais facilmente me conformarei com a passagem de uma para outra” (MONTAIGNE, 1991).
Montaigne, através de suas experiências, exemplos da vida cotidiana e argumentos, nos traz razões para não se temer a morte. Refletir sobre a morte é libertador, assim como a morte em si é libertadora dos nossos males. É preciso exercitar essa prática, utilizar esse recurso para nos libertarmos desse aprisionamento. É através deste processo de reflexão que nos mobilizamos, que somos impulsionados a viver uma vida potente, produtiva e menos angustiante ao que se refere ao nosso inevitável e imprevisível momento.
3ª parte – Monólogo da natureza
“A natureza nos ensina: vós saís deste mundo como nele entrastes. Passastes da morte à vida sem que fosse por efeito de vossa vontade e sem temores; tratai de vos conduzirdes de igual maneira aos passardes da vida à morte; vossa morte entra na própria organização do universo: é um fato que tem seu lugar assinalado no decurso dos séculos: “Os mortais se emprestam mutuamente a vida… é a tocha que se transmite de mão em mão nas corridas sagradas” (Lucrécio). (MONTAIGNE, 1991)
A morte é parte de nossa criação, é integrante de nós mesmos. Nossa existência participa da morte e vida ao mesmo tempo, desde nosso nascimento caminhamos na vida e para morte. Montaigne cita alguns filósofos para falar sobre isso: “a primeira hora de vossa vida é uma hora a menos que tereis para viver” (Sêneca) — “nascer é começar a morrer; o último instante de vida é consequência do primeiro” (Manílio). A vida em si não é um bem ou mal, esses valores surgem a partir de nossas experiências, é dado por nós e pelos outros.
Quíron recusou a imortalidade quando Cronos, seu pai, deus do tempo e da mortalidade, lhe revelou as condições dela. Imaginai a que ponto uma vida sem fim seria menos tolerável e mais penosa para o homem do que a que lhe foi dada. Se não tivésseis a morte, vós me amaldiçoaríeis sem cessar por vos haver privado dela. Foi propositalmente que a ela juntei alguma amargura, a fim de impedir que, ante a comodidade dela, não a buscásseis com avidez (MONTAIGNE, 1991).
A não reflexão sobre a morte, produz o desconhecimento da mesma, nos levando a uma espécie de fantasia da imortalidade. E quem suportaria a imortalidade? Qual o medo do último dia? Este não é mais violento que os dias anteriores, é apenas uma marca do espaço-tempo determinando um fim. “Todos os dias levam à morte, só o último a alcança. Eis os sábios conselhos que vos dá a natureza, nossa mãe” (MONTAIGNE, 1991).
Montaigne nos mostra como a natureza pode ser convincente para a nossa preparação rumo a morte, dando-lhe voz ao reduzir a morte individualizada a uma sequência natural e igualitária no contexto universal, deslocando assim a ideia das experiências individuais frente à circularidade dos eventos naturais. Cabe observar que a qualidade de vida é o resultado das ações de um viver bem e desta forma a valoração da vida ocorre mais pelo aspecto qualitativo que quantitativo.
Nessas passagens, a “natureza” nos conclama ainda a aceitar a finitude de nossas vidas como um alívio, e que por ser, em certas ocasiões, tão desejável, ela (natureza) agregou à morte alguma inconveniência para que não fosse facilmente desejada, ou seja o suicídio não fosse um instrumento frequente de escapamento às intempéries da vida.
4ª parte – Críticas de Montaigne aos funerais da época
Montaigne indaga sobre a impressão da perspectiva ou mesmo a própria presença da morte em casa, na guerra ou em outro ambiente externo, e ainda, em contraposição também à crítica anterior as pessoas que agem cegamente negando a morte. Para ele, sabendo que a morte é a mesma para todos, lhe surge um estranhamento ao perceber a maneira como a morte é pacientemente mais acolhida pelos camponeses e pessoas mais simples, que em relação aos outros.
Creio, em verdade, que são esses semblantes de circunstância e esse aparato lúgubre com que a cercam, que nos impressionam mais do que ela própria. Quando ela se aproxima, há uma modificação total em nossa vida cotidiana: mães, mulheres e crianças gritam e se lamentam. Inúmeras pessoas nos visitam, consternadas; a gente da casa fica aí, pálida e desesperada; a obscuridade reina no quarto; acendem-se velas; à nossa cabeceira juntam-se padres e médicos; tudo, em suma, em volta de nós se dispõe como para inspirar horror; ainda não rendemos o último suspiro, e já estamos amortalhados e enterrados (MONTAIGNE, 1991).
Para o filósofo há um exagero nestes rituais, de teatros que eram os funerários de sua época – podemos observar em nossa atualidade, homens agindo cegamente em relação a aceitação do que faz parte da ordem da natureza.
As crianças se amedrontam quando as pessoas, mesmo suas conhecidas, se apresentam mascaradas; pois é o que ocorre nesse momento. Arranquemos as máscaras das coisas como das pessoas e, por baixo, veremos muito simplesmente a morte. A mesma com a qual partiu ontem, sem maior pavor, tal ou qual criado ou camareira. Feliz é a morte que nos surpreende sem que haja tempo para semelhantes preparativos! (MONTAIGNE, 1991).
A sua crítica recai, sobretudo, na forma espetacular, na qual a pessoa doente é circunscrita a um aglomerado de pessoas dramáticas, outras funcionais que o compelem a confissões e declarações de arrependimento sob um cenário deprimente e obscuro. Montaigne chama a atenção aos efeitos desse cenário, enquanto um mascaramento do último ato, pois só possui função de descaracterizar a naturalidade da morte, tornando-a uma fonte de pavor.
Essa crítica nos sugere que o senso comum mantém a sua naturalidade da morte, não por uma preparação racional prévia, mas talvez por estar distante da artificialidade pavorosa dos preparativos fúnebres. Assim, através da máscara, demonstra que não se tem medo da morte, mas sim do respectivo cerimonial. Então, se torna visível que a preparação montaigniana da morte não diz respeito a preparação artificial e cenográfica dos ritos, mas sim a elaboração de um roteiro interior e individual de vida, onde o viver bem inclui a imaginação da morte como algo natural e inevitável, a fim de que se também viva a vida natural e virtuosamente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) e Montaigne partilham da mesma visão, na qual: temer a morte pode ser considerada uma cegueira irracional. No entanto, é preciso destacar que ambos diferem em suas percepções de vida, pois o primeiro tem uma concepção pessimista da vida, enquanto o segundo uma percepção mais otimista, de uma vida produtiva, embora admita que nos momentos mais difíceis a morte também pode ser vista como um alívio.
Para Montaigne, a expressão “morrer” vai muito além de seu sentido comum. Pois há duas formas de se encontrar com a morte: pelo estudo e pela contemplação. “Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade”, afirma o filósofo. Essa é a base para seus ensaios: a morte como forma de liberdade, em que felizes são aqueles que não temem diante dela.
Ao mesmo tempo que desejamos manter um distanciamento da morte, enquanto finitude do nosso ser, como pode ser observado, a morte vem sendo discutida ao longo dos séculos por diferentes pensamentos que desejam lhe descortinar os mistérios. Desta forma, o Ensaio de Montaigne, no qual o pensamento da morte jamais deveria ser motivo para ofuscar uma vida virtuosa e cheia de prazeres, mostra como o filósofo pensou, revisou e criticou as questões da morte em sua época, ao mesmo tempo, que exortava aos seus leitores sobre certas obviedades da naturalidade da morte e as vantagens de se viver em liberdade, não se aprisionado ao medo da finitude.
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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios I – De como filosofar é aprender a morrer. Tradução de Sérgio Milllet. Consultoria Marilena de Souza Chauí; 5.ed. São Paulo: Nova Cultural. Coleção os pensadores. 1991.