O “se dizer lacaniano”, deve permanecer in petto? Há neste dizer uma dimensão social e política, mas também lógica e íntima que concerne à questão da identificação: “A qual nível a identificação do analista se produz” é uma pergunta que Lacan¹ faz logo que trata dos problemas cruciais para a psicanálise. Que ele designa um pertencimento, uma filiação ou um outro tipo de vínculo, o adjetivo “lacaniano” traz em seu fundo a questão de uma identificação, ou seja, de uma espécie de apropriação e de transformação em um movimento de redução do peso.
Ao invés de outros adjetivos formados a partir do nome próprio, aquele que termina em –iano não carrega um valor pejorativo em si, ele é neutro. Esse não seria o caso se se dissesse lacanoide, lacanesco, lacanista, lacanês… O –iano é uma coisinha adicionada ao nome próprio e que pode derivar para o melhor ou pior. Sem levar em consideração as maneiras como, enquanto significante, ele pode ser por cada um decomposto em letras ou sílabas que ressoam e se associam diferentemente.
A significação da palavra lacaniano não deixa de ser enigmática. Tentemos, portanto, desdobrar as coordenadas e as variações para si, para outros e em relação a outros.
Há vergonha em se dizer lacaniano?
Acontece que esse número 42 da Essaim segue aquele que teve por tema “Do que os psicanalistas deveriam ter vergonha?”. Essa não me parece uma coincidência. Uma vez a revista publicada, me dei conta, na releitura dos artigos que aí estão publicados, que a questão da vergonha, própria ao analista, permanecia em filigrana. Por quê? Eu não saberia julgar, mas uma resposta me veio, que a vergonha do analista poderia estar relacionada à vergonha de se dizer lacaniano. Assim poderíamos ter intitulado este número: “Do que ter vergonha ao se dizer lacaniano?”. A abordagem da vergonha conjuga o íntimo e o social em jogo no “se dizer”, com o “se” reflexivo, a partir do outro e do Outro, o dizer de si, o dizer para o outro e o ser dito pelo outro.
Vergonha de que? Pode acontecer que exista a vergonha de se dizer lacaniano quando se vê como alguns analistas se apoderam e se adornam da palavra, sem vergonha, para melhor a despedaçar ou a reduzir a mingau.
A obra de Lacan, não mais que aquela de Freud, nos imuniza contra a canalhice, que devemos distinguir da perversão. Conforme Lacan, o canalha é aquele que quer ser o Outro de alguém lá “onde se desenham as figuras onde seu desejo será capturado”. A análise torna o canalha “necessariamente” bobo.2
Há, contudo, outro nível onde a vergonha pode atingir o lacaniano. É quando se mede a discrepância entre si e isso que Lacan realizou. Como mensurar nossa discrepância em relação a ele? Entramos aqui na problemática da repetição de uma identidade da diferença própria à sublimação – e à qual eu voltarei, sabendo que tenho que distingui-la da idealização, onde a discrepância se mede em função de uma figura ideal, acerca da qual não se sentirá nunca à altura. A dificuldade provém também do fato da posição de “problematizador radical”³ do analista relativamente ao sujeito suposto saber, que pode engendrar, às vezes, um sentimento de impostura, apesar ou por causa de satisfações que ele pode proporcionar.
“Lacaniano” seria então o nome dessa vergonha?”. O que seria então não ter vergonha dessa vergonha? Há vários exemplos, tal como o de se crer autônomo, solitário e imaginar-se reinventando sozinho a psicanálise. Pode ser também o de se identificar a uma imagem de Lacan bricolada a partir de anedotas, de chistes, de traços de caráter. Pode ser, ainda, o de se fundir em um movimento de lacanianos anônimos, no qual se trata de se reconhecer entre si com menos custos, ao adotar posturas e ao comunicar as palavras-chave adequadas, oriundas de citações truncadas. Finalmente, claro, a vergonha desta vergonha do problematizador da posição do analista, pode conduzir a odiar Lacan e os lacanianos, e neste ódio confortar seu ser: é “vergonhologia” [“hontologie”].
Mas o que está afetado por esse ódio primário que a vergonha de se dizer lacaniano encobriria? Da qual ela seria o nome? Vergonha de uma discrepância, mas qual? E como mensurá-la?
Algumas pistas vêm à mente para designar o que está em jogo nesta vergonha fundamental, pistas que Lacan colocou em evidência e explorou. Elas dizem respeito ao que entendo como um horror de saber, que o sujeito suposto saber supostamente recobre, mas, às quais, simultaneamente ele entreabre a porta (pelo fato da dinâmica inclusa neste significante em três palavras da transferência e vindo como terceiro na relação analista-analisante), criando uma zona de entre-dois, de Unheimlich (que eu traduzo como ‘familiaridade inquietante’, ao invés de ‘inquietante estranheza’, no fundo bastante rasa) com uma discrepância entre o “não quero saber de nada disso” de Lacan e o nosso (seus analisantes, seu público). “[…] isso não significa que não se saiba nada daquilo que eu digo, uma vez que isso sai da experiência, mas temos horror daquilo que sabemos disso”.4
Citemos brevemente algumas fontes do horror:
– a dor de existir, evocada no sonho comentado por Freud “Ele não sabia que estava morto” e que Lacan releu como o desejo de Édipo em Colona: “Antes não ter nascido (me funai).” Frequentemente, aliás, o sonhador cria quando dorme figuras que provocam seu horror, como para amansá-lo;
– o horror de um gozo por si mesmo ignorado, por exemplo, aquele de fazer o mal a seu próximo;5
– o horror em admitir o ab-senso [ab-sens] de um sujeito suposto saber enquanto uma invenção (no caso de Georg Cantor inventando, contra todas as expectativas, os números transfinitos);
– aquele que se manifesta ao aproximar-se do “não há relação sexual”, salvo entre gerações vizinhas, onde ela se escreve.
Antes de prosseguir, não devemos perder de vista que há na vergonha de se dizer lacaniano um duplo aspecto social e coletivo por um lado, individual e íntimo por outro, e que é na junção dessas duas vertentes que a vergonha em dizer se situa.
Como eu dizia na introdução, ninguém me obriga a dizer-me lacaniano, salvo circunstâncias especiais onde precisamente operam exigências coletivas e sociais. Na prática analítica é ainda menos um objetivo, já que se trata de colocar seu eu em vacância a fim de ocupar este lugar impossível de atenção igualmente em suspenso, livre de pré-julgamentos e de interpretações a priori. Afetos, cansaço, outras preocupações podem aparecer e então é preciso saber lidar com isso, para que não afete a integridade da escuta da fala do analisante. A este título, “se dizer lacaniano” pode se apresentar como resistência a essa escuta.
Mas então, o que resta do valor de um “se dizer lacaniano”? A dificuldade que encontramos está relacionada precisamente à junção deste dizer entre o íntimo e o coletivo, a intensão e a extensão, o interior e o exterior. Uma junção que não pode ser abordada senão topologicamente, ou seja, em função de relações ao tempo e ao espaço, que configuram continuidades do interior e do exterior e descontinuidades de tempo.
Analista lacaniano: um pleonasmo?
A referência do termo “lacaniano” não coincide com a designação de uma identidade, e nada diz que isto que está em jogo para mim com esse termo não corresponde ao uso público que pode ser feito. Para o exterior, pode ser um sinal de reconhecimento, de pertencimento a um grupo e, na minha enunciação, um significante cujas ramificações eu não acabei de reconhecer. No seu uso de significante, o termo “lacaniano” não é idêntico a ele mesmo. Então, isso não o torna impossível de se dizer lacaniano sem contradizer este dizer?
Contradição redobrada nisso que o “se dizer lacaniano” deve poder se referir ao dizer e aos ditos lacanianos em seu conjunto, não estar desligado do reconhecimento da verdade do dizer lacaniano. Posso verificar a verdade de se dizer lacaniano fora de minha referência à verdade do dizer lacaniano? Eu somente posso verificar que sou lacaniano mediante os termos de Lacan e os dispositivos que ele criou, que eu reconheço como operantes, e então não faz mais sentido dizer-me lacaniano, pois o que vai distinguir meu dizer daquele emprestado àquele de Lacan? Ainda mais porque nada garante sua conformidade. E o sentido de se dizer lacaniano não é estabelecer uma conformidade de dizer. Para afirmar-me lacaniano, seria preciso que eu não fosse lacaniano. É possível se dizer lacaniano no interior de um discurso cuja referência é ligada a Lacan? Mas se não há analistas que se dizem lacanianos, quem o dirá?
Sabe-se que Foucault reconhece uma discursividade fundada por alguns autores, e notadamente Freud, que não são somente autores de seus livros, mas produzem algo a mais: “a possibilidade e a regra de formação de outros textos”. Tais discursividades conduzem à exigência de “um retorno à…” que se faz em direção a “uma espécie de costura enigmática da obra e do autor”.6 A noção de uma “costura enigmática” interessa nosso propósito e requer ser esclarecida em função do paradoxo específico para um analista de se dizer lacaniano.7
Por minha formação analítica em intensão e em extensão, eu não posso distinguir o que eu considero como analítico do que eu considero lacaniano. Os termos são pleonásticos. Dizer-se lacaniano equivale para mim a dizer-se analista e vice-versa. Mas como justamente a formação analítica com Lacan me ensina que não há ser do analista e que o analista, na análise, passa pela provação de des-ser [désêtre] que o faz cair ao nível de objeto a, resulta em uma contradição afirmarse lacaniano. Considerar “lacaniano” como o adjetivo de um atributo do analista seria ainda colocar uma contradição. Não há analista que possa se dizer analista lacaniano. É um espaço logicamente vazio. Mas justamente isso se inverte, e talvez seja preciso dizê-lo, dizer-se lacaniano, para se pôr à prova.
Deste ponto de vista, “lacaniano” seria antes ser concebido como borda de uma falta a ser, de um buraco que ele delimitaria sem o obturar, permitindo somente uma aproximação e ainda bem parcial. Afirmar-se lacaniano é faltar a ser lacaniano. Mas não fazê-lo não prova nada, até mesmo é de natureza fóbica ou ainda obscurantista.
Deste impasse pode sair uma solução que lembraria o que Lacan diz do fim de análise: que ao sair da análise, aí é que entramos, e que o melhor modo de entrar é sair daí8. A solução residiria em tomar o impossível dizer como dimensão positiva, como verdade irredutível, sinal de um real que resta a articular. Voltarei a esse assunto.
A impossível objetivação do termo lacaniano
Por enquanto, prossigamos perguntando se existe uma objetividade compartilhável dos ditos lacanianos entre os que se dizem lacanianos, isto é, entre os que reconhecem que há um dizer lacaniano, um ato, ao qual se liga um certo número de ditos aos quais eles assentem.
Temos de reconhecer que este não é o caso. É impossível determinar um conjunto dos lacanianos dentre os analistas, e na dispersão destes últimos reinam oposições e diálogos de surdos. Os debates foram organizados e demonstraram posições senão inconciliáveis, ao menos divergentes, e suscitando a polêmica falta de encontrar um ponto de acordo na formulação mesma do que divergia. A memória é mantida, por exemplo, para isso que concerne à diferença entre as noções de sujeito e de subjetivação em dois números da Essaim.9 Muitos outros temas suscitam oposições mais ou menos virulentas e que, sobretudo, não desembocam em propostas argumentadas e, portanto, deixam vago isso que poderia ser reconhecido como lacaniano ou não, daí em geral a ausência de consequências do que aparece posteriormente terem sido debates que não chegaram a delimitar os pontos cruciais de divergência que implicam escolhas decisivas e até mesmo cismas. Citemos grosso modo: as questões relativas a um declínio do pai, o lugar da parentalidade nas homossexualidades, o recurso às vinhetas clínicas, o passe, a sublimação com a identificação ao sintoma…
Certamente é possível fazer uma lista de enunciados de Lacan que permitiria juntar os que com ela concordam. A experiência foi tentada para o conjunto dos analistas (não somente lacanianos) durante os debates na França, em 2003, em torno da regulamentação do título de psicoterapeuta no qual seriam incluídos os psicanalistas.10 Foi um fracasso, não somente por razões corporativistas, mas também porque, se é verdade que tinha muita gente concordando para destacar alguns termos como incontornáveis e incontestáveis (a transferência, a sexualidade infantil, o Édipo, o inconsciente, o recalque, a análise pessoal…), eles não os entendiam da mesma maneira.
Não poderíamos, no entanto, assumir o risco da utopia, tentar definir apenas algumas características da contribuição de Lacan, cuja adoção bastaria para se dizer lacaniano?
Tentemos.
Em primeiro lugar, há, me parece, isso que ele chamou seu re-torno a Freud que consistiu em operar um segundo giro de leitura do conjunto da obra de Freud a fim de evidenciar os fundamentos da psicanálise, mediante isso que ele mesmo trazia de novo com relação a Freud e que inventava. Vamos pensar nisso que ele chamou o “golpe” [balayette] do estádio do espelho que rearranja o narcisismo freudiano, ou a dimensão ternária do real, simbólico e imaginário que faz sair do dualismo, ou ainda ao objeto a, letra algébrica, irrepresentável, que permite conectar o fantasma à pulsão. Fortalecido por essa abordagem e este percurso que em 1980, em Caracas, ele lançou o desafio: “São vocês que devem ser lacanianos, se quiserem. Eu, sou freudiano”.11 É um desafio, pois quem hoje poderia se dizer lacaniano no sentido que Lacan se diz freudiano? Mas se isso não tem o mesmo sentido, isso não impede de se querer lacaniano. Em qual sentido então? É o objeto deste artigo. Notamos de passagem que este sentido é sobredeterminado por um querer. Isso seria o objeto de um desenvolvimento que ultrapassa o quadro deste artigo.12
Se nós sabemos que se querer lacaniano não pode ser no sentido em que Lacan se dizia freudiano, nós sabemos também, do mesmo modo, que este querer lacaniano é querer-se lacaniano e freudiano. Há a duplicidade de se dizer lacaniano. Essa duplicidade, que poderia valer como uma primeira definição de “lacaniano”, deve ser diferenciada claramente daquilo que podemos qualificar de freudo-lacanismo, fonte de múltiplas confusões, na medida em que poupa daquilo que separa Lacan e Freud, ao mesmo tempo que os unem.13 Existe uma outra duplicidade com a qual o analista está lidando, aquela entre os efeitos de sua prática e isso que ele teoriza: “É indispensável que o analista seja ao menos dois, o analista para ter os efeitos e o analista que teoriza esses efeitos”.14
O retorno a Freud de Lacan é pontuado por teses que mudam e marcam esse re-torno de sua pegada [empreinte]. Citemos a tese do inconsciente estruturado como uma linguagem, passando para aquela do inconsciente como saber-fazer com lalingua para chegar a uma renomeação do inconsciente: um-equívoco [une bévue] (transliteração de Unbewusste) e falasser. As teses sustentadas por Lacan o foram de uma maneira que se quis adequada a seu objeto (o objeto a, não representável) para a adoção de um estilo qualificado de maneirista. Este coloca em ato o caráter incomensurável da relação do saber e da verdade. A este respeito, sua escrita dos matemas, que medem em diversos níveis este incomensurável – aquele do significante, do grafo, do objeto a, dos quatro discursos, das fórmulas de sexuação, do nó borromeano… –, constitui a coluna vertebral de seu ensino. Seu uso da topologia – cuja base matemática não foi absorvida pela figuração – traz um método para presentificar a interface entre as escritas e a linguagem comum. A topologia faz barreira à ontologia dos conceitos e à fantasia de uma metalinguagem. Por essa via, Lacan se aproxima da abordagem de um Niels Bohr para quem “o paradoxo da física atômica apenas se resolve se nos preocupamos constantemente do uso que se faz das palavras”.15
Havia de fato incompatibilidade entre os pressupostos filosóficos da física clássica (separação do sujeito observador e do objeto representável, continuidade do espaço e do tempo conforme o modelo kantiano associado ao princípio de causalidade) e as experiências da física dos quanta. De sorte que, para dar conta desta última, é preciso, segundo Niels Bohr, uma linguagem que se diferencie daquela da ontologia do conceito para deixar um lugar para o equívoco. Seguindo seus trabalhos, podemos adiantar que para Bohr a física é estruturada como uma linguagem: “Para Bohr, o mundo é dotado de inteligibilidade; a teoria quântica tem apenas evidenciado o caráter próprio da linguagem em geral, que é de ser o órgão formador do pensamento”.16
Poderíamos pensar que se situando tão próximo da ciência mais moderna, a obra de Lacan teria permitido um consenso senão generalizado pelo menos suficientemente estabelecido para que os lacanianos se reconhecessem entre eles e em relação aos outros abertamente não-lacanianos (parece mais fácil de se dizer não-lacaniano que lacaniano). Está longe de ser o caso.
Lacaniano: uma lógica do não-todo
Não há garantia objetiva nem consenso em se dizer lacaniano. Nenhuma instância nacional ou internacional tem a legitimidade para decidir, o que, claro propicia todas as falsificações. E mesmo quando se diz sinceramente lacaniano, ninguém pode se valer de uma apreensão global da obra de Lacan, tal que ela não poderia ser contradita por outra pessoa, o que não deixa de acontecer. A obra de Lacan foi evolutiva e brincou com o equívoco, a alusão e o semi-dizer [mi-dit]. Sua apreensão sempre ficará necessariamente parcial, com uma dimensão de perda inevitável que cada um pode medir quando relê seus textos pela enésima vez. Então, é necessário renunciar a se dizer lacaniano? Naturalmente, a questão deixa de fazer sentido se for entregue à arbitrariedade.
Se, de uma forma ou de outra, fomos mordidos pelo dizer de Lacan, que significaria o fato de não se dizer lacaniano? Seria um tipo de renúncia a uma certa forma de identificação. Mas uma vez que não se pode garantir esse dizer através de um consenso tendo uma certa objetividade nos ditos de Lacan, o “se dizer lacaniano” permanecerá marcado por um defeito, por uma falta em relação ao que seria um todo lacaniano. Dizer-se lacaniano permanecerá sempre um se dizer lacaniano em confronto com o parcial. Mas daí não nos enganemos: não se trata de cortar este lacaniano em fatias que juntas fariam um todo. Não somos meio lacaniano, um quarto lacaniano, um oitavo lacaniano… Não somos todo lacaniano, a ouvir no sentido que Lacan dá à expressão não-todo, isto é, aos “confins” do todo, confins que não fazem fronteira, mas litoral, escapando à lógica do todo porque é uma lógica que trata do semi-dizer da verdade e do um por um. “É do não-todo que depende o analista”, declara Lacan na Carta aos Italianos em 197417 (e não em 1973). Dizer-se lacaniano é aceitar entrar nessa lógica do não-todo que caracteriza também a abordagem feminina da sexuação nas identificações sexuadas. É assim que o “autorizar-se de si mesmo e de alguns outros para ser analista” e o autorizar-se sexuado são correlativos18. O se dizer lacaniano é um se autorizar lacaniano e o se autorizar lacaniano é fazer o laço entre o autorizar-se sexuado e o autorizar-se analista.
Dizer-se lacaniano é também lidar com o conjunto vazio que a marcação pelo unário e a referência ao nome de Lacan implicam. Dizer-se lacaniano é colocar-se em condição de oferecer este vazio e este silêncio onde possa ecoar o dizer do analisante.
Para concluir, eu afirmo que só se pode dizer lacaniano ao título de uma identificação e, portanto, este dizer deve se repetir. À semelhança de qualquer identificação19 (já aquela do espelho), é uma identificação antecipada – com os três tempos do tempo lógico exposto por Lacan no sofisma dos três prisioneiros -, que se apresenta como transformação. Aqui, pelo próprio fato de esse dizer, do qual a antecipação faz ato. Constatamos que seu advento é tornado possível por um querer: é preciso que os prisioneiros queiram sair de sua prisão. É necessário querer seu desejo. O diretor que propõe a prova é representante da instância de um querer.
O dizer que faz a identificação pode visar o ser analista, mas só o encontra em um tornar-se correlativo de um engajamento numa ação, uma “práxis” (ação que tem o seu fim em si mesma, diferente da “poiésis”, que tem a sua produção20 fora dela), em intensão e em extensão, não sem os outros, determinado por uma falta fundamental, uma falta a ser analista. A identificação de “lacaniano” é uma identificação a um não-todo na sexuação e também a uma falta, e portanto, uma identificação de desejo21. Como todo desejo, o do analista é suportado por uma fantasia, cuja dimensão mais opaca é aquilo com o que ele interpreta na análise.22
O se dizer lacaniano inscrito nesta identificação de desejo na perspectiva da sublimação específica do analista, caracterizada pela satisfação da repetição de uma identidade de diferença (aquela do traço unário, em circuito duplo, incomensurável ao objeto a, como na divisão harmônica).23 Aqui, esta identidade de diferença seria a das discrepâncias evocadas anteriormente, por um lado, entre freudiano e lacaniano e, por outro, entre o “eu não quero saber de nada disso” do qual Lacan fala e o nosso.
Tradução de Marie-Lou Lery-Lachaume, Marcela Verônica da Silva; Stephanie Olivato
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NOTAS
[1] J. Lacan, Problèmes cruciaux pour la psychanalyse. 16 décembre 1964, inédit.
[2] J. Lacan, L’envers de la psychanalyse, Paris, Le Seuil, 1991, p. 68, et…Ou pire, Paris, Le Seuil, 2011, 1er juin 1972, p. 198-199.
[3] J. Lacan, L’Acte psychanalytique, 29 novembre 1967, inédit.
[4] J. Lacan, …Ou pire, op. cit., p. 194. Ele fala dessa discrepância entre os dois “não quero saber de nada disso” no começo do Seminário Mais, ainda [Encore].
[5] J. Lacan, L’éthique de la psychanalyse, Paris, Le Seuil, 1986, p. 217 et 223.
[6] M. Foucault, “Qu’est-ce qu’um auteur?”, Littoral, nº 9, Toulouse, Érès, juin 1983, que publica também a participação de Lacan que assistiu a conferência de Foucault, e um excerto do seminário D’un Autre à l’autre [De um Outro ao outro] onde Lacan fez um comentário sobre essa conferência. O texto de Foucault foi republicado em M. Foucault, Dits et écrits, t. I, Paris, Gallimard, 1994, p. 789.
[7]
[8] J. Lacan, L’acte psychanalytique, 6 décembre 1967, inédit, et Autres écrits, Paris, Le Seuil, 2001, p. 266.
[9] Essaim, nº 22, C’est à quel sujet?, 2009, et Essaim, nº 25, Le sujet divisé, 2011.
[10] Cf. S. Aouillé, P. Bruno, F. Chaumon, G. Lérès, M. Plon et E. Porge, Manifeste pour la psychanalyse, Paris, La Fabrique, 2010.
[11] J. Lacan, L’Âne, Le magazine freudian, nº1, avril-mai 1981.
[12] Cf. neste mesmo número os artigos de F. Pellion e M. Charreau
[13] O freudo-lacanismo foi criticado nos artigos de Littoral, nº14, Freud, Lacan: quelle articulation?, Toulouse, Érès, novembre 1984, e no Le Gaufey, L’effet de sens, Paris, Epel, 2018, p. 15.
[14] J. Lacan, R.S.I., semináire du 10 décembre de 1974, inédit.
[15] C. Chevalley, dans N. Bohr. Physique atomique et connaissance humaine, Paris, Gallimard, 1991, p. 489.
[16] Ibid, p. 99, 102-103. Podemos comparar por contraste essa posição com a de Cantor, para quem a equivocidade da linguagem tem feito retorno no delírio ao passo que ele é confrontado aos horrores de colocar em questão o sujeito suposto saber com sua busca de compatibilidade da “liberdade” do matemático com a religião. Cf. a esse sujeito nossa coletânea de textos delirantes de Cantor e sua apresentação no: G. Cantor, La théorie Bacon-Shakespeare, GREC puis Érès, Toulouse, 1996.
[17] J. Lacan, “Note italienne”, em Autres écrits, op. cit., p. 308.
[18] J. Lacan, Les non-dupes errent, 9 avril 1974, inédit.
[19] J. Lacan, Problèmes cruciaux pour la psychanalyse, 13 janvier 1965, inédit.
[20] G. Agamben, Karman, Paris, Le Seuil, 2018, p. 94. Também: J. Lacan, Problèmes cruciaux pour la psychanalyse, 16 décembre 1964, inédit.
[21] J. Lacan, Problèmes cruciaux pour la psychanalyse, 6 janvier 1965. Lacan fala a propósito da identificação de Freud no seu esquecimento de Signorelli.
[22] J. Lacan, L’acte psychanalytique, 19 juin 1968, inédit.
[23] E. Porge, La sublimation, une érotique pour la psychanalyse. Toulouse, Érès, 2018.
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Publicado em Modernos & Contemporâneos, Revista de Filosofia do IFCH da Universidade Estadual de Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019.