Até o início do século XIX a medicina ocidental, grosso modo (excluindo os gregos), repousou sobre um único dogma, tão simples quanto indiscutível: saúde e doença se opõem radicalmente, assim como o Bem e o Mal — por princípio. A doença não é desvio ou acidente na ordem da Natureza, mas essência, entidade específica — contranatureza. O estado patológico não é uma alteração da normalidade, mas a presença ou ausência de um princípio definido. Entre saúde e doença não pode haver continuidade ou comunicação: o abismo que as separa é qualitativo, a tal ponto que a fisiologia e a patologia constituirão domínios independentes. À patologia caberá agrupar sintomas diversos em unidades nosográficas discriminadas, tal como faria um botanista em relação a suas espécies. Por detrás do jardim patológico, anterior a ele e até mesmo independente dele, pairam as essências mórbidas em seu sistema classificatório.
A medicina clássica funcionava através de um mecanismo epistemológico que Foucault descreveu com a expressão “conhecer é reconhecer”¹. A regra classificatória inaugurada por Sauvages e vigente até Pinel estabelecia que a doença, antes de ser tomada na espessura do corpo, teria uma organização hierarquizada em famílias, géneros e espécies. Esse quadro nosológico, anterior a qualquer manifestação sintomática, não era um mero instrumento de memorização com a finalidade de facilitar o diagnóstico. Foucault vê nele todo um espaço fundamental, anterior à percepção, do perpétuo simultâneo, isto é, um espaço plano em que o tempo não conta como variável e onde as analogias qualitativas definem as essências. O olhar da medicina ontológica coloca o corpo do doente entre parênteses, com suas variações pessoais, temperamentais, climáticas, acidentais, enfim, para deixar emergir a essência mórbida em sua pureza. O doente não passa de uma doença que adquiriu traços singulares. E a terapêutica só pode ter um objetivo: expulsar do corpo o princípio enfermo a fim de restituir-lhe a saúde.
A medicina do século XVIII referiu-se muito mais à noção de saúde do que à de normalidade. Compreende-se. A diferença entre doença e saúde estava na presença ou ausência de qualidades como vigor, flexibilidade, fluidez, e não tinha ainda por referência uma estrutura orgânica ou um funcionamento regular considerado “normal” frente a seus desvios.
Foucault fez a história epistemológica da dissolução da medicina ontológica, e pontuou duas rupturas fundamentais na estrutura desse olhar: a emergência da medicina dos sintomas (o olhar clínico), e o surgimento da anatomia patológica.
No novo olhar clínico o significante sintoma e o significado doença fundem-se num único registro, tomando a totalidade da cena médica: não há mais essência patológica. A doença se esgota em seus sintomas, e tudo na doença é fenómeno de si mesmo. O tempo, por sua vê/, será para esse novo olhar aquilo que o espaço plano era para as classificações. O recorte diacrônico fará da doença uma história. Desaparecem assim duas oposições clássicas: essência/sintoma e natureza/tempo.
Um terceiro elemento caracterizará essa medicina dos sintomas: as variações fenomênicas. No domínio homogéneo da estrutura hospitalar, as comparações são possíveis, podem ser rigorosas e a percepção das frequências permite fazer das variações uma questão de probabilidade estatística. Assim, o anormal torna-se, segundo o modelo estatístico, uma forma de regularidade.
Esse olhar neutro sobre as manifestações, as frequências e as cronologais será reorganizado com o advento da anatomia patológica. Bichai fará do tecido um elementar que é, ao mesmo tempo, um universal. Ao reduzir o volume orgânico ao espaço tissular, Bichat abandona a história e cria uma geografia, que vai da superfície sintomática à superfície tissular, descobrindo o volume anatomoclínico. A partir daí não há uma espécie patológica infiltrada no corpo, mas é o corpo que se torna doente. Essa doença é localizável: tem um foco e uma origem.
Mas a grande revolução operada por Bichat foi a de volatizar a morte através da vida. É na autópsia que se revela a verdade da doença, mas a morte não é esse acontecimento final e decisivo que se pensa: ela é múltipla, dispersa no tempo e imbricada com o processo vital. Os fenómenos de morte parcial ou progressiva não antecipam futuro algum, apenas mostram um processo em realização.
O que importa assinalar é a conclusão de Bichat: a doença é alteração das propriedades vitais. É um desvio interior à vida. Não se trata de uma enfermidade que ataca a vida, opondo vida e doença como antes se opunham vida e morte, mas só se pode falar de uma vida patológica. Os fenômenos patológicos passam a ser compreendidos sob o pano de fundo da vida, e não de uma essência nosológica qualquer. “A vida, diz Foucault, com suas margens finitas e definidas de variação, vai desempenhar na anatomia patológica o papel que a ampla noção de natureza exercia na nosologia: o fundamento inesgotável, mas limitado em que a doença encontra os recursos ordenados de suas desordens”². Assim se entende por que a descoberta dos processos vitais como conteúdo da doença a tenham transformado em “forma patológica de vida”.
Georges Canguilhem também mostrou, embora por vias muito diferentes, como o século XIX contestou a teoria ontológica da doença³. Broussais, segundo ele, teria demonstrado como os fenômenos da doença coincidem com os da saúde, do qual só diferem pela intensidade, postulando assim a identidade real dos fenômenos vitais normais e patológicos. Os estados mórbidos não passariam de prolongamentos dos limites de variação próprios ao organismo normal. Canguilhem nota, entretanto, que a escola de Broussais, embora derivando a patologia da fisiologia, não conseguiu dar uma definição objetiva de “normal”, considerando-a tão-somente um fato. A doença como excesso ou falta, como variação em torno de um parâmetro tido por normal, traía a dificuldade maior desta concepção. Sua definição positiva de normal — “quando os órgãos funcionam com toda regularidade e uniformidade de que são capazes” — supõe, segundo Canguilhem, um ideal de perfeição que não é totalmente estranho à ontologia que Broussais pensava refutar.
Seja como for, o postulado básico da homogeneidade qualitativa entre saúde e doença vingou e marcou o curso das teorias subsequentes. Claude Bernard, por exemplo, escreveu: “A saúde e a doença não são dois modos que diferem essencialmente, como talvez tenham pensado os antigos médicos e como ainda pensam alguns. É preciso não fazer da saúde e da doença princípios distintos, entidades que disputam uma à outra o organismo vivo e que dele fazem o teatro de suas lutas. Isso são velharias médicas. Na realidade, entre essas duas maneiras de ser há apenas diferenças de grau: o exagero, a desproporção, a desarmonia dos fenómenos normais constituem o estado doentio”.
Claude Bernard foi ainda mais longe em seu esforço explícito de “reconhecer em tudo a continuidade dos fenómenos”. Estabeleceu a continuidade entre a vida e a morte, a matéria orgânica e a inerte, a identidade material de todos os fenómenos físico-quí- micos, chegando a postular a identidade fisiológica das funções correspondentes no vegetal e no animal. Deixo de lado as conclusões mais gerais de Claude Bernard acerca da constituição do Universo e de suas leis. Interessa-me que sua época pensou a doença como um grau da saúde, resultando das funções permanentes do organismo.
Canguilhem vai tentar provar que essa concepção da doença como gradação da saúde encobre a originalidade radical do estado mórbido. A doença, dirá ele, e aí já avança suas ideias próprias a respeito do assunto, concerne ao organismo e ao ser consciente como uma totalidade viva, e portanto constitui, para o doente, uma nova forma de vida. É nisso que reside sua especificidade. Quando se define o patológico como uma variação quantitativa do normal, este “mais” e “menos” não têm uma significação puramente quantitativa, mas qualitativa. É nesse sentido que Canguilhem contesta as conclusões que Leriche extrai de seu belo princípio — com o qual Canguilhem está de acordo — de que “a saúde é a vida no silêncio dos órgãos”. Desse princípio Leriche infere que a saúde é, para o indivíduo, a inconsciência de seu próprio corpo. E que a doença é a disfunção desse organismo, da vida dos tecidos, mas não desse homem concreto, consciente de uma situação sofrida. Segundo Canguilhem, nesta concepção prima a fisiologia, não a existência alterada do doente.
Canguilhem vai buscar na psicopatologia novos elementos para enriquecer o debate e expor sua teoria sobre o patológico. Concorda com Goldstein de que a norma é sempre individual — e não social, estatística, científica ou outra. A definição de Henry Ey, apoiado em Minkowski — de que o normal seria o máximo da capacidade psíquica de um ser — não o satisfaz. Pois a preocupação de quem se sente doente é sair de um abismo de impotência ou de sofrimento, cujo limiar é sempre uma avaliação que parte do próprio doente. A conclusão não é que o “normal” é relativo, e portanto uma noção vaga e imprestável.
Normal, dirá Canguilhem, deve entender-se como normativo. Normativo é o que institui normas. Para Canguilhem, mais do que o homem, é a própria vida que institui suas normas, que são ao mesmo tempo condições de sua preservação e luta contra os perigos que a ameaçam. Há portanto uma normatividade biológica, que significa: a vida dita as normas que lhe permitem manter-se e crescer, e dita novas normas (mórbidas, por exemplo) quando se vê ameaçada.
O normal não é um fato, conclui o autor. É um valor. Mas não um valor estatístico ou social; é um valor estabelecido pela vida em sua própria defesa e interesse. “Viver é, mesmo para uma ameba, preferir e excluir.” Canguilhem leitor de Nietzsche?
Em seu belo estudo, Canguilhem estabelece a distinção entre anomalia, anormal e patológico. Reterei apenas as conclusões, apesar do interesse inegável da análise etimológica feita pelo epistemólogo francês. A anomalia diz respeito a um fato, o da variabilidade da vida. Os seres comportam irregularidades, no sentido positivo de diferenças. O anormal se refere a um valor instituído pela vida, no sentido da normatividade definido acima. Anormal seria, neste sentido, aquilo que está fora das regras instituídas pela vida em seu próprio interesse e benefício. E o patológico implica pathos, “sentimento concreto de sofrimento e impotência, sentimento de vida contrariada”.
Como se vê, a anomalia não é necessariamente patológica, já que a diversidade não implica obrigatoriamente sofrimento. O anormal tampouco é forçosamente patológico. Inversamente, porém, toda doença é anormal.
A distinção pode-se dar com outros critérios. A anomalia se manifesta no espaço, na relação com o outro, com o diferente, enquanto a doença se dá numa sucessão cronológica em que algo é interrompido na relação do indivíduo consigo mesmo e com os outros. O portador da anomalia não pode ser comparado consigo mesmo, suas características são congénitas; já o doente tem sempre um passado cujo curso a enfermidade veio desviar.
Que concepção de saúde se pode extrair dessas observações? O ideal de saúde seria a capacidade de instituir novas normas, mesmo orgânicas, na flutuação das situações. O homem normal seria o ser normativo, e à fisiologia caberia, mais do que procurar definir objetivamente o normal, reconhecer a normatividade original da vida. Daí que o ser-doente (Krankseiri), como diz Goldstein, só pode referir-se a uma norma individual. A doença também é uma norma de vida, mas inferior, porque é incapaz de se modificar diante de qualquer alteração das condições em que foi estabelecida. O ser doente é aquele que perdeu a capacidade de instituir novas normas, diferentes, para condições novas; não tolera desvio e é incapaz de adaptar-se. Esta também é a concepção de Devereux sobre anormalidade: é anormal aquele que é incapaz de se adaptar a novas condições de vida e de se fixar novas normas de vida. O doente é doente não por ser desviante, mas porque só pode admitir uma única norma. O doente é incapaz de ser normativo, nisso reside sua enfermidade.
Que a saúde se mede pela normatividade (capacidade de se fixar novas normas) significa também que a vida não está preocupada só em defender-se, limitando-se às normas que ela própria instituiu em condições determinadas, mas expandir-se, enfrentando riscos e nesse enfrentamento instituindo novas normas. A saúde não é só capacidade de evitar catástrofes, mas também a de criar novas normas arriscando a própria vida. Há aí uma exuberância, criatividade e generosidade vitais que nos distanciam irremediavelmente da noção de saúde como estabilidade. O normal é aquele que sente que é mais do que normal, que pode arriscar porque tem a plasticidade necessária para fazê-lo. Faz parte da saúde, diz Canguilhem, poder abusar da saúde. É o doente, e não o são, que economiza, pois ele tende a reduzir suas normas e estabilizar suas condições de vida. A saúde seria a margem de tolerância às infidelidades do meio.
As conclusões de Canguilhem parecem resolver muitos problemas e poderiam dar à etnopsiquiatria bases sólidas, não fosse um obstáculo de ordem epistemológica que mereceria alguma reflexão. Consiste no fato de que Canguilhem pensa conjuntamente a patologia orgânica e a mental. A continuidade inconteste que ele parece supor entre elas o faz estender sua concepção de saúde indiscriminadamente tanto ao domínio do corpo quanto do psíquico. Michel Foucault fez a crítica implacável deste pressuposto “metapatológico” (embora sem dirigi-la explicitamente a Goerges Canguilhem) nos seguintes termos: “Uma patologia unitária que utilizasse os mesmos métodos e conceitos nos domínios psicológico e fisiológico é, atualmente, da ordem do mito”. Foucault justifica essa afirmação em três níveis de argumentação, dos quais reterei apenas o último, que me parece o mais relevante na ordem das razões do autor, bem como o mais pertinente ao curso desse trabalho.
A tese de Foucault consiste no seguinte: enquanto a patologia orgânica permite isolar a totalidade fisiológica de um indivíduo, a psicologia de um sujeito é incompreensível fora das práticas do meio em relação a ele. Por exemplo, o internamento, a tutela, o investimento médico, social e imaginário maciço dirigido sobre as histéricas do século passado não só viabilizaram, mas também produziram a sugestionabilidade espetacular de que se tem notícia, e que a evolução ulterior das práticas médicas viu desvanecer-se. A modelagem histórica da doença mental leva à seguinte conclusão: “Não se pode, então, admitir prontamente nem um paralelismo abstrato, nem uma unidade maciça entre os fenômenos da patologia mental e os da orgânica; é impossível transpor de uma para outra os esquemas de abstração, os critérios de normalidade ou a definição de indivíduo doente. A patologia mental deve libertar-se de todos os postulados de uma “metapatologia”… É preciso… analisar a especificidade da doença mental, buscar as formas concretas que a psicologia pôde atribuir-lhe (e) depois determinar as condições que tornaram possível este estranho status da loucura, doença mental irredutível a qualquer doença”4.
Ou seja, as “doenças do espírito” não podem ser pensadas no interior de uma reflexão sobre a saúde e a doença em geral, como querem Canguilhem ou Devereux, para ficar nos autores que abordamos até agora nesses dois apêndices, mas devem ser referidas ao entorno histórico que as produziu. Nada pode ser dito sobre a doença mental sem que antes ela seja devolvida ao seu lugar de origem — a história. Pois a patologia mental não é um dado da natureza, mas um produto histórico. Não se trata de buscar nas condições sociais e culturais os elementos que concorrem para a irrupção efetiva de tal ou qual doença mental, mas, num recuo epistemológico, verificar sob que condições se constituiu historicamente uma entidade reconhecida e designada como doença mental.
Para Foucault não existe fato patológico em si, no sentido de um referente real equivalente à noção que o nomeia. Existem condições históricas que possibilitam, a um só tempo, o fato psicológico e sua interpretação. Doença mental, psicologia, personalidade — todas essas noções só adquirem sentido, não quando referidas a conteúdos tidos por objetivos e reais, mas quando integrados no sistema histórico das condições a partir do qual eles são possíveis5. Foucault é categórico: a psicopatologia é um fato de civilização. Se a psicologia pôde mostrar as formas de manifestação da doença, ela foi incapaz de revelar as condições que tornam possível o fato patológico e onde ele tem suas raízes.
Ao invés de buscar a realidade da doença mental — seja através da analogia com a patologia orgânica (especulando no abstraio sobre a natureza da doença), seja nas psicologias (procurando o substrato objetivo do qual a doença mental seria a manifestação) — Foucault vai escolher o caminho menos comprometido com as verdades “científicas” e vai abraçar o único a priori capaz de fazer aparecer a constituição da doença mental em suas relações com a loucura — isto é, a História.
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1. Foucault, O Nascimento da Clínica, trad. Roberto Machado, 2.a ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1980, p. 8, de onde foi extraído o essencial desse capítulo.
2. Idem, caps. XVIII e ss.
3. Georges Canguilhem, O Normal e o Patológico, trad. Maria Thereza Redig de C. Barrocas, 2.a ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1982, no qual se inspiram as próximas páginas.
4. Foucault, Doença Mental e Psicologia, op. cit., pp. 17 a 21.
5. Pierre Macherey comenta esse aspecto em Recordar Foucault, op. cit., sobretudo pp. 54-55.
FONTE: In: Da clausura do fora ao fora da clausura: Loucura e Desrazão, Brasiliense, 1989.