RESUMO
O objetivo do presente artigo foi apresentar aspectos das questões raciais no Brasil e sua atualidade na Psicologia, destacando os efeitos do racismo sobre o corpo dos sujeitos negros. Assim, a partir de um desenvolvimento ao que concerne o racismo, a memória e a subjetividade humana, traçaram-se perspectivas para um trabalho analítico que estivesse alinhado aos Direitos Humanos e ao seu tempo, ou seja, que contribuísse através da Psicologia para uma clínica antirracista. Para os devidos fins, utilizaram-se como referência teórica autores como Lélia Gonzalez, Frantz Fanon, Neusa Santos Souza, Isildinha Baptista Nogueira, Silvio de Almeida, Maria Lúcia da Silva, e também para pensar a potência do impossível e do futuro para o inconsciente, utilizaram-se como bases a psicanálise de Félix Guattari, Vladimir Safatle e o pensamento de Gilles Deleuze e Henri Bergson. Por fim, o artigo se encerra com as contribuições de Davi Kopenawa, líder dos povos originários Yanomami.
As discussões relacionadas às questões raciais no Brasil vêm se fortalecendo a cada ano no âmbito social: escolas, universidades, serviços de saúde, mídias, entre outras instituições. Ações antirracistas, atos e frentes de luta contra as desigualdades sociais e raciais se proliferam. Contudo, é inadmissível um país historicamente racista como o Brasil continuar negando o racismo, visto que as violências de Estado atualizam um passado escravocrata e mais uma vez produzem marcas no corpo, na memória, na história do sujeito negro. Ainda mais, é inadmissível que uma parcela significativa da população brasileira continue negando a ditadura econômica, civil e militar e seus efeitos presentes até os dias de hoje.
Antes de iniciarmos as reflexões acerca das questões raciais na Psicologia, na Psicanálise e no campo da Saúde Mental, gosta- ríamos de lembrar que na última década (2010 – 2020) perdemos importantes companheiras/os, assim como a socióloga e vereadora Marielle Franco (2018) e o psicólogo e militante da Reforma Psiquiátrica e da Saúde Mental no Brasil, Marcus Vinicius de Oliveira (2016), bem como outras militantes do movimento negro e lide- ranças dos povos originários. Essas pessoas foram assassinadas/ os pela violência de Estado, por um sistema que continua perseguindo aqueles/as que se prestam a lutar por uma sociedade mais justa e igualitária. Outro grande nome a ser lembrado é Jonathas José Salathiel da Silva, foi psicólogo, trabalhador na área de saúde pública e militante de movimentos populares que discutiam acerca das questões de raça e etnia, e que veio a falecer por questões de saúde. Sua trajetória também foi marcada pelos enfrentamentos à discriminação racial em nosso país e na Psicologia. Diante de uma luta de anos, ele foi um dos fundadores do Grupo de Trabalho sobre Psicologia e Relações Raciais em 2014, atualmente organizado como Núcleo de Psicologia e Relações Raciais, o qual foi
(…) Instituído no reconhecimento de que o racismo está presente nas relações sociais cotidianas, na necessidade de implicar a prática profissional e ciência psicológica com demandas das relações raciais na singularidade de cada pessoa, nas instituições e nas comunidades. O núcleo é responsável por assessorar e executar as decisões do CRP-SP em temas de defesa de direitos humanos relacionados ao compromisso ético-político e princípios éticos da psicologia; identificar e elaborar estratégias para a reflexão sobre o sofrimento causado pelo racismo e preconceito; executar ações de combate à discriminação racial contribuindo com o seu conhecimento para reflexão sobre o preconceito e para a eliminação do racismo e compreendendo que este atinge diversos grupos étnicos (CRP-SP, 2019, p. 13). A noção de transdisciplinaridade é uma aproximação dos campos com o objetivo de produção de um novo saber que supere a imobilidade das divisões dos especialismos disciplinares, não visando a uma estabilidade, porém, um processo de diferenciação cuja tendência não é o equilíbrio.
Embora essas violências estejam postas diariamente nas mídias, ainda existem aqueles que perguntam o que a Psicologia tem a ver com o racismo? Como produzir uma Psicologia antirracista? São questões que retornam e que precisam ser respondidas, tanto para quem desconhece nossa prática, quanto para repensarmos nossos caminhos de luta e cuidado no âmbito da Saúde Mental – sem esquecermos a história e os nomes que deixaram o legado desses combates.
A Psicologia é considerada uma das áreas fundamentais no enfrentamento do racismo e na redução das desigualdades raciais no país. Quando pessoas perdem o direito de pertencimento à sua cultura, como a população negra no decorrer da história colonial e escravista do Brasil, perpassam pelos seus corpos os efeitos psicossociais negativos dessa História. Neste sentido, a Psicologia enquanto ciência e profissão, em conjunto aos setores da sociedade, além de possibilitarem meios para potencializarem o sujeito, fortalecem os direitos humanos, contribuindo para a construção de instrumentos e mecanismos para o enfrentamento da violação dos direitos humanos em nossa sociedade.
Em 2002 o Conselho Federal de Psicologia (CFP) aprovou a Resolução n.º 018/2002 onde especifica e estabelece normas de atuação para psicólogas/os em relação à discriminação racial. Em 2022, essa resolução terá completos 20 anos, porém ainda havendo uma grande luta adiante por parte dos Sistemas de Conselhos para que o tema do racismo seja introduzido de fato no que tange o conjunto de problemas que são abordados pelas/os profissionais da área de Psicologia. No que concerne os artigos que integram a Resolução n.º 0 18/2002, fica atribuído às/aos psicólogas/os:
Art. 1º – Os psicólogos atuarão segundo os princípios éticos da profissão contribuindo com o seu conhecimento para uma reflexão sobre o preconceito e para a eliminação do racismo.
Art. 2º – Os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a discriminação ou preconceito de raça ou etnia.
Art. 3º – Os psicólogos, no exercício profissional, não serão coniventes e nem se omitirão perante o crime do racismo.
Art. 4º – Os psicólogos não se utilizarão de instrumentos ou técnicas psicológicas para criar, manter ou reforçar preconceitos, estigmas, estereótipos ou discriminação racial.
Art. 5º – Os psicólogos não colaborarão com eventos ou serviços que sejam de natureza discriminatória ou contribuam para o desenvolvimento de culturas institucionais discriminatórias.
Art. 6º – Os psicólogos não se pronunciarão nem participarão de pronunciamentos públicos nos meios de comunicação de massa de modo a reforçar o preconceito racial.
Em que pese uma das mensagens de maior destaque transmitida pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP) diga respeito a uma Psicologia que esteja presente todos os dias, em todos os lugares, contribuindo para a construção de uma sociedade mais democrática e igualitária, encontramos uma formação de psicólogas/os defasada ao que se refere ao nosso tempo. As áreas da clínica, social, organizacional, escolar, ainda são marcadas por epistemologias brancas, europeias e etnocentradas. Mas se a Psicologia enquanto Ciência e Profissão está intrinsecamente envolvida nas lutas contra as desigualdades sociais, os preconceitos e discriminações raciais entre outros temas de imensa importância, colocamos as seguintes questões para este trabalho: onde encontram-se as/os psicólogas/os negras/os na Psicologia? O racismo não possui relação com a Psicologia? O racismo não tem relação com a análise? Quais os efeitos do racismo nos sujeitos negros? Como podemos pensar uma clínica antirracista? Quais estratégias de cuidado e reparação das injustiças históricas? O que pode a memória? E para responder a essas questões ampliamos nosso olhar através de outros campos que dialogam com a Psicologia: como os campos da Antropologia, da Filosofia e da Psicanálise.
POLÍTICAS E PROJETOS
As instituições escolares são consideradas ambientes de formação social e psíquica de extrema importância ao que concerne o desenvolvimento humano, mas, ao mesmo tempo, ainda são parte de um ambiente repressivo, onde constata-se desde cedo a desvalorização/inferiorização das raízes negras, seja pela discriminação do cabelo, da pigmentação da pele, da cultura e, aqui acrescentamos as diferenças de gênero. Sabemos que ninguém nasce racista, contudo, em uma sociedade racista, o que se produz? Produzimos cada vez mais sujeitos assujeitados, atravessados por uma subjetividade colonizada e racista, por espaços onde se perpetuam lugares de poder, de violências e políticas de morte.
Há quase vinte anos, foi promulgada no Brasil a Lei 10.639 de 2003, a qual inseriu na Educação brasileira uma política pública de ação afirmativa que incluiu a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas instituições de ensino público e privado. Sob uma perspectiva histórica encontra-se um trabalho capaz de produzir uma diferença no que diz respeito à questão do negro e sua imagem socialmente construída através do âmbito negativo.
Em 2008, a partir da Lei nº 11.645, também foi incluído no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “Histórica e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” (destaque nosso). Uma inclusão tardia, mas necessária, pois não podemos pensar em possibilidades de lutas antirracistas sem estarmos aliados às questões dos povos originários. Todavia, apesar da existência destas importantes leis, até o presente momento não se encontra uma verdadeira efetivação dessa prática nas escolas em sua totalidade. Conforme aponta Kabengele Munanga (2015), além da criação de leis é preciso que seja realizada a fiscalização das mesmas.
Compreendendo a importância que possuem estes estudos para a nossa formação enquanto pessoas, por que este movimento antirracista ainda não apareceu nos currículos de formação em Psicologia? Apresentando brevemente um panorama da história da Psicologia na América Latina, em entrevista ao Conselho Regional de Psicologia, o psicólogo Edgar Barrero (2016) ressalta que desde a década de 1950 existe na Psicologia uma relação com interesses políticos e ideológicos ligados às potências imperialistas. Barrero (2016, s/p) acrescenta que essa aliança com o imperialismo norte-americano e europeu segue ocorrendo em diversas instituições, porém o que se obteve como resultado dessa aliança foi uma “impressionante colonização afetiva, intelectual e relacional cujo impacto mais atroz foi a submissão e a obediência cega frente aos centros de produção teórica dos Estados Unidos e da Europa”.
De acordo com a psicóloga social Lia Vainer Schucman (2020) a Psicologia brasileira, apesar das lutas concernentes aos Direitos Humanos, se envolveu timidamente com questões raciais no Brasil, posto que
Nas grades curriculares das faculdades de psicologia brasileiras raramente encontramos qualquer menção ao tema da raça e do racismo nas disciplinas obrigatórias. A formação de psicólogos ainda está centrada na ideia de uma humanidade universal e de um desenvolvimento do psiquismo humano igual entre os diferentes grupos racializados. Assim como as categorias de classe e de gênero são fundamentais na constituição do psiquismo humano, a categoria raça é um dos fatores que constitui, diferencia, hierarquiza e localiza os sujeitos em nossa sociedade (SCHUCMAN, 2020, p. 30-31).
Em meio a esses debates, outra importante ação afirmativa foi promulgada como política de Estado em nosso país, trata-se da Lei 12.711 de 2012, conhecida como Lei das Cotas, definindo que as Instituições de Ensino Superior vinculadas ao Ministério da Educação (MEC) e as Instituições Federais de ensino técnico de nível médio reservem 50% de suas vagas para as cotas. Isto se iniciou primeiramente em universidades e ensino técnico, posteriormente em serviços públicos. Cabe salientar que as ações afirmativas são um direito da população negra e indígena, conquistado pelos movimentos antirracistas que através das mobilizações populares lutaram e continuam lutando frente às políticas de Estado sob formas de dominação colonial e racista que se estruturam no corpo social desde o período da colonização, da escravização do povo negro e indígena.
Esses debates em constante movimento são de suma relevância, pois não envolvem somente a população negra e indígena, mas fundamentalmente a sociedade como um todo. Segundo Schucman (2020, p. 30) neste contexto das ações afirmativas sob um recorte racial, surgem questionamentos antigos acerca da população brasileira e suas identidades raciais, como, por exemplo: quem é branco e quem é negro? Mas para além da questão quem é branco ou negro, salientamos uma reflexão acerca do “pardo”, o qual trata-se do lugar onde colocam os negros de pele mais clara, quando não dizem “moreno” ou “branco encardido”. De acordo com Lélia Gonzalez (1980/2020, p. 35), antropóloga, filósofa e intelectual que revolucionou o movimentou negro, afirma que
os “casamentos inter-raciais” nada mais foram do que o resultado da violentação de mulheres negras por parte da minoria branca dominante (senhores de engenho, traficantes de escravos, etc.). Este fato daria origem, na década de trinta, à criação do mito que até os dias de hoje afirma que o Brasil é uma democracia racial. […] O efeito maior do mito é a crença de que o racismo inexiste em nosso País graças ao processo de miscigenação.
Segundo a psicóloga e psicanalista Maria Lucia da Silva (2021) a política de embranquecimento foi forjada através dessa violência e estupro de mulheres negras, e, portanto, as/os filhas/os nascidas/os dessa violência, foram nomeados não como negros, mas como “pardos”. Contudo, acrescenta que a nomeação “parda” não faz sentido, pois isto somente produz um enfrentamento entre nós, “como se o mais claro fosse menos negro”. Ressalta ainda um fato muito importante: no Brasil quanto mais escuro for a cor da pele, menos mobilidade o sujeito possui. Sendo assim, para alterar esse cenário em relação à mobilidade, é preciso realizarmos uma mudança em conjunto, coletivamente, e não o impedimento da mesma.
Em 2020 foi publicado o mais recente Atlas da Violência, elaborado em parceria entre o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Através da análise de dados de nível federal, este documento constatou que as desigualdades raciais no país obtiveram um aumento significativo entre negros e brancos, dado que a taxa de homicídios de negros no Brasil saltou de 34 para 37,8 por 100 mil habitantes no período entre 2008 e 2018, representando “um aumento de 11,5% para os negros, enquanto para os não negros houve uma diminuição de 12,9%” (Cerqueira, Bueno, et. al, 2020, p. 47). Vale salientar que, somente em 2018, “68% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras” (Ibidem, p. 38) e negros representaram um total de 75,7% das vítimas de homicídios.
Esses altos índices são alarmantes para a nossa sociedade como um todo, demonstram a realidade objetiva de um racismo estrutural que a cada 23 minutos assassina um jovem negro no Brasil, como afirmou o relatório da CPI do Senado realizada em 2016 acerca do Assassinato de Jovens. Trata-se do genocídio da população negra e de responsabilidade direta do Estado e da sociedade – desde suas ações às omissões. Portanto, diante desses dados, não há como continuar afirmando a falsa inexistência de racismo neste país, como também não é necessário dizer que é um grande desafio tornar visível essa violência racial, a qual é rejeitada pelo Estado e por parte da sociedade brasileira, visto que somente é possível recusar esses fatos aqueles que desejam se manter em seus lugares de privilégio, ou seja, o lugar da branquitude, sob sangue racista e colonizador.
RACISMO
O filósofo e jurista Silvio Luiz de Almeida traz ao público em sua obra Racismo Estrutural (2019) a seguinte tese: o racismo é sempre estrutural, uma vez que integra a organização econômica e política da sociedade. Mas antes de pensarmos em racismo estrutural, cabe descrever um pouco sobre o que é o racismo. Almeida (2019) explicita que “o racismo fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das formas de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea”, não se trata de uma patologia, mas de uma produção social. O autor apresenta três concepções do racismo: a individualista, a institucional e a estrutural. A concepção individualista é considerada aquela que concebe o racismo como uma “patologia” ou anormalidade, porém é limitada devido ao fato de seu olhar acerca do racismo estar direcionado somente para os aspectos comportamentais dos indivíduos, desconsiderando sua funcionalidade na lei e grupo social. Já a segunda concepção, a institucional, não limita o racismo aos aspectos comportamentais, mas dos efeitos gerados nas instituições, tal como as desvantagens e os privilégios com base na raça, sendo, portanto, os conflitos raciais parte das instituições. Dessarte, Almeida (2019, pp. 39-40) evidencia que “a desigualdade racial é uma característica da sociedade não apenas por causa da ação isolada de grupos ou de indivíduos racistas, mas fundamentalmente porque as instituições são hegemonizadas por determinados grupos raciais que utilizam mecanismos institucionais para impor seus interesses políticos e econômicos.”
Deste modo, na perspectiva do racismo institucional, o poder é tido como elemento central da relação racial. Ademais, além do racismo se apresentar de maneira sutil entre as instituições, está intrinsecamente ligado a um projeto político, econômico e social. E por fim, a terceira concepção enunciada pelo filósofo/jurista é a estrutural, esta demonstra como o racismo ultrapassa o âmbito da ação individual e “assim como a instituição tem sua atuação condicionada a uma estrutura social previamente existente […], o racismo que essa instituição venha a expressar é também parte dessa mesma estrutura. As instituições são apenas a materialização de uma estrutura social ou de um modo de socialização que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos. Dito de modo mais direto: as instituições são racistas porque a sociedade é racista” (ALMEIDA, 2019, p. 47).
A partir da ideia de racismo estrutural, o autor demonstra como o racismo se encontra nas cavidades políticas e econômicas de nossa sociedade.
Gonzalez (1980/2020, p. 55) foi uma intelectual que se abriu para diversos diálogos com a psicanálise, chegando a considerar o racismo tanto como aquilo que se constitui enquanto uma “sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira” quanto como “uma construção ideológica cujas práticas se concretizam nos diferentes processos de discriminação racial” e, “na medida em que o racismo, enquanto discurso, situa-se entre os discursos de exclusão, o grupo por ele excluído é tratado como objeto e não como sujeito. Consequentemente, é infantilizado, não tem direito a voz própria, é falado por ele. E ele diz o que quer, caracteriza o excluído de acordo com seus interesses e seus valores” (GONZALEZ, 1979/2020, p. 43/44).
Ao refletir sobre o lugar da mulher negra na força de trabalho e nas relações raciais, a autora destaca o quanto esse racismo cuja construção ideológica concerne a um conjunto de práticas que toma os corpos negros, se perpetua mesmo após a abolição da escravatura, isto é, se concretiza nos diferentes processos de discriminação racial, mantendo privilégios a determinados interesses (GONZALEZ, 1980/2020).
Compreender o racismo de maneira ideológica e estrutural em nossa sociedade e em nossa linguagem nos leva a ver além dos atos isolados entre indivíduos ou grupos. Consequentemente somos convocados a estar em uma outra posição frente ao combate do racismo que atravessa nossa cultura, instituições e corpos. Dito isso, ressaltamos que “por mais que calar-se diante do racismo não faça do indivíduo moral e/ou juridicamente culpado ou responsável, certamente o silêncio o torna ética e politicamente responsável pela manutenção do racismo” (ALMEIDA, 2019, p. 52). Logo, não basta apenas repúdios morais, mas é preciso implicar-se diariamente com práticas antirracistas, pois o racismo é uma máquina de desumanização, o qual se encontra em processo, e seu modo de funcionamento mais perversos se apresenta em seu caráter “invisível” (Almeida, 2019).
(E)FEITOS DO RACISMO
Isildinha Baptista Nogueira, psicóloga, psicanalista e pesquisadora dos efeitos do racismo no psiquismo das pessoas negras desde os anos 1990. Em sua tese O Significado do Corpo Negro (1998), demonstra que no decorrer do processo de desumanização e objetificação da população negra, esta sofre com a consequência de sentir na pele o impedimento do processo de constituição da individuação de seus sujeitos, visto que lhes foi impossibilitado o direito de identificação com os outros nas relações sociais. A autora destaca que ao desumanizar os negros, a instituição da escravidão construiu um lugar que os aproximavam dos animais e das coisas, sendo objetificados pelos brancos, os quais eram os únicos indivíduos considerados humanos no período colonial, mantendo uma fantasiosa ideia antropocêntrica em funcionamento. Segundo Nogueira (1998, p. 34) diante do cenário que lhes era imposto, “a única esfera de identificação possível seria com os outros negros, todos identificados entre si e pela exterioridade social como não-indivíduos sociais”, uma vez que eram tratados como objetos, coisas, mercadorias.
Em 1888 com o advento da abolição da escravatura e a constituição da República, o direito juridicamente estabelecido aos cidadãos foi estendido à população negra. Nogueira (1998, p. 34) coloca uma importante questão em jogo: “como inscrever-se, ao nível das representações, nesse lugar social se, até “ontem”, estava-se excluído dele?”.
De acordo com Gonzalez (1980, p. 473) “as formas de dominação e exploração não acabaram com a falsa abolição, mas simplesmente se modificaram”. Este período marca a fase de avanço do capitalismo, em que foi concedido alguns direitos em troca da mão de obra do trabalhador livre, sem-terra, e que buscava lugar para morar e comer, logo precisava vender-se de algum modo ao mercado para sobreviver. Nesse sentido, mesmo após a abolição da escravatura, a população negra adquire “o estatuto jurídico de cidadão, portanto, o reconhecimento de seu lugar de indivíduo social”, mas “não pôde, por outro lado, identificar-se com esse lugar no plano socioeconômico” (NOGUEIRA, 1998, p. 35).
Uma das grandes consequências impostas pelo racismo estrutural, foi a introjeção de uma identificação negativa diante de seus iguais, dado que na sociedade brasileira ainda não existia espaço para o sujeito negro emergir, senão o lugar de um passado-presente insuportável, o qual seria necessário recalcar, pois entre ocupar um não-lugar e ser visto como objeto e não como sujeito, o que lhe restava era a marginalidade (Nogueira, 1998). Ao buscar uma saída, como tentativa de sobrevivência e um modo de responder a esse horror que lhe atormentava, “o negro desenvolve uma identificação fantasmática com a classe dominante, cujo emblema é o ideal imaginário da brancura” (NOGUEIRA,1998, p. 36). Em 1952, através da publicação de Peles Negras, Máscaras Brancas, o psiquiatra martinicano Frantz Fanon, descreve esse racismo a partir do breve relato acerca do branco que colocava o negro em determinado lugar, ou seja, em um lugar de coisa.
Toni Morrison (2021), a primeira mulher negra a receber o Prêmio Nobel de Literatura em 1993, aponta que o fascismo é irmão gêmeo do racismo, sendo dois incapazes de produzir algo novo, porém práticos em reproduzir o medo, a negação e a capturada da potência, das forças de suas vítimas, despossuindo-as de uma vontade de lutar. Entretanto, para além desses elementos que mantêm vivos tanto o fascismo quanto o racismo em nossa sociedade, não podemos deixar de destacar o sistema capitalista —sistema que vive da exploração de nossas potências e recursos naturais, como um dos pilares da destruição da vida. Segundo Morrison (2021, p. 5) “o gênio do fascismo reside no fato de que qualquer estrutura política pode abrigar-lhe o vírus e quase qualquer país desenvolvido pode se tornar um hospedeiro apropriado. Fascismo envolve ideologia, mas, no fundo, trata-se mesmo é de propaganda — propaganda pelo poder”.
Fanon (1952/2008, p. 89) afirma que todas as pessoas pertencentes a um determinado país são responsáveis pelos atos perpetrados em nome da nação. O fascismo e o racismo como construção social está intrinsecamente ligado à produção de subjetividade, sendo capaz de se atualizar em cada um(a) de diversas maneiras, em diferentes graus. Não há como recusar o fato de a sociedade brasileira estar sendo uma sociedade racista, e em vista disso torna-se necessário não apenas que todos se coloquem contra o racismo, mas que exerçam em suas vidas cotidianas um modo de vida antirracista/antifascista. Esse é o exercício de uma vida, pessoal e extrapessoal, o qual deve se proliferar por todos organismos.
(RE)CONSTRUÇÃO DE VIDA: EFEITOS DE LUTA
a) tornar-se branco para que(m)?
Em Tornar-se Negro (1983), a psiquiatra e psicanalista Neusa Santos Souza, escreve que a construção da emocionalidade do sujeito negro brasileiro está ligada à sua história de ascensão social. Como foi dito anteriormente, por uma imposição histórica e social marcada desde o período da escravidão, a imagem dos negros foi sendo definida como negativa, inferior e submissa na sociedade. Desse modo, a construção de sua autoimagem foi se efetuando através do modelo de identidade do branco. Assim, a ascensão social do negro seguia pelo viés da branquitude¹, visto que a instituição escravagista definiu o negro como raça, definiu seus modos de vida, posição na sociedade e “instituiu o paralelismo entre cor negra e posição social inferior” (SOUZA, 1983, p. 19). Conforme a autora relata, a história da ascensão social do negro brasileiro é “a história de sua assimilação aos padrões brancos de relações sociais. É a história da submissão ideológica de um estoque racial em presença de outro que se lhe faz hegemônico. É a história de uma identidade renunciada, em atenção às circunstâncias que estipulam o preço do reconhecimento ao negro com base na intensidade de sua negação” (SOUZA, 1983, p. 23).
Para Souza (1983), nessa história onde o mito da democracia racial ganhava espaço, o negro buscava ascender e integrar o mundo branco e competitivo, pois ao incorporar-se a outras classes sociais, era exaltado pelos outros e ao mesmo tempo mantinha sua sobrevivência. Fanon (1952/2008) já constatava que neste cenário, o destino imposto aos negros era um destino branco, lhe restando somente a tentativa em tornar-se branco para sobreviver. Mas como sair desse caminho? Conforme Fanon (1952/2008), é preciso uma verdadeira desalienação do negro, o que implica em “uma súbita tomada de consciência das realidades econômicas e sociais”.
b) efeitos na linguagem: poder
Segundo o psicanalista Jacques Lacan “só há ser na linguagem”. Assim, a partir dessa leitura, tudo que se edifica em nossa humanidade está fundado na linguagem e como diz Fanon (1952/2008, p. 33) “um homem que possui a linguagem possui, em contrapartida, o mundo que essa linguagem expressa e que lhe é implícito”, logo, para uma direção de tratamento antirracista é de suma importância pensarmos os efeitos do racismo e do colonialismo em nossa linguagem. E desse modo, Fanon é um dos primeiros do campo da saúde mental a nos escrever acerca desses efeitos desde a linguagem. Como exemplo, ele traz o caso de um negro antilhano que submetido a esse sistema, acreditava que se tornaria um homem somente quando se apropriasse da língua francesa, pois ao falar o francês “corretamente” também poderia entrar no mundo branco e, talvez, isto lhe possibilitaria ser aceito socialmente por essa determinada cultura. Mas, por outro lado, na medida em que sentimos o medo do julgamento social de determinada cultura, sentimos de maneira brutal em nossos corpos os efeitos de imposições como essas, as quais geram o medo de falar o idioma de maneira equivocada, a timidez em falar em público, entre outras sintomáticas. Além disso, Fanon (1952/2008) também descreve a situação do povo colonizado que buscava escapar desse lugar através da rejeição de sua raça e de seu território. O antigo ato de ir em direção à metrópole como solução dos problemas que os afligem ainda é um fator muito enraizado e presente no imaginário social brasileiro, principalmente quando destacamos a questão de classe no mundo neoliberal.
c) efeitos na linguagem: território
Segundo Fanon (1952/2008) “o negro não pode se satisfazer no seu isolamento”, pois “para ele só existe uma porta de saída, que dá no mundo branco”, o que o negro encontra é na verdade um muro branco, uma bolha que o sufoca, uma estrada sem saída, mesmo que em algum momento de seu percurso receba atenção do branco. Contudo, neste processo, um embranquecimento interior se constrói na vida do sujeito negro afetado pelo racismo, pela branquitude que insiste em enfiar goela abaixo a ideia de que “ser branco é como ser rico, como ser bonito, como ser inteligente” (FANON, 1952/2008, p. 61).
CONSCIÊNCIA, MEMÓRIA & INCONSCIENTE
a) memória, história e apagamento
Destacamos aqui o 6º encontro do Aquilombamento nas Margens², no qual Silva (2021) falou acerca de uma clínica antirracista – podemos incluir aqui uma escrita (de si) antirracista -, e além disso, sobre a memória e a importância em colocar em movimento o que não teve espaço para aparecer. Neste ponto uma questão que não cessa de existir: o que fizeram com as negras/os neste país? Sabemos que no período da escravidão apagou-se as possibilidades, de viver, existir, morar e aparecer no corpo social. Porém, por mais que insistam até os dias atuais, não conseguiram apagar totalmente, pois sempre restou a resistência para continuar lutando por um outro mundo possível. Gonzalez (1979/2020, p. 50) lembra que o povo negro “sempre buscou formas de resistência contra a situação subhumana em que foi lançado” e que segundo a “historiadora negra Maria Beatriz Nascimento, já em 1559 se tem notícia da formação dos primeiros quilombos, essas formas alternativas de sociedade, na região das plantações de cana do Nordeste” (Gonzalez, 1979/2020, pp.50-51).
Em que pese a resistência do povo negro esteja presente até os dias atuais, ainda temos como contraponto a violência policial, militar e racista cada vez mais visível em nosso país. Mas, como se não bastasse séculos de escravidão, negros continuam sendo colocados em camburão.
b) memória ativa
Propomos aqui uma memória que não se aprisione ao passado, mas uma memória ativa, uma memória devir, uma memória que exista em processo, e que assim possa se desterritorializar da alienação imposta pela branquitude. O filósofo Achille Mbembe em Crítica da Razão Negra (2018) sustenta a ideia de que a memória, a lembrança, a nostalgia e o esquecimento, são constituídos por um entrelaçamento de imagens psíquicas. De acordo com o autor, é necessário observarmos o “jogo de símbolos e a sua circulação, os desvios, as mentiras, as dificuldades de articulação, os pequenos atos falhos e os lapsos, em suma, a resistência à admissão” (MBEMBE, 2018, p. 186).
Para pensar a categoria de memória destacamos também o pensamento de Gonzalez, a qual acrescenta neste debate a noção de consciência. Em síntese, a consciência é descrita como lugar de desconhecimento, encobrimento, alienação, etc., e a memória como “o não saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção” (GONZALEZ, 1980/2020, p.78). De acordo com Gonzalez a “consciência exclui o que a memória inclui”, portanto, a primeira encontra-se em um lugar de rechaço, rejeição, interdição, visto que se expressa tanto como discurso dominante quanto como seus efeitos em determinada cultura, chegando a cobrir a memória com sua verdade. Porém, podemos considerar que as formações de inconsciente (lapsos, sonhos, chistes, atos falhos) se expressam como uma memória em ato, ou seja, “ela fala através das mancadas do discurso da consciência” (GONZALEZ, 1980/2020, p.79), em que pese esse discurso dominante e branco não cesse de produzir esquecimento, de deslocar a memória e ancestralidade de um povo. Cabe realçar que Gilles Deleuze através das ideias de Henri Bergson, descreve “que a memória era uma função do futuro, que a memória e a vontade eram tão-só uma mesma função, que somente um ser capaz de memória podia desviar-se do seu passado, desligar-se dele, não repeti-lo, fazer o novo” (DELEUZE, 1968/1997, p. 114). Nesse sentido, perguntamos aos que insistem em nos desviar da memória: como pensar o presente e futuro sem o passado? Como fazer o novo, o diferente, se o passado já é rejeitado desde o aqui e agora? Consideramos que se o passado “não passa”, de algum modo vive se reatualizando em nós, em nossos modos de vida, e isto ocorre devido ao fato de existir em uma insistente desvalorização da potência da memória. Mas, por mais que lutem em tentar apagá-lo, isso não deixará de aparecer, emergir.
c) negritude
O poeta e político Aimé Césaire é tido como o inventor da palavra “negritude”, porém, considera que este invento foi possível somente com a contribuição de muitos outros intelectuais. Para Césaire (1980, s/p), a negritude diz respeito “aos grupos humanos que sofreram as piores violências da história, aos grupos que sofreram e frequentemente ainda sofrem por serem marginalizados, insultados e oprimidos”. O autor destaca que “a negritude não é da ordem do sofrer e do submeter-se”, ela resulta de uma atitude ativa da vida, ela é recusa da opressão, é luta contra a desigualdade. Como consequência, a negritude nos leva a nós mesmos: “foi depois de uma longa frustração, foi a apreensão por nós mesmos, do nosso passado e através da poesia, do imaginário, do romance e da obra de arte a fulguração intermitente do nosso possível devir” (CÉSAIRE, 1980, s/p.).
POR UMA CLÍNICA ANTIRRACISTA
a) tornar-se negro: uma aposta clínica e política no impossível
Segundo Souza (1983, p. 78) um ideal branco é imposto ao negro e, como consequência, produz uma ferida narcísica no sujeito negro devido ao fato de não poder alcançar tal ideal. Para a autora, a psicopatologia do negro brasileiro é constituída através desta ferida narcísica tal como os modos de lidar com a mesma. Mas o que isto gera no negro? Podemos destacar alguns efeitos, tais como; “sentimento de culpa, inferioridade, defesa fóbica e depressão, afetos e atitudes que definem a identidade do negro brasileiro em ascensão social como uma estrutura de desconhecimento/reconhecimento” (SOUZA, 1983, p. 78). Aliados à Souza, podemos afirmar que essa identidade produzida pelos efeitos da branquitude é uma das maiores violências e contradições dos interesses históricos e psicológicos do negro. Em Tornar-se Negro (1983), a psicanalista nos aponta o campo dos possíveis, uma possibilidade frente ao impossível, da construção de uma nova identidade no sujeito negro.
De acordo com Vladimir Safatle (2020) o impossível está ligado ao que não pode se inscrever, aquilo que não pode existir, no entanto, é no âmbito do impossível que encontramos a força motora para transformar mundos, romper com paradigmas e estruturas, pois “tudo que é decisivo para nós um dia foi impossível”. É no âmbito do impossível que se apresenta um processo de deslocamento na experiência analítica, principalmente ao que concerne à sua dependência aos horizontes ideais normativos, pois “(…) o que a análise pode fornecer não é bem-estar ou realização de um ideal de conduta que seria a expressão de alguma noção de progresso. O que ela oferece é a viragem da impotência imaginária ao impossível. Ao final, é isso que o ato analítico pode fazer: levar o sujeito a passar da impotência ao impossível” (SAFATLE, 2020, p. 111). Desse modo, nossa aposta ética e clínica diante do impossível nada mais é que a aposta na tomada de potência, na possibilidade em inventar-se de novo, criar uma nova identidade, apropriar-se da aliança entre seu desejo e inconsciente.
Conforme aponta Fanon (1952/2008, p. 93), enquanto psicanalista, é preciso fazer emergir um sujeito que possa se desterritorializar do “embranquecimento alucinatório” e diante desse exercício um agir, um movimento que possa contribuir para mudar as estruturas sociais, transformar mundos.
Segundo Félix Guattari (1991/1993) o estatuto do passado na análise trata-se de algo da ordem de um compromisso cartográfico inevitável, pois a fala que passa pelo consultório é produzida, e, por isso tanto ouvir como falar de determinado passado é se interessar pelo outro, sem que instaure uma relação de opacidade, que impeça de captar pontos de singularidade, pois se a anamnese tornar-se explicativa, causalista, ela produzirá de certa forma, apenas uma relação de alienação. Contudo, nesse processo clínico, político e antirracista, se voltamos ao passado, onde foi se criando as crostas que hoje deixam marcas na subjetividade juntamente a uma certa relação de alienação, não se trata de permanecer na situação anterior, mas de nos impulsionarmos para um futuro, dado que uma análise não se trata de um processo voltado ao passado/presente, mas a um futuro, um porvir, ou seja, visto que o inconsciente tem uma função de futuro, logo, uma análise forja um outro mundo possível. Portanto, trata-se de inventar um lugar onde possamos nos deslocar de determinada alienação e diante desse processo, considerar que a questão para cada um será “a de encontrar aquilo que permita a revelação de linhas de fuga, de linhas de processualidade” (Guattari, 1991/1993, p. 12).
b) dar palavra à vida / dar vida à palavra
Para Grada Kilomba (2016), no que se refere ao racismo, a boca, órgão que simboliza a fala e a enunciação, se torna um órgão de opressão, pois ao enunciar determinadas verdades este órgão é silenciado, controlado e colonizado. Como falar diante dessa violência do sistema capitalista, colonial e racista? Segundo Kilomba (2016) ser ouvida vai para além da dialética entre falar e ouvir, uma vez que se fala quando há um outro que lhe ouça. Contudo, a autora salienta que ser ouvida está ligado à ordem do pertencimento, pois aqueles que pertencem são ouvidas/os e vice-versa. Logo, a máscara branca e colonial mantém a máquina racista funcionando para que negras/os não falem e ao mesmo tempo não pertençam, apenas ouçam a voz da razão branca e ocidental.
Nesse sentido, consideramos que uma das contribuições para uma clínica e prática antirracista que permita a desalienação do negro através da escuta advém de Fanon (1952) e Souza (1983) por nos demonstrar o exercício que equivale à tomada de consciência da relação política que existe entre a língua e o coletivo, dado o fato de que há um racismo que provoca inibições, desconexões de si com o mundo, principalmente retiram do lugar da diferença. Desse modo, é de suma importância incluir no campo social as diferenças de maneira positiva, e assim permitindo que seja possível construir uma ética do diferente, da diferença, e não modos de vida baseados na indiferença, mas ao mesmo tempo inventando um outro possível, desconectando-se dos complexos produzidos e herdados do colonialismo. Em concordância com Souza (1983, p. 77) ao deslocar o negro da imagem alienada da qual se reconhece, este poderá tomar posse da consciência do processo ideológico que o atravessa e desse modo, haverá a possibilidade em inventar, fabricar, forjar e se implicar em uma nova consciência “que reassegure às diferenças e que reafirme uma dignidade alheia a qualquer nível de exploração”. Por conseguinte, a autora afirma que “ser negro não é uma condição dada, a priori. É um vir a ser. Ser negro é tornar-se negro” (SOUZA, 1983, p. 77).
Souza (1983, p. 26) aponta que “incrustrado em nossa formação social, matriz constitutiva do superego de pais e filhos, o mito negro, na plenitude de sua contingência, se impõe como desafio a todo negro que recusa o destino da submissão”, uma linguagem colonial atravessa e dilacera, e se vê diante do desafio de reconhecer-se e eliminar a visão do inimigo que o aprisiona, que se apodera de sua cultura e se apropria de seu corpo, de sua vida. Sendo assim, a autora salienta que “obviamente cabe a negros e não-negros a consecução desse intento, mesmo porque o mito negro é feito de imagos fantasmáticas compartilhadas por ambos. […] enquanto objeto da opressão, cabe ao negro a vanguarda desta luta, assumindo o lugar de sujeito ativo, lugar de onde se conquista uma real libertação” (SOUZA, 1983, p. 26).
Deste modo, ressaltamos que, como proposto por Souza (1983, p. 77), a construção de uma identidade negra trata-se de uma tarefa ética e política, a qual exige como condição uma desterritorialização, um para além de Édipo, uma recusa dos modelos das figuras parentais e sociais que lhes ensinaram a vestir uma máscara branca para ascenderem socialmente. É preciso desrostificar³, mas também criar para si um rosto que lhe seja próprio, respirável, sem demais imposições coloniais. Contudo, esta é uma tarefa, um exercício de uma vida.
Fanon (1952/2008, p. 95) salienta que “o negro não deve mais ser colocado diante deste dilema: branquear ou desaparecer, ele deve poder tomar consciência de uma nova possibilidade de existir; ou ainda, se a sociedade lhe cria dificuldades por causa de sua cor” e se no decorrer de seu trabalho analítico encontrar nos sonhos de seus pacientes “a expressão de um desejo inconsciente de mudar de cor”, seu “objetivo não será dissuadi-lo, aconselhando-o a “manter as distâncias”; ao contrário” seu objetivo será, uma vez desmistificadas as causas, “torná-lo capaz de escolher a ação (ou a passividade) a respeito da verdadeira origem do conflito, isto é, as estruturas sociais” (FANON, 1952/2008, p. 95-96). Mais consistentemente ele declara que “o problema negro não se limita ao dos negros que vivem entre os brancos, mas sim ao dos negros explorados, escravizados, humilhados por uma sociedade capitalista, colonialista” (FANON, 1952/2008, pp. 169-70).
A neutralidade em nosso campo é uma das maiores falácias que perpetuam negligências e violências de toda ordem e, cabe a nós que atuamos no âmbito da saúde mental, não somente afirmar que somos contra o racismo, mas exercer diariamente uma prática de vida antirracista/antifascista. Trata-se de visar ações que proporcionem o fim dessas violências e desigualdades, e pensando no âmbito da clínica, na escuta de si, tudo o que foi apresentado até estas linhas finais de nosso texto, possui relação com a escuta, com a percepção da realidade, com a compreensão histórica, social e política dos processos internalizados.
David Kopenawa Yanomami (2020), um dos membros dos povos originários dessas terras tupiniquins, não cansa de repetir que o homem branco trouxe a doença. E, com estes importantes aliados, percebemos que a pior de todas as doenças que ainda existe em nossos territórios e que chegamos a sentir em nossos corpos é a colonização. Então, em meio a essa doença, que seja feita uma constante revolução em nossa prática, a começar por ampliar a escuta clínica, analítica e o olhar acerca dos efeitos psicossociais do racismo, principalmente pelo fato de que aquilo que é dá ordem do não-dito continua afetando e acarretando prejuízos aos sujeitos marcados com as discriminações e violências produzidas no percurso de suas histórias de vida. Precisamos adentrar cada vez mais no espaço com aquele que nos vem narrar suas histórias e que apresentam no cerne de seu sofrimento o que é de ordem sociopolítica.
NOTAS
1. Para maior aprofundamento deste conceito, ver a obra de Lia Vainer Schucman (2020).
2. Formação online proposta e realizada pelo coletivo Margens Clínicas.
3. conceito cunhado por Gilles Deleuze e Félix Guattari. Cf.: Mil Platôs (1980).
FONTE
Artigo premiado no II Prêmio Jonathas Salathiel de Psicologia e Relações Raciais, promovido pelo CRP-SP em 2021.
SANTOS, Anderson. Saúde Mental, Memória e Direção do Tratamento: notas para uma clínica antirracista. Publicado no livro do II Prêmio Jonathas Salathiel de Psicologia e Relações Raciais [acesse as referências bibliográficas no livro]