Introdução
Na sua aula de 28 de abril deste ano, Jacques-Alain Miller falou de um “resto absoluto”, ou de um “resto levado ao absoluto”, referindo-se ao estatuto do objeto fixado por Lacan no Seminário A Angústia. O adjetivo “absoluto”, afirma Miller, indica uma “separação em relação à dialética”, e daí resulta um resto “insolúvel, que não se pode resolver e nem dissolver”. De uma divisão inexata envolvendo o sujeito e o Outro, algo resta, portanto, e esse resto já não pode ser resgatado pela própria operação que lhe deu origem. Ou seja, apesar de se originar de uma operação simbólica, a divisão, o resto já não será resgatado se fizermos uma inversão, isto é, se com os mesmos elementos da divisão fizermos uma multiplicação. Retira-se com isso do objeto qualquer função complementar.
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É importante notar que essa radicalização do estatuto do objeto faz com que ele mude de lugar e de função: de objeto de desejo ele passa a causa de desejo; de algo posto à frente do sujeito, conforme a definição clássica do objeto, ele passa para trás, como se exprime Lacan. É de trás do sujeito, portanto, é de trás da sua história, da sua verdade ou de qualquer ficção, é de um lugar anterior àquele no qual o sujeito se reconheceria como efeito do significante do Outro, que esse “objeto estranho” causa o desejo, no qual o sujeito é mais empurrado do que atraído.
Uma outra consequência dessa operação é o deslocamento da alteridade: da alteridade relativa do Outro da linguagem, a partir de cujo desejo suposto e de cujas peripécias o sujeito se situa no mundo com seu corpo, desde então padrão perceptivo dos objetos da realidade, tem-se agora uma alteridade absoluta, isto é, algo anterior a qualquer moção de desejo.
Podemos desde já dizer que esta proposta de Lacan de 1962, trazida à luz por Jacques-Alain Miller em 2004, é um instrumento que nos permite pensar uma clínica psicanalítica para os tempos de hoje. Estamos na verdade tratando de um ponto de apoio que nos foi dado há quarenta e dois anos, e que terá talvez passado despercebido em parte das suas implicações, para usá-lo agora como instrumento, diante de desafios clínicos, culturais e institucionais que talvez só existissem naquela época como fatos brutos ou dados esparsos.
Há mais de um Anti Édipo
Entre 1962 e 2004, há uma escanção, que é a publicação do Anti Édipo em 1972, por dois autores que tinham um sonho, o de “acabar com Édipo”, como escreverão oito anos mais tarde, no prefácio para a edição italiana de uma obra posterior, Mil Platôs [1].
Se essa esperança se esgotou ou se amenizou, não terá sido através de uma vitória de Édipo contra os seus adversários, mas justamente pelo contrário, ou seja, pelo declínio do Édipo na cultura, do qual o livro de Deleuze e Guattari foi um sintoma.
Ou seja, tendo-se deslocado o eixo histórico do Édipo, posto em cena no que Deleuze e Guattari chamaram de “o incurável familiarismo”, desagrega-se igualmente a sua contestação. Desta forma, estamos discutindo o Anti Édipo, não mais como uma bandeira ética mais ou menos unificada (unificada antes de tudo por força dos nomes próprios de Deleuze e Guattari), mas como uma variedade de efeitos ou modalidades. Esta passagem para o múltiplo constitui ao mesmo tempo a consagração e o limite do Anti Édipo.
A multiplicidade, ou a pluralidade, que foram outrora formas de resistência ao poder do Um totalizador, e que constituem um aspecto essencial da prática política preconizada por Deleuze e Guattari, são hoje características do poder (ele próprio múltiplo, fragmentado e plural). Os leitores de hoje retomarão o Anti Édipo, não mais como um “manual da vida quotidiana”, como o definiu Foucault [2], mas para melhor entenderem um movimento que esse texto, pretendendo implementar, em parte antecipou.
Algo aconteceu entre a publicação do Anti Édipo e os dias de hoje, a tal ponto, acredito, que o próprio sentido da expressão Anti Édipo sofreu um deslocamento: o Anti Édipo de hoje não é exatamente o mesmo que o livro de Deleuze e Guattari preconizava. Ou seja, as vicissitudes anti-edipianas de hoje não são uma simples expansão do que já estava contido no livro, mas implica a sua negação: reencontrar a eficácia do Anti Édipo hoje, portanto, passa por uma negação, que não se deve, no fundamental, a nenhum argumento mais vigoroso, a nenhuma proeza retórica, mas pura e simplesmente ao real.
O Anti Édipo foi um sonho. Sonhou-se, por exemplo, que a variedade do objeto sexual, anunciada por Freud desde os Três Ensaios, era de certa forma análoga à multiplicidade do poder: é o que se chamou de sexo-esquerdismo, tendência mista, metade gozo, metade ideal. Sonhou-se também que, na defesa da multiplicidade, se encontraria no campo oposto uma unidade, mesmo ilusória: o Édipo, por exemplo.
Mas o Anti Édipo não é somente um sonho. Há nele também algo de “the dream is over”: não necessariamente nas suas páginas e nem na prática política que inspirou, mas nos seus restos, naquilo que ele anuncia sintomaticamente, e que, se não se confunde com o livro, constitui, no entanto, o seu cerne e subsiste à negação da sua utopia. É este Anti Édipo, no meu entender, que o objeto a como resto absoluto antecipa de dez anos.
Na verdade, o que se vê nos nossos tempos põe em questão o sentido do sentimento de culpa que, iniciado em torno do pai, como lemos na sentença um tanto enigmática de Freud em O Mal estar na cultura, se completa na massa [3]. Com o declínio do Édipo, o mal estar na cultura e a culpa correlata não são necessariamente uma ampliação para o coletivo da ambivalência filial, mas se trata, pelo contrário, de uma economia de gozo separada de todo sistema de ideais. Uma das razões do desespero contemporâneo é, então, constatar-se que, diante dos sintomas do múltiplo, não há caminho de volta para o pai; isto desvela a precariedade da família e a da própria psicanálise, ao mesmo tempo que nos revela a todos como pós-totalitários. Ou seja, fazemos todos parte das “minorias”, no sentido que tem esta noção para Deleuze e Guattari, uma vez que o padrão, que é o que define para eles a maioria, está por definição vazio [4].
Isto não facilita, longe disso, a tarefa do psicanalista. Temos diante de nós um paradoxo, segundo o qual a psicanálise, apontada no texto de Deleuze e Guattari como a zelosa guardiã do mito edipiano, talvez seja hoje a principal encarregada de recolher os seus restos, às vezes inesperados, e sempre plurais.
A partir, portanto, do momento em que o Anti Édipo já não é uma bandeira de luta, mas um documento, um signo da falência do Outro que à sua maneira ele antecipou, cabe à psicanálise acolher os sintomas que têm origem, não na repressão ou no reforço defensivo do poder, mas na própria multiplicidade [5].
Chegado a este ponto, é necessário fazer uma distinção, como o fazem Deleuze e Guattari: uma coisa é dizer-se que há uma multiplicidade por detrás de uma ilusão de unidade, e a partir disto se postular uma superação, uma política, uma clínica, que vá na direção de um “múltiplo em estado puro” [6], ou seja, de um múltiplo que não seria efeito de nenhuma dispersão, mas o próprio estatuto do desejo; uma outra, bem diferente, é dizer-se que há uma fragmentação do Um da totalidade, e que a pluralidade que daí resulta engendra sintomas inéditos, que cabe à psicanálise acolher.
No primeiro sentido, o Anti Édipo pode ser tido como um sonho, cujo umbigo seria a impossível passagem para um múltiplo em estado puro. Na segunda acepção, a psicanálise passa a ter com o Anti Édipo uma relação bem peculiar: enquanto no início ela era o saber e a prática que impediam que se tivesse acesso ao múltiplo, uma vez que o reducionismo de Freud – ou o “júbilo redutor de Freud” [7], como o chamarão mais tarde Deleuze e Guattari – aspirava tudo o que poderia estar fora da causação edipiana – como as crianças muito jovens, os loucos e as culturas não ocidentais -, compete-lhe agora tratar de sintomas exteriores ao Édipo, sintomas que vão na direção, se posso chamá-la assim, de um anti édipo generalizado, em oposição ao “édipo generalizado” [8] que Deleuze e Guattari enxergaram na estratégia psicanalítica.
Você vão me permitir uma pequena dialética: se o anti édipo generalizado nega o Anti Édipo como manual de conduta, uma vez que já não se ergue diante dele uma unidade maciça que possa ser contestada, a psicanálise que é exigida terá igualmente sofrido uma negação, após a qual a referência edipiana já não lhe serve, como antes, de recurso sem falha.
Trata-se de uma psicanálise que terá sofrido um “desencantamento”, para usar a expressão que Jacques-Alain Miller adaptou de Max Weber [9]; uma psicanálise que já não conta com a magia que lhe era dada pelo contorno mítico que vai do Édipo propriamente dito até à aura de sacralidade que herdou da medicina, e que tem permitido ao psicanalista dar corpo ao Outro, face àqueles cujo sofrimento é passível de se desdobrar em mensagem.
É possível uma psicanálise anti-edipiana?
Uma grande transformação se deu quando as bandeiras éticas que estão associadas ao Anti Édipo e quando os ideais que essas bandeiras expressam chegaram de algum modo à realidade comum ; não exatamente como uma vitória, no sentido do ultrapassamento de um acordo conservador entre a psicanálise e o familiarismo, mas como o simples efeito da atual possibilidade que oferece a ciência, em aliança com o consumo democrático, de pôr no mercado soluções práticas que estavam antes limitadas à fantasia ou aos ideais.
Dois exemplos bem simples: enquanto o termo « trans-sexuado » [10] serve a Deleuze e Guattari, numa bela passagem sobre Sodoma e Gomorra, de Proust [11], para nos caracterizar a todos, na dispersão que é própria ao objeto do sexo e que torna relativa a fronteira que separa e aproxima os sexos, esse mesmo termo nomeia hoje sujeitos para os quais a medicina científica oferece meios concretos que permitem adequar os seus corpos a uma anatomia que já não se autoriza do destino.
Um outro exemplo pode ser extraído da economia : a multiplicidade, que é um dos significantes-mestres do Anti Édipo, pode perfeitamente ser reconhecida na equivalência dos objetos da compulsão consumista, no sentido de que podem justificar suas existências – ou, como se diz, sua presença no mercado -, não exatamente pelo uso que se pode fazer deles – há uma quase anulação do seu valor de uso -, mas pela sua pura e simples sucessão. O mesmo se poderia dizer em relação a outras formas de compulsão que são marcas do nosso tempo, sob a forma de sintomas que se emanciparam da função de mensagem.
Conceber o objeto a como resto absoluto permite que se entenda melhor o seu caráter suplementar, que hoje, mais do que antes, é possível de se constatar nas práticas clínica e política. Por exemplo,
- na angústia, « única versão subjetiva do objeto a » segundo Lacan, na qual está em questão a impossível complementaridade entre o sujeito e o corpo do Outro. Como ilustração, podemos citar o caso de um paciente meu que, chegando à sua sessão num estado de grande aflição, por estar certo de ter-me visto numa situação que, aos seus olhos, comprometeria a dignidade da minha função, e, conseqüentemente, impediria a continuação da sua análise, sente após vários minutos de tensão um formidável alívio, ao perceber que me faltava algo que ficara na sua lembrança como uma mancha no corpo da pessoa que ele confundira comigo: uma certa mecha de cabelos brancos.
- nas adições, nas quais substâncias estranhas se somam ao corpo, em ruptura com a função de complemento fálico, como ensinava Lacan em 1976 [12] ;
- e, finalmente, nas atuais formas de segregação de massas humanas para fora do espaço do direito, numa lógica bem diferente daquela que, na época de Marx, separava os trabalhadores empregados daqueles que compunham o exército de reserva [13]. A tal ponto que Slavoj Zizek, comentando o conhecido trabalho de Giorgio Agamben [14], propôs que se inclua ao lado dos que costumam ser reconhecidos sob o paradigma do Homo Sacer de hoje « aqueles que recebem ajuda humanitária » [15], isto é, aqueles que não têm o que dar, e nem a trocar, só a receber.
Conclusão
O psicanalista não tem que lamentar e nem aplaudir a decadência do Édipo, e menos ainda tentar ressuscitar o Anti Édipo como bandeira, mas deve, antes de tudo, constatá-lo como tendência e criar respostas que estejam à altura das demandas que lhe são feitas e que sirvam à sobrevivência da psicanálise.
O Anti Édipo da psicanálise se dá como dispersão, e a imagem usada por Jacques-Alain Miller para caracterizar o método de Lacan no Seminário X, de “uma marola (houle, oleada…) que desinscreve termos fundamentais da psicanálise do contexto edipiano” [16], dá uma ideia precisa de um certo movimento na direção do múltiplo, sob a forma dessas pequenas ondas que se dispersam mas não são centrífugas, porque não se sabe exatamente onde fica o centro do mar.
À falta, portanto, de uma pura dispersão, ou do “múltiplo em estado puro”, o que o psicanalista encontra na sua prática é o esforço de se reconhecerem os unos dentro do múltiplo. Um deles é o próprio psicanalista: não como complemento necessário à triangulação do desejo, como criticava Foucault [17], nem como um pai, mas simplesmente como um ponto de amarragem.
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FONTE
OPÇÃO LACANIANA Nº 42, 2005.