O CASO DA VÍTIMA: PARA ALÉM DA CAFETINAGEM DA CRIAÇÃO E DE SUA SEPARAÇÃO DA RESISTÊNCIA – por Suely Rolnik

Subjetividade paradoxal

A subjetividade é o laboratório vivo onde universos se criam e outros se dissolvem. Muitas são as políticas de subjetivação e os modos de relação com a alteridade do mundo que elas implicam, combinatórias variadas e variáveis de dois modos de apreensão do mundo enquanto matéria – como desenho de uma forma ou como campo de forças -, os quais por sua vez dependem da ativação de diferentes potências da subjetividade.

Conhecer o mundo como matéria-forma convoca a percepção, operada pelos órgãos dos sentidos; já conhecer o mundo como matéria-força convoca a sensação, engendrada no encontro entre o corpo e as forças do mundo que o afetam. Aquilo que do corpo é afetável por estas forças não depende de sua condição de orgânico, de sensível ou sensorial, de erógeno, nem de emocional, mas de sua condição de carne percorrida por onda nervosa: um “corpo vibrátil” (ou corpo intensivo). A percepção do outro traz sua existência formal à subjetividade, sua representação; enquanto que a sensação lhe traz sua presença viva. Entre estes dois modos de apreensão do mundo reside um paradoxo irresolúvel: de um lado, os novos blocos de sensações que pulsam na subjetividade, na medida em que vai sendo afetada por novos universos; de outro, as formas através das quais a subjetividade se reconhece e se orienta no presente. Disparidade inelutável que acaba por colocar as formas atuais em xeque, pois estas se tornam um obstáculo para integrar as novas conexões com a alteridade do mundo que provocaram a emergência de um novo bloco de sensações e, com isso, deixam de ser condutoras de processo, esvaziam-se de vitalidade, perdem sentido. Instaura-se na subjetividade uma crise que pressiona e causa desconforto. Para responder a essa pressão, mobiliza-se no homem a vida enquanto potência de resistência e de criação – vale dizer: o desconforto força a criar uma nova configuração da existência, uma nova figuração de si, do mundo e das relações entre ambos; força igualmente a lutar pela incorporação dos novos contornos, a lutar para trazê-los à existência.

É a associação do exercício das duas forças que garante a continuidade da vida, sua expansão. As múltiplas transformações moleculares que daí resultam vão se acumulando e acabam precipitando novas formas de sociedade – uma obra aberta e em processo, cuja criação é portanto necessariamente coletiva. O paradoxo na subjetividade e a crise que ele provoca são assim constitutivos do processo de individuação em seu constante devir outro, eles são seus disparadores. Isto faz de todo e qualquer modo de subjetivação, uma configuração efêmera em equilíbrio instável.

Praticar ou não estes dois modos de conhecimento e o lugar que cada um deles ocupa na relação com o mundo, definem modos de subjetivação que implicam políticas de relação com a alteridade cujos efeitos não são neutros: tais políticas favorecem ou, ao contrário, constrangem a processualidade da vida, sua expansão enquanto potência de diferenciação – potência que depende da força de invenção que decompõe mundos e compõe outros e, indissociavelmente, da força de resistência que garante a mudança. Em outras palavras: diferentes políticas de relação com o outro favorecem ou constrangem a potência da vida. Como problematizar nestes termos a política de subjetivação dominante no contexto atual do “capitalismo mundial integrado”1?

Invenção sequestrada

Alguns autores contemporâneos, especialmente no entorno de Toni Negri, afirmam que a partir dos anos 1970 ou 80, o capitalismo vem fazendo da força de invenção sua principal fonte de valor e o motor mesmo da economia, no lugar da força de trabalho mecânica dos operários. Como pensar este fenômeno do ponto de vista da política de subjetivação que ele envolve?

Dois aspectos se destacam e se entrechocam: por um lado, o conhecimento do mundo como matéria-força tende a ser desacreditado, o que tem como efeito sua desativação; por outro, intensifica-se brutalmente o paradoxo entre os blocos virtuais de sensações e as formas de vida atuais, o que intensifica igualmente a tensão e a mobilização da força de criação que essa dissonância provoca.

Muitas são as causas da intensificação dessa dissonância. Para ficar apenas em duas das mais evidentes nos ateremos primeiramente ao fato de que a existência urbana e globalizada que instaura-se com o capitalismo, implica que os mundos a que está exposta a subjetividade em qualquer ponto do planeta multiplicam-se cada vez mais e variam numa velocidade cada vez mais vertiginosa, o que faz com que a subjetividade seja continuamente afetada por um turbilhão de forças de toda espécie. Em segundo lugar, nos ateremos ao fato de que a necessidade de estarem sendo constantemente criadas novas esferas de mercado – necessidade inerente à lógica capitalista -, implica que tenham que ser produzidas novas formas de vida que lhe dêem consistência existencial, enquanto outras sejam varridas de cena, junto com setores inteiros da economia que se desativam. A associação destes dois fatores, entre outros, reduz o prazo de validade das formas em uso, as quais tornam-se obsoletas antes mesmo que se tenha tido tempo de absorvê-las; além disso, tal associação impõe a obrigação de reformatar-se rapidamente, antes mesmo que se tenha tido tempo de inteirar-se das sensações que a mudança suscita. Vive-se em estado de tensão permanente, à beira da exasperação, o que faz com que a força de invenção seja muito freqüentemente convocada.

Para agravar a situação, esse processo se dá numa subjetividade cega às forças da alteridade do mundo, dissociada do corpo vibrátil e, conseqüentemente, sem acesso aos novos blocos de sensações que mobilizam sua potência de invenção; corpo-bússola que orienta a criação de territórios, para fazê-los funcionar como atualização existencial de tais sensações. Um manancial de força de invenção é então liberado sem que se possa dele apropriar-se para a construção de mundos singulares em consonância com o que pede o processo vital. É este manancial de força de criação “livre” que o capitalismo contemporâneo descobre como uma mina virgem, poderosa fonte de valor a ser explorada, fenômeno que Toni Negri e seus colaboradores detectaram e circunscreveram.

Para extrair da força de invenção sua máxima rentabilidade, o capitalismo irá fomentá-la mais ainda do que já a mobiliza por sua própria lógica interna, para fazer dela um uso mais perverso: cafetiná-la a serviço da acumulação de mais-valia, aproveitando e, com isso, reiterando sua alienação em relação ao processo vital que a engendrou, alienação que a separa da força de resistência. Força de invenção turbinada e liberada de sua relação com a resistência, de um lado, e de outro, tensão agravada, no contexto de uma abordagem da alteridade do mundo dissociada de sua apreensão como matéria-força pelo corpo vibrátil: estes são os dois vetores que definem o modo de subjetivação do capitalismo em sua atualidade.

A potência de invenção turbinada e liberada de sua associação com a resistência, o capital a captura a serviço da criação de territórios-standard para configurar os tipos de subjetividade adequados para cada nova esfera que se inventa. São territórios de existência homogeneizados cuja formação tem como princípio organizador a produção de mais-valia, princípio que se sobrepõe ao processo e o sobrecodifica. Verdadeiras “identidades prêt-à-porter” facilmente assimiláveis, acompanhadas de uma poderosa operação de marketing que cabe à mídia fabricar e veicular de modo a fazer acreditar que identificar-se com tão estúpidas imagens e consumi-las é imprescindível para conseguir reconfigurar um território, e mais do que isso, que este é o canal para pertencer ao disputadíssimo território de uma “subjetividade-luxo”. Isto não é pouca coisa, pois fora desse território corre-se o risco de morte social por exclusão, humilhação, miséria, quando não o de morrer literalmente – o risco de cair na cloaca das “subjetividades-lixo”, com seus cenários de horror feitos de guerra, favela, tráfico, seqüestro, fila de hospital, criança desnutrida, gente sem teto, sem terra, sem camisa, sem documento, gente “sem” -, um território que se avoluma a cada dia. Mas se a subjetividade-lixo vive permanentemente o desconforto da humilhação de uma existência sem valor, já a subjetividade-luxo vive permanentemente a ameaça de cair para fora, no território-esgoto, queda que pode ser irremediável, cuja ameaça a assombra e a deixa agitada e ansiosa numa busca desesperada por reconhecimento.

O processo se completa beneficiando-se do agravamento da tensão que cria um ambiente propício para o assédio da mídia, que vende promessa de apaziguamento garantido pela reconfiguração instantânea que o consumo de seus territórios-padrão mercantilizados supostamente propicia. Operação que injeta nessa subjetividade fragilizada doses cada vez maiores de ilusão de que a tensão pode acalmar-se e a mantém alienada das forças do mundo que pedem passagem.

Na vertigem desse processo que se acelera cada vez mais, sobram cada vez menos chances de conhecer/ressoar a realidade viva do mundo como matéria-força, de escapar dessa dissociação. Não dá para parar de entregar-se ao assédio non-stop dos estímulos sob pena de deixar de existir e cair na vala das subjetividades-lixo. O medo passa a comandar a cena.

No entanto, como também nos assinalam os que trabalham no entorno de Negri, se o capitalismo contemporâneo atiçou a força de invenção para cafetiná-la, em seu avesso, a mobilização dessa força no conjunto da vida social criou as condições para um poder de resistência da vida como potência de variação, provavelmente sem medida de comparação com outros períodos da história do Ocidente – uma ambigüidade constitutiva do capitalismo, seu ponto vulnerável. Pela brecha dessa vulnerabilidade vem se avolumando a construção de outras cenas, regidas por outros princípios.

Que estratégias de subjetivação são essas que desobstruem o acesso ao corpo vibrátil, religam o poder de criação ao poder de resistência e o liberam de seu cafetão? Responder a esta pergunta, depende de nos colocarmos numa zona onde política e arte se misturam, afetam-se mutuamente as forças de resistência da política e as forças de criação da arte e tornam-se indiscerníveis suas fronteiras. Proponho que experimentemos nos situar nesta zona de hibridação – primeiro do lado da política contaminada por sua vizinhança com a arte, e depois do lado da arte contaminada por sua vizinhança com a política -, para vislumbrarmos estratégias desse tipo.

Políticas da resistência: “o acontecimento Lula

Tomarei a recente vitória de Lula nas eleições presidenciais do Brasil como exemplo de estratégias que, no âmbito da política, tendem a liberar a força de criação de sua cafetinagem e a reconectá-la com a força de resistência. Para além do fato tangível da eleição, um verdadeiro “acontecimento” parece ter se produzido ao longo da campanha eleitoral: a figura de Lula encarna a dissolução de uma subjetividade-lixo em sua versão brasileira, resultante de 500 anos de uma política de subjetivação colonial, escravocrata, ditatorial e capitalista; herança histórica em que se sobrepõem regimes diversos de exclusão e segmentação, que têm posicionado o país no topo do ranking mundial da desigualdade social. O acontecimento Lula é a deserção do lugar da subjetividade-lixo e de sua posição de vítima.

A figura da vítima pertence a uma política de relação com a crueldade que consiste em denegá-la. A crueldade, condição trágica da vida, se impõe como necessidade vital em função daquela disparidade entre a apreensão do mundo como matéria-forma e sua apreensão como matéria-força: quando tal disparidade atinge um limiar, a crueldade tem que se exercer para que se desfaça um mundo que já não tem sentido; ela é este caráter inexorável do movimento vital, sua “violência positiva” ou “ativa”. Seu exercício se faz através da potência de criação que inventa outras formas de existência e, coextensivamente, da potência de resistência, de luta pela construção e defesa destes novos mundos, sem o que a vida não vinga.

Em se tratando de uma subjetividade cindida da realidade viva do mundo enquanto matéria-força – como acontece no capitalismo hoje -, vimos que as potências de resistência e de criação se dissociam. A subjetividade não tem como reconhecer a crueldade da vida como causa de seu assombro; este transforma-se então em medo e desamparo. Estando restrita ao conhecimento do mundo como matéria-forma e, portanto, ao mapa da forma vigente com suas figuras e seus conflitos de interesse, para encontrar uma explicação e aliviar-se, a subjetividade projeta no outro a causa de seu medo e lhe atribui a autoria da crueldade. Mobilizada pela experiência da crueldade passada pelo crivo desta interpretação, a força de resistência, ao invés se dirigir-se à afirmação e defesa de novas formas de vida que se fazem necessárias, será neste caso dirigida “contra” o outro. Tal força é então capturada pela matriz dialética, como luta entre opostos, subjetividades reificadas em figuras identitárias, cuja luta gira exclusivamente em torno do poder. No entanto, seja qual for o vencedor, em termos de política de desejo, o que vence neste caso é a força do conservadorismo que defende a forma vigente: resistência negativa que denega o germe de diferença que pede passagem e breca a criação de uma forma de vida na qual o germe ganhe corpo e se atualize.

Nesta política da resistência reativa, a multiplicidade de forças em jogo é silenciada e enquadrada em apenas duas figuras subjetivas: a vítima e/ou o algoz, avessos especulares de uma mesma lógica. Para o algoz a luta visa submeter o outro para que, tomado como objeto, possa ser instrumentalizado a serviço da conservação do opressor e de sua expansão enquanto tal. Política perversa do exercício da resistência na versão reativa, que toma a forma da maldade e com ela se confunde. É a violência em seu exercício reativo: desde a violência explícita, física ou moral, até a violência implícita de uma forma “pacífica”, que consiste no respeito politicamente correto pelo outro regado à piedade, que o fixa num lugar identitário. Se para o algoz a “violência negativa” é explicitamente assumida, já para a vítima ela se justifica como reação à violência do outro, o qual é confinado na figura do “inimigo”. Ela se exerce seja implicitamente no estilo queixoso, sob a forma ressentida e/ou de autocomiseração melancólica, que detona o outro através da culpa; seja explicitamente no estilo raivoso, sob a forma vingativa e/ou paranóica. Ressentimento e vingança: políticas de resistência da vítima que respondem em espelho àquilo mesmo que pretendem combater – a lógica da maldade, violência reativa que tais políticas alimentam voluptuosamente.

Esta lógica da resistência reativa é hegemônica em nossa contemporaneidade: a violência tende a ser sempre reduzida à sua versão negativa, concepção amplamente propagada pelo capitalismo mundial integrado que dela se utiliza para cultivar o medo e o desamparo e, através deles, alimentar o modo de subjetivação que lhe dá consistência existencial. A mídia é o principal veículo desta propagação, cujas estratégias têm se tornado cada vez mais refinadas, mais hábeis e mais eficientes. Hoje a representação de uma guerra do porte da do Iraque, passa por um só filtro mundial, a CNN, que ignora a violência negativa do agressor, – no caso os USA e as forças aliadas do capitalismo mundial integrado. Desta violência nenhuma imagem é transmitida e a guerra é interpretada como revide contra a suposta violência negativa do outro, no caso “o árabe”. No Brasil, essa micropolítica do capitalismo instalou-se com a ditadura militar e continua até hoje.

Vítima e algoz sustentam-se na crença nas figuras da subjetividadeluxo e subjetividade-lixo, na hierarquia que marca sua relação e, portanto, no valor superior da subjetividade-luxo, referência ideal para ambas. Na vítima, a subjetividade-luxo mobiliza admiração, identificação e inveja, aquilo que a psicanálise qualifica como “identificação com o agressor”. Por baixo tanto de sua reivindicação ressentida quanto do ataque vingativo há na verdade uma demanda dirigida à subjetividade-luxo tomada como modelo, demanda de valorização social, de reconhecimento, de pertencimento – ou seja, uma demanda de amor endereçada ao agressor.

O “acontecimento Lula” é o esgarçamento ao vivo da figura da vítima. Um corpo que fala desde um outro lugar: o lugar da apreensão da realidade viva do mundo como matéria-força, que se apresenta na subjetividade como sensação. Uma fala que, produzida desde esse outro lugar, é portadora da exigência e da liberdade de problematizar a configuração atual do mundo como matéria-forma. Um tipo de conhecimento que não se aprende na escola, nem mesmo na melhor das universidades, mas numa verdadeira exposição ao outro como campo de forças que afetam o corpo vibrátil, agitam e convulsionam a subjetividade, obrigando-a a criar novas cartografias de existência – por exemplo, um projeto político para um país. Lula se desloca portanto de uma posição que reduz o conhecimento do mundo às suas formas e, junto com isso, desloca-se de uma política de desejo que naturaliza a forma vigente e a hierarquia de valor social e de saberes que ela implica. Em sua fala não há mais nem lamento ressentido, nem ataque vingativo: a subjetividade-luxo perde integralmente seu poder como referência. Daí a serenidade da presença de Lula: nada a ver com marketing para forjar uma figura light de “paz e amor” visando tranqüilizar a elite, como quiseram seus opositores. É esta qualidade de presença que mobilizou pouco a pouco uma ampla adesão, pois o deslocamento da política de desejo que ela expressa é portador de uma potência de contaminação da subjetividade dos brasileiros, sobretudo da massa de subjetividade-lixo que chega a 90% da população do país. Tal deslocamento se autoriza, propaga-se e leva à vitória: dissolve-se o medo, uma fala viva começa a circular e uma inteligência coletiva se põe em movimento. [Embora o candidato adversário, em seu desespero pela perspectiva de seu fracasso, tenha agressivamente insistido no valor da formação universitária, tentando mobilizar o medo de ser comandado por quem não detém esse conhecimento – mobilização para a qual aliou-se à namoradinha do Brasil conservador -, estes argumentos perderam todo e qualquer poder de sedução.] Evidentemente, este não é um processo que começa com Lula; e mesmo se consideramos sua figura como uma força importante na genealogia deste deslocamento histórico, isto não começa com a campanha eleitoral em questão2.

Se consideramos que toda e qualquer sociedade envolve políticas específicas do desejo e da subjetividade, podemos vislumbrar que estamos diante de uma passagem irreversível de um mundo a outro, mesmo que haja – e com certeza haverá – muitas idas e voltas. Um momento histórico significativo não só pela alegria de uma vitória da esquerda, mesmo que se trate de um candidato que reúne em si várias categorias de subjetividade-lixo: de operário metalúrgico a retirante nordestino, imigrante morador da periferia de São Paulo, passando por aleijado de um dedo que alguma máquina engoliu em seus tempos de torneiro mecânico, e que, para completar, fala um português “errado”. Este é apenas o aspecto mais óbvio desta alegria, para não dizer o mais ingênuo e, pior do que isso, um aspecto perigoso, pois ele pode confundir-se com esperança, afeto triste que alimenta messianismos, populismos e toda espécie de ideais de um mundo fusionista sem alteridade e, portanto, sem diferença, sem crueldade, sem resistência e sem criação – em suma, sem vida. Vital mesmo é a alegria pelos sinais de esvaziamento do inconsciente colonial-escravocrata-ditatorial-capitalista que mantém os brasileiros reféns de uma hierarquia que os fixa na posição de subjetividade-lixo, vítimas de um suposto destino transcendental.

Se o mundo volta os olhos para o Brasil neste momento é porque a dissolução da figura da vítima diz respeito a uma necessidade que extrapola o cenário nacional. Encarnar esta figura é um vício secular da esquerda, que supõe manter a subjetividade reduzida ao conhecimento do mundo como matéria-forma, temer a violência positiva da crueldade inerente à vida e por isso denegá-la, projetar sua causa no outro e exercer violência reativa contra ele. Vício que transforma a crueldade do movimento vital em maldade humana e separa a vida de suas potências de criação e de resistência.

A fórmula que o acontecimento Lula propõe para o tratamento desse vício nefasto consiste na ativação do acesso ao corpo vibrátil que permite à subjetividade descobrir o outro como campo de forças de um mundo diverso do seu, que a afeta e ao qual ela pode desejar correr o risco de se expor. Uma fórmula que consiste em encarar a crueldade, tanto libertando a potência de criação de sua clivagem do corpo e de sua captura pelo capital, quanto libertando a potência de resistência de sua interpretação pela matriz dialética e sua transmutação em maldade. Estão reunidas as condições para uma política de desejo em que resistência e criação se reencontrem num corpo que se abre para as forças do mundo. Não será exatamente essa a tão esperada “abertura” que, desde os anos da ditadura militar, os brasileiros chamaram de democrática?

Lembrando que a vítima é uma inconveniente presença também nas práticas culturais, especialmente as de cunho mais explicitamente político, cabe formularmos algumas interrogações: estaria esta figura evanescendo igualmente nessa cena? Como a criação artística em sua interface com a resistência pode escapar à erotização da vítima? Mais do que isso, como ela pode participar ativamente do desinvestimento desse personagem nefasto por todo o corpo social? E mais amplamente ainda, como nas práticas artísticas da atualidade religam-se criação e resistência, se nos colocamos naquela zona onde política e arte se misturam, afetam-se reciprocamente suas forças, tornando suas fronteiras indiscerníveis?

Políticas da criação: práticas artísticas na atualidade

Se consideramos que a prática artística consiste em atualizar sensações, trazê-las para o visível e o dizível, produzir cartografias de sentido, e que a sensação é a presença viva no corpo das forças da alteridade do mundo que pedem passagem e levam à falência as formas de existência em vigência, podemos afirmar que atualizar estas forças é “socializar sensações”3, comunicando a um coletivo as novas composições de forças que o afetam e o fazem derivar para novas configurações.

Dizer que a força de invenção encontra-se não só mobilizada, mas celebrada e intensificada por todo o campo social, é dizer que o exercício da criação não mais encontra-se confinado na arte, como uma esfera específica de atividade humana. Esta situação coloca para a arte novos problemas e exige dela novas estratégias. Por meio de que estratégias as práticas artísticas estariam operando sua função crítica em nossa atualidade? Como estariam elas promovendo a reconexão das potências de criação e de resistência, dos afetos estético e político?

Permanecer simplesmente no gueto da “arte” enquanto esfera separada onde confinava-se a potência de criação no regime anterior é correr o risco de mantê-la dissociada da potência de resistência e limitar-se a ser fonte de valor para a cafetinagem do capital. Risco de se ver reduzido enquanto artista à função de fornecedor de droga pesada de identidades prêt-à-porter com seus lotes de cartografias de sentido impregnadas de glamour, para serem comercializadas pelos dealers de plantão no mercado em ascensão de subjetividades em síndrome de abstinência de sentido e de contorno de si. Levada ao limite, essa posição desemboca no cinismo de alguns artistas cuja criação é orientada pelo desejo de pertencimento a esta cena glamourizada e que se oferecem voluptuosamente para a cafetinagem.

No entanto, tampouco se trata de insistir na cantilena da necessidade de religar arte e vida, em todo caso não do mesmo modo como esta questão colocava-se na modernidade, pois se arte e vida continuam a estar dissociadas, já não é pela desativação da criação no conjunto da vida social e seu confinamento no gueto da arte: esta situação já foi resolvida pelo capitalismo antes e mais eficazmente do que pela arte. Se existe uma dissociação – e é evidente que ela existe – ela certamente deslocou-se, tornando-se ao mesmo tempo mais sutil e mais perversa. Trata-se de uma operação de grande complexidade e que pode incidir sobre diferentes etapas do processo de criação e não só sobre sua etapa final. Sua incidência sobre esta etapa é apenas a mais evidente pois é quando a dissociação se faz sentir nos produtos, reificando-os, o que ocorre de dois modos: seja os transformando em “objetos de arte” separados do processo vital em função do qual a criação se fez, seja os tratando como fonte de maisvalia de glamour a ser associado ao logotipo de empresas e até de municipalidades (como Bilbao, com seu Museu Guggenheim). O glamour, neste caso, incrementa o poder de sedução do logotipo e, portanto, o poder da empresa ou da cidade de mobilizar identificação e vontade de consumo, o que favorece seu sucesso comercial.

Algumas práticas artísticas na atualidade parecem lidar de modo especialmente eficaz com o problema acima apontado. Sua estratégia consiste na inserção sutil e precisa em pontos de esgarçamento do tecido da vida social, onde pulsa uma tensão pela pressão de uma nova composição de forças que pedem passagem; um modo de inserção mobilizado pelo desejo de expor-se ao outro e correr o risco dessa exposição, ao invés de optar pela garantia de uma relação politicamente correta que confina o outro numa representação e protege a subjetividade do risco de contaminação afetiva. A “obra” consiste em trazer para a existência tais forças e a tensão que elas provocam, o que passa pela conexão da potência de criação com um pedaço de mundo apreendido como matéria-força pelo corpo vibrátil do artista e, coextensivamente, pela ativação da potência de resistência. Inventam-se “dispositivos espaço-temporais de um outro estar-junto”4: a presença viva desta atitude encarnada numa prática artística, tem poder de contaminação e propagação nos meios nos quais ela se insere, direta ou indiretamente. Já mobilizada neste meio como por toda parte, a força de criação, ao ser autorizada a reconectar-se com o mundo como matéria-força e a exercer-se associada à potência de resistência, ganha uma oportunidade para libertar-se de seu destino perverso que lhe destitui do poder de inventar cartografias singulares que atualizem as mutações em curso nas sensações. A obra propriamente dita é este acontecimento.

Que outras estratégias artísticas estariam enfrentando os problemas aqui assinalados? Que outros problemas estariam sendo colocados pela dissociação entre resistência e criação no âmbito das práticas artísticas? E no âmbito de outras práticas sociais, como estariam se reativando e se imbricando o afeto político e o afeto estético, potências essenciais para uma saúde vital em qualquer atividade humana? Encontrar direções de resposta para estas perguntas é tarefa que não pode ser realizada apenas individualmente. Um tal trabalho depende da acumulação de experimentações infinitesimais por toda a trama do tecido da vida coletiva.


Conferência proferida em São Paulo S.A. Situação #1 COPAN, com curadoria de Catherine David (São Paulo, novembro de 2002). Publicada em espanhol in Zehar. nº 51. San Sebastián, Arteleku, Diputación Foral de Giupuzkoa, 2003 (número dedicado à discussão deste texto, por autores convidados para este fim) e in Pagina 12. Buenos Aires, 2/3/03. (Radarlibros); em inglês e francês, in Parachute Art Contemporain_Contemporary Art. no 110. Montreal, 4-5-6/2003. (Économies bis); em francês, in Chimères. n° 49. Paris, primavera de 2003. (Désir des marges); em português, em versão menor, in Folha de São Paulo. São Paulo, 02/02/03. (Caderno Mais!).


NOTAS

  1. “Capitalismo mundial integrado” (CMI) é o nome que, já no final dos anos 1970, Félix Guattari propôs para designar o capitalismo contemporâneo como alternativa à “globalização”, termo por demais genérico e que vela o sentido fundamentalmente econômico, e mais precisamente capitalista e neoliberal do fenômeno da mundialização em sua atualidade. Nas palavras de Guattari: “O capitalismo é mundial e integrado porque potencialmente colonizou o conjunto do planeta, porque atualmente vive em simbiose com países que historicamente pareciam ter escapado dele (os países do bloco soviético, a China) e porque tende a fazer com que nenhuma atividade humana, nenhum setor de produção fique de fora de seu controle”. GUATTARI, Félix. “O Capitalismo Mundial Integrado e a Revolução Molecular”. In ROLNIK, Suely (org.). Revolução Molecular. Pulsações políticas do desejo. Brasiliense, São Paulo, 1981.
  2. Cabe lembrar que a primeira vez que Lula se apresentou como candidato foi para governador do estado de São Paulo em 1982, primeiras eleições diretas após quase duas décadas de ditadura militar (1964-1985). Nessa primeira tentativa, ele não se elegeu. Na segunda tentativa, em 1986, ele se apresentou como candidato a deputado federal, tendo sido eleito como o mais votado. Em seguida, disputou as eleições para presidência da república quatro vezes (em 1989, primeiras eleições diretas para presidência após a ditadura, e novamente em 1994, 1998 e 2002, quando foi eleito com uma maioria significativa de votos).
  3. Cf. TARDE, Gabriel. In LAZARATTO, Maurizio.
  4. RANCIÈRE, Jacques. “Estética y política. Un vínculo para replantear”. [Estética e política. Uma relação a ser repensada]. Seminário inédito do autor organizado pelo Museu d’Art Contemporani de Barcelona – MACBA (Barcelona, de 13 a 17 de maio de 2002).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima