Seria de se esperar que encontrássemos psicanalistas com uma sensibilidade de cartógrafo: pode-se até dizer que o cartografo nasce com a psicanálise. É, que a prática de análise do desejo fundada por Freud, e tal como a fomos entendendo aqui, é um espaço de iniciação ao exercício do pensamento como produção de cartografia e, indissociavelmente, um espaço de ruptura com o exercício tradicional do pensamento no Ocidente como busca da verdade, pensamento marcado pelo monopólio do macroolho, olho-do-visível, da representação e da razão totalizadora. Freud franqueia ao pensamento o acesso ao corpo vibrátil e à micropolítica das desterritorializações e das simulações que só esse corpo capta. Mas nem é essa a sua contribuição mais importante, já que outros pensadores, antes e ao mesmo tempo que ele, como Spinoza e Nietzsche, também criaram tal acesso.
O que faz, isso sim, a força e a originalidade de Freud é não só ter afirmado e desenvolvido, conceitualmente, a possibilidade de um pensamento produzido na tensão fecunda da coexistência vigilante entre a potência retínica do olho e sua potência vibrátil, assim como a de todo o corpo; mas, sobretudo, ter introduzido no Ocidente moderno uma prática de iniciação ao pensamento assim exercido. “Iniciação” porque um pensamento que emerge do movimento invisível dos afetos, e que tem por função dar língua a esses mesmos afetos, não pode ser transmitido, a não ser através do exercício do próprio pensar assim concebido; exercício que requer disciplina, e tempo e, frequentemente, a orientação de alguém já iniciado; por exemplo, um analista. Com a prática da psicanálise, Freud conquista um espaço para o exercício desse pensar no cotidiano do homem ocidental. Isso nos dá chance de despertar do sono imemorial do corpo vibrátil. A partir dessa conquista, o “mal-estar da desterritorialização” passa a poder ser vivido também no Ocidente como lugar de invenção e, não necessariamente, de carência e, por isso, da depressão e da culpa que por tanto tempo – e por vício – nos intoxicaram porque faltavam alguns grãos de Zen em nossos desertos. A partir dessa conquista, abre-se para o pensamento a possibilidade de ultrapassar os limites do visível e de participar da processualidade de elaboração de cartografias e de constituição de territórios, embarcando nas linhas de fuga, enfrentando os impasses de sentido e para eles inventando saídas, a cada vez que se apresentam. O psicanalista, assim configurado, define-se, fundamentalmente, como um cartógrafo da atualidade. O que o psicanalista cartógrafo toma de Freud não é necessariamente seu repertório de cartografias: isto ele sabe que é datado. O que ele toma tampouco são, necessariamente, seus procedimentos: ele sabe que, abstraídos de determinado contexto, podem se tornar meros rituais esvaziados de sentido. Não é em nada disso que o psicanalista, assim configurado, considera-se herdeiro de Freud: o que toma de Freud é sua escuta de cartógrafo. Por isso, diante de seus “quadros clínicos”, seja qual for o contexto em que estiver trabalhando, ele conserva o mesmo princípio, a mesma regra e o mesmo roteiro de indagações de qualquer outro cartógrafo (é claro que, também como qualquer outro cartógrafo, ele está sempre redefinindo seu roteiro de indagações).
É verdade que Freud não era apenas cartógrafo; ele tinha uma ambiguidade em relação à ruptura que ele próprio criou, presente em cada obra, cada página, cada frase. Ele oscilava o tempo todo. Essa mesma ambiguidade atravessa toda a história da psicanálise, propiciando escolhas micropolíticas fundamentalmente diferentes. Aliás, a pertinência a um grupo, formal ou não, em nada garante a presença de uma sensibilidade de cartógrafo.
* grifos meus.
FONTE: ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. – 2ª edição, Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2016. 248p.