A conferência aqui traduzida narra a história da atitude crítica, que mantém relação intrínseca com a história da governamentalidade ou do governo dos homens. No ano de 1978, Michel Foucault introduz o tema do governo em seu curso Segurança, território, população, sublinhando sua polissemia: governo de si, governo das almas, das condutas, governo da casa, mas também governo do Estado pelo Príncipe, governo da cidade e da população¹. “Como quer que seja”, diz Foucault, “através de todos esses sentidos, há algo que aparece claramente: nunca se governa um Estado, nunca se governa um território, nunca se governa uma estrutura política. Quem é governado são sempre pessoas, são homens, são indivíduos ou coletividades”. Pois bem: o quadro do governo. Será central compreendê-lo como uma relação de poder cuja marca é a condução de condutas, noção que integra as dimensões do governo e do sujeito: do sujeito na relação consigo e na relação com os outros; do governo como conjunto de técnicas refletidas que estruturam campos de ações possíveis para os outros. A problemática da crítica apresentada pela primeira vez na conferência aqui traduzida é inseparável da questão do governo. A crítica será, em relação ao governo, uma atitude, uma estudada desenvoltura, uma forma cultural geral, atitude moral e política e também uma vontade decisória de não ser governado de tal ou qual maneira, por tais ou quais mecanismos.
Foucault encerra as aulas de Segurança, território, população em abril de 1978. No mês seguinte, a conferência O que é a crítica? retoma o tema do governo. Narra como no século XVI surge a questão da arte de governar os homens, como se desenvolveu dentro da pastoral da Igreja, em torno da ideia de que “cada indivíduo, quaisquer que seja sua idade, estatuto, de uma ponta a outra de sua vida, até nos detalhes de suas ações, devia ser governado e devia se deixar governar, isto é, ser dirigido para a sua salvação, por alguém que o liga numa relação global e, ao mesmo tempo, meticulosa, detalhada, de obediência”3. No cenário pós-feudal da consolidação dos Estados nacionais europeus, da Reforma e da Contrarreforma, essa arte expande-se “laicizase”, abrangendo um maior número de domínios: governo da casa e da família, dos pobres e mendigos, das forças armadas, cidades e Estados, governo do próprio corpo e do próprio espírito4. Como governar? “Questão fundamental, à qual respondeu a multiplicação de todas as artes de governar: arte pedagógica, arte política, arte econômica […] e de todas as instituições de governo”5. Se “a governamentalização é bem o movimento pelo qual se tratava, na realidade mesma de uma prática social, de sujeitar indivíduos por mecanismos de poder que reclamam para si uma verdade”, a atitude crítica será “o movimento pelo qual o sujeito se dá o direito de interrogar a verdade sobre seus efeitos depoder e o poder sobre seus discursos de verdade. Ora, a crítica será a arte da inservidão voluntária, da indocilidade refletida”6. Em Foucault, essa definição, especificamente, “não é muito diferente” nem muito distante da definição dada por Kant à Aufklärung em seu artigo de jornal de 1784 7. A partir da leitura do opúsculo kantiano de 1784, Foucault vincula a atitude crítica à retomada da tradição das Luzes. Não aquela da analítica da verdade, que busca estabelecer condições formais do conhecimento possível – e que, assim, pretendeu legislar de maneira universal sobre o que é ou não racional–, mas a retomada permanente da Aufklärung.
Se a questão da Aufklärung tem sido colocada desde o século XIX por seus intérpretes no marco do conhecimento e da ciência moderna (considerando seus efeitos ligados ao objetivismo, ao positivismo, ao tecnicismo e, daí os procedimentos que criticaram os efeitos na forma de uma análise das condições de constituição do saber legítimo, sobre a legitimidade dos modos de saber), urge orientar um procedimento diferente: retomar a questão da Aufklärung não pela via do conhecimento, mas do poder.
Retomada, portanto, da questão do governo. Kant teria definido a Aufklärung “em relação a um certo estado de menoridade no qual estaria mantida, e mantida autoritariamente, a humanidade”, minoridade como incapacidade “de se servir de seu próprio entendimento sem algo que seria justamente a direção de um outro” e que estaria em uma certa correlação com o exercício da autoridade, mas também com alguma coisa que Kant considera, que chama uma falta de decisão e de coragem.
Logo, para Foucault o poder governamental não é auto-evidente, não se pode considerá-lo estaticamente sob o domínio de uma lei incontornável, uma dominação ou senhorio. Deve ser considerado “sempre como relação num campo de interações”, trata-se de pensá-lo “em uma relação indissociável das formas de saber”, e num “domínio de possibilidades” que inclui sua reversão. A atitude crítica aparece ligada à seguinte perspectiva: como não aceitar ser conduzido, como não aceitar ser governado, não por esses meios e para esses fins? Como sugere o filósofo, as contracondutas deixam latente, a cada época, a crise da sua governamentalidade.
Os tradutores
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MICHEL FOUCAULT: O que é a crítica?
Tradutores independentes. Rio de Janeiro: Lug Editora, 2019.