OS SINTOMAS SÃO PÁSSAROS QUE BATEM O BICO NA VIDRAÇA – POR ANNE SAUVAGNARGUES

Os lapsos, os atos falhos, os sintomas, são como pássaros, que vêm bater seus bicos no vidro da janela. Não se trata de “interpretá–los”. Trata–se, isto sim, de situar sua trajetória para ver se eles têm condições de servir de indicadores de novos universos de referência, os quais podem adquirir uma consistência suficiente para provocar uma virada na situação.¹

Com esta bela fórmula, Guattari propõe uma nova teoria do trabalho do inconsciente e do sintoma, que doravante não mais caberá rebater sobre a interioridade pessoal de um sujeito, nem fixar numa ordem simbólica, mas considerar, à maneira de Deligny, como o ponto que emerge de um traçado − trajetória dinâmica que surge a partir do impacto do bico no vidro, sua linha de errância, corrente de ar e onda de choque.

Todos os elementos deste dispositivo condensam de modo muito forte e, como sempre, muito concreto, na obra de Guattari, a maneira em que ele pensa arrancar a psicanálise das derivas que ele considera reacionárias, por meio do método cartográfico da esquizoanálise. Esta fórmula, contagiosa em sua clareza pedagógica e em sua potência poética, contém uma crítica radical das formas personalistas e familialistas da cura centrada na normalização do paciente, a partir de, pelo menos, três proposições. Em primeiro lugar, o sintoma muda de natureza exatamente como ocorre na clínica, em que ele vale como revelador do estado psíquico do paciente. Pensado como ruptura, como crise que “toma” consistência no momento presente da análise, o sintoma se inscreve em uma concepção crítica com relação às práticas psicanalíticas que o compreendem como representante de um trabalho pulsional dado, que ele, o sintoma, produziria uma imagem fantasmática ou se estruturaria simbolicamente. São estas duas variantes da interpretação, imaginária ou simbólica, que Guattari recusa.

Em segundo lugar, para explicar esta concepção do trabalho do inconsciente e a maneira pela qual os processos primários surgem na consciência, Guattari faz precisamente uso de uma imagem. Não se trata de uma metáfora, do transporte de um sentido próprio a um sentido figurado que demandaria ser retraduzido em uma língua formal mais adequada, como se Guattari fosse incapaz de propor uma formulação clínica científica. A imagem teórica muda necessariamente de estatuto − assim como o sintoma clínico −, não podendo mais ser compreendida como um conteúdo manifesto ao qual seria preciso restituir o conteúdo latente. Não se trata nem de uma figura alegórica, onde a imagem concreta mascara um sentido próprio e reivindica que se restabeleça seu conteúdo formal, nem de uma estrutura simbólica significante: é este duplo modelo de interpretação que toda a empreitada de Guattari contesta ao propor uma experimentação que reivindica um paradigma mais estético do que científico. O sintoma torna–se um acontecimento e ganha sentido em um agenciamento concreto, que o orienta em direção a uma experimentação do porvir e não na direção única de uma interpretação do passado. Dito isso, podemos então conservar o vocabulário da metáfora, como o faz Guattari algumas vezes, sob a condição de compreendê–la como uma metamorfose, um deslocamento que produz, ao mesmo tempo, uma reconfiguração prospectiva do sentido produzido pelo sintoma. Mas, com esta transformação do estatuto da interpretação, uma nova prática da clínica é iniciada, e isso por razões políticas.

Ora, são as relações entre clínica e política que Guattari busca reformular, transformando a psicanálise em uma esquizoanálise para livrá–la de um enrijecimento que faz dela um componente da ordem social. Eis o terceiro aspecto desta fórmula de Guattari. Tais relações indicam sua confiança militante em uma prática terapêutica analítica, como mostra suficientemente seu engajamento em La Borde. No entanto, parece–lhe urgente retomar a análise do inconsciente e a prática do cuidado sob novas bases, através de uma crítica a um só tempo clínica e política, da psicanálise; e é isto que mostra, de fato, o uso que ele faz de uma imagem poética para transformar a teoria do sintoma.

Sintomas

O pássaro que bate na vidraça acena sua presença atrás do vidro − plano de separação, mas também superfície de aparição entre o analisando e o analista, membrana de contato e espelho falso. Como qualquer outro signo, um sintoma se individua por efeito de enigma: ele se atualiza, apresenta–se através de uma ruptura que é a–significante, pois não tem nenhuma significação determinada anteriormente, além de não remeter a um conteúdo latente que viria manifestar. A análise não consiste pois em substancializar estes pássaros, em nomeá–los, capturá–los ou abri– los em dois para ver o que eles contêm, à maneira dos adivinhos que liam o futuro em suas entranhas. O pássaro cumpre aqui o papel de um figurante qualquer do sintoma e não tem em si qualquer significação. Então, é preciso não focar a análise nele, já que este só ganha sentido em função de seu plano de atualização, exatamente como uma palavra composta de elementos a–significantes só se atualiza no sistema de signos de uma língua determinada. Por meio desta fórmula, Guattari se separa igualmente de uma posição lacaniana, a qual ligaria o sintoma a um sistema simbólico estruturando o inconsciente “como uma linguagem”.

Para Guattari, o inconsciente não é estruturado como uma linguagem, pois não saberíamos imprimir–lhe o modelo de uma formalização linguística unitária, que, a bem dizer, não convém nem mesmo para a própria linguagem. Guattari não concebe a língua como um sistema fechado, voltado apenas sobre si mesmo, mas como uma semiótica sempre em interação com outras semióticas não–linguísticas, sejam elas sociais, políticas, biológicas ou materiais: “as línguas fogem por toda parte e a formalização científica, mesmo a mais esotérica, não é exceção a essa regra.”² Este ideal de ordem e de formalização sistemática exaustiva não é operatório teoricamente, já que desconhece a plurivocidade de seu objeto, tanto em relação à língua como em relação ao inconsciente. Ele responde, na verdade, a uma pragmática do saber, a um empreendimento micropolítico de dominação e de repressão que nunca pode ser totalmente atingido, nem mesmo na Universidade ou em qualquer outra Escola – freudiana ou lacaniana −, mas que é sempre ativo, desde que seja escolhido como modelo único de teorização e que se feche a teoria sobre universais abstratos, separando–os de seus agenciamentos pragmáticos. Portanto, Guattari não contesta a existência de uma teoria do inconsciente, mas a tentativa de dominação de uma teoria com relação a outras tentativas de formalização, e, sobretudo, a sua abstração idealizante, que recusa abrir a estrutura sobre seu meio histórico concreto. “A estrutura do significante nunca é completamente redutível a uma pura lógica matemática. Liga–se sempre às diversas máquinas sociais repressivas.”³

Guattari o explica desde o início d’O Inconsciente Maquínico, obra inteiramente dedicada a emancipar a prática do inconsciente da tutela dos formalismos linguísticos, ou dos matemas topológicos, o inconsciente não deve ser considerado como “um inconsciente de especialistas do inconsciente”, “um minicinema interior, especializado em pornô infantil ou na projeção de planos fixos arquetípicos”, em outras palavras “não um inconsciente cristalizado no passado, petrificado em um discurso institucionalizado, mas, ao contrário, voltado para o futuro”4. É um inconsciente “maquínico” e não estrutural, povoado, sem dúvida, de imagens e palavras, mas povoado também de mecanismos de reprodução destas imagens e destas palavras. Ele não é, portanto, representativo ou expressivo, mas sim produtivo.

Como o inconsciente é produção, Guattari recomenda que “a inventividade das curas (…) nos distancie dos paradigmas cientificistas para nos aproximar de um paradigma ético–estético”5, orientado mais às práxis atuais que às regressões do passado. Isto implica renunciar ao dualismo consciente/inconsciente das tópicas freudianas, bem como a todas as oposições binárias correlativas, da triangulação edipiana ao complexo de castração. A esquizoanálise que propõe Guattari não é mais centrada, como a psicanálise, na análise de uma psique dada, como se o inconsciente fosse um dado apenas individual que pudesse ser conhecido em si. Ele concebe a subjetividade, assim como o inconsciente e a linguagem, sob um modo coletivo e impessoal, de maneira que o inconsciente implica múltiplos estratos heterogêneos de subjetivações, cuja consistência e extensão variam, e que não se pode reduzir a uma instância de determinação dominante segundo uma causalidade unívoca. Tal concepção “esquizo” do inconsciente e da análise não consiste nem em mimetizar o esquizo nem em valorizar o louco, mas em observar que o familialismo edipiano, válido somente para as neuroses, não pode ser tomado como uma codificação universalmente explicativa.

O esquizo contra Édipo

Esta concepção esquizoanalítica do inconsciente implica na crítica do complexo de Édipo: ele não deve mais ser tomado como uma propriedade natural do inconsciente, da mesma maneira que a libido não é uma sexualidade privada, individual, codificada unicamente pela família. É preciso abri-lo sobre o conjunto do campo social e é isso que está implicado na expressão “máquina desejante”. Desse modo, o complexo de Édipo deixa de ter o estatuto de uma estruturação inconsciente do desejo individual, e aparece como uma produção social determinada, como a forma que ele toma quando as máquinas desejantes que o agenciam são moldadas pelo processo de normalização social, típico da Europa burguesa do fim do século XIX e início do século XX. Sua operacionalidade limita-se a este campo de exercício e não pode, sem que haja condições para isso, exportar-se para culturas diferentes. Sobretudo, sua eficácia no interior deste campo é um produto da repressão social, de maneira alguma uma formação do inconsciente. Isto não quer dizer que não possamos localizar aqui ou ali sintomas que tomam a forma do complexo de Édipo, mas não se trata de um invariante da natureza humana, nem de um universal agindo em todas as culturas. A triangulação edipiana não é pois a natureza a-histórica do inconsciente descoberta pela análise, ela é exatamente o molde sócio-histórico no qual a interpretação jugula as sínteses inconscientes, e, se a interpretação psicanalítica pode operar este esmagamento das produções delirantes sobre os personagens familiais, é porque ela substitui a sociedade no processo de normalização social.

Guattari e Deleuze lembram que O anti-Édipo marca “uma ruptura que se faz por si só” em relação às concepções clínicas clássicas a partir destas duas proposições: “o inconsciente não é um teatro, mas uma fábrica, uma máquina de produzir”; não um inconsciente representativo ou expressivo de uma libido individual, “o inconsciente não delira sobre papai–mamãe”, mas sempre sobre “um campo social”6.

Guattari repete, desde 1965, que o inconsciente não trabalha sobre dados exclusivamente familiares, mas é ativo sobre o conjunto do campo social7: o complexo de castração não pode ser reduzido a uma tópica individual, e o complexo de Édipo exige que se leve em conta sua situação social, sua “engrenagem” de significantes sociais. Trata-se de uma crítica marxiana da psicanálise, pois Guattari aplica ao inconsciente freudiano a crítica do fetichismo da mercadoria que se encontra na obra de Marx: as formas que o inconsciente toma são determinadas por um processo social, em nada imaginário, no qual a forma social do trabalho do inconsciente é tomada erroneamente por uma qualidade que ele possuiria por natureza. Por não compreender sua operação real, pensa-se o inconsciente como representativo ou expressivo. A análise marxiana do fetichismo da mercadoria é aplicada ao trabalho do inconsciente: é Marx quem substitui em sua análise do processo da mercadoria a noção de metáfora expressiva pela de metamorfose real. A forma–mercadoria apresenta-se misteriosa, tanto que não identificamos as relações de dominação do trabalho social concreto que ali se cristalizam, exatamente como o familialismo edipiano transcreve complexos reais de dominação social como figuras do imaginário8.

O modo como Freud interpreta os sintomas, em termos de figuras parentais privadas, é apenas uma indicação suplementar para suspeitar que a análise não passe de uma instituição de normalização social, que surge, em dado momento, no desenvolvimento da sociedade burguesa que ela acompanha e reforça. O segundo momento desta crítica da psicanálise se apoia sobre a crítica da psiquiatria que se encontra na obra História da Loucura. Foucault mostrou que a psiquiatria, como disciplina normativa, ao falar em nome da razão, da autoridade e do direito, contribuiu em sua dupla relação com os asilos e com os tribunais para o desenvolvimento da burguesia e se inseriu em um processo social determinado. O desenvolvimento da psiquiatria participou do desenvolvimento da família burguesa e de sua polícia social, destinando à loucura um lugar à margem da justiça, além de atrelar a perícia médica ao desenvolvimento do direito penal. A psicanálise se inscreve no prolongamento deste movimento e termina de ligar a loucura ou a perturbação psíquica à instituição da família burguesa, pensando-a como “o incessante atentado contra o Pai”, chefe da família exercendo sua tutela sobre as mulheres e os menores submetidos à sua autoridade9. Por esse motivo, consideram Guattari e Deleuze em O anti-Édipo, a psicanálise não participa de “um empreendimento de efetiva liberação”, mas “participa na obra mais geral de repressão burguesa, aquela que consistiu em manter a humanidade europeia sob o jugo do papai-mamãe, e a não dar um fim a este problema”10.

Daí a crítica mais forte à psicanálise, segundo estas duas proposições que definem o ponto de partida de O anti–Édipo: o inconsciente não é representação, mas produção; ele não codifica as estruturas da família privada e imaginária, mas a atualidade da história social, real e coletiva. A clínica se abre para a política: esta era, desde o início, a proposta da psicanálise institucional conduzida em La Borde.

O complexo de castração, do qual depende o complexo de Édipo, só pode achar uma solução satisfatória quando a sociedade lhe confia um papel inconsciente de regulação e de repressão social, e quando a psicanálise se apresenta como órgão inconsciente de seu ideal normativo de adaptação social. Deleuze e Guattari resumem assim a crítica do Édipo: “familiar ou analítico, Édipo é fundamentalmente um aparelho de repressão das máquinas desejantes, e de modo algum uma formação do próprio inconsciente.”11

Passamos então do teatro à fábrica: o inconsciente não se expressa no palco de uma cena fantasmática, onde os atores de um drama burguês (papai-mamãe) representam diante de um público composto pelo analisando mistificado e o terapeuta esclarecido. O trabalho primário do inconsciente não se limita a este espaço fictício, delimitado pelas luzes da ribalta, surgindo como em sonho sob a forma de fantasmas imaginários ou de sintomas reais, em que a representação libera sua mensagem simbólica, cuidadosamente mantida à distância pelo dispositivo do palco, a sala, o jogo dos atores − sem levar em conta naturalmente o caráter real, e não ficcional, do teatro como dispositivo social. O inconsciente deve ser pensado segundo o enquadre real de uma fábrica de produção social onde o desejo é usinado, formatado, passando da matéria prima (o fluxo hilético) ao produto de consumo. Não funciona conforme o regime da representação imaginária, mas como uma produção real; não é expressivo, mas produtivo em todo o conjunto do campo social, e não somente nos personagens da família. A destruição das pseudoformas expressivas do inconsciente desqualifica o regime da interpretação na cura se separa os enunciados de seus agenciamentos coletivos de enunciação, que concernem em primeiro lugar à cura, mas também a outros agenciamentos que se exercem simultaneamente. Ligar o inconsciente ao real político é pois considerá–lo como uma máquina produtiva e não como uma representação teatral12.

De sua parte, igualmente, Lacan criticava a universalidade do complexo de Édipo e dava primazia às psicoses, preconizando um retorno a Freud, hostil ao fato de o foco da análise operar sobre um eu, o qual se tentaria adaptar melhor. Lacan propugna um retorno a Freud fazendo o trabalho do processo primário do inconsciente tender a uma operação estrutural de tipo linguística, para despsicologizar o sintoma. Ele articula o inconsciente freudiano com os resultados da linguística para liberar o plano simbólico de toda intencionalidade individual: “Fica claro, de todo modo, que o sintoma se resolve inteiramente numa análise de linguagem, porque ele próprio é estruturado como uma linguagem, por ser uma linguagem cuja fala deve ser liberada”13. Lacan não se detém como Freud no deslocamento e na condensação, mas se apoia na análise estrutural do sentido, resultante da correspondência entre significados e significantes, inspirado por Saussure e Lévi–Strauss. Ele retoma esta concepção do simbólico, mas pensa a articulação das linhas flutuantes de significados e significantes relativos como a introdução simbólica de um Significante maior, grande Outro ou Nome-do-Pai, que introduz violentamente o sujeito na ordem simbólica e o estrutura como um resto. A partir daí já não podemos apreender o processo significante da linguagem fora da imposição de uma ordem simbólica inconsciente, significante maior, falo ou Nome-do-Pai. É este processo que separa e cria, mediante seu ato de corte, a ordem das significações, inclusive linguísticas.

Lacan puxa Freud em direção à preponderância da função paterna, com sua concepção do Significante, responsável pela diferença dos sexos e portador do falo − um falo não anatômico, mas significante, ferrolho simbólico da diferença dos sexos, tanto para os homens quanto para as mulheres. Ele opera um recentramento da teoria freudiana sobre a questão do pai14 e transpõe a segunda tópica de Freud – Supereu, Eu, Isso –, anatômica demais para seu gosto, sobre a grade estrutural do simbólico (supereu), do imaginário (eu) e do real (isso). As instâncias parentais de identificação tornam-se tensores significantes, cujos lugares lógicos e topológicos convergem em direção ao primado do Significante, ou seja, girando em torno da questão do pai. Aí está a grande herança freudiana que, segundo Lacan, os sucessores encobriram, pois se centraram na relação de objeto, quando não transformaram a análise em um exercício de adaptação do eu. Para Lacan, trata-se de evitar a relação de objeto que privilegia a posição imaginária do fantasma e se centra na relação mãe–filho. Só a função fálica o permite, porque nos introduz na ordem simbólica. Ora, esta análise da função paterna e seu desdobramento do significante, combinada com a transcendência absoluta do significante maior, se tornam possíveis pela psicose, e implicam, ao mesmo tempo, a relatividade do complexo de Édipo, que é apenas aplicável à neurose. Para Lacan, é “em um outro registro”, não o de Édipo, “que é preciso abordar o que se passa na psicose”15.

Não saberíamos dizer melhor que o complexo de Édipo afeta a estruturação imaginária significante do neurótico e não concerne à estruturação psicótica: neste ponto, Guattari é sucessor de Lacan e não de Freud. Temos então duas consequências que Guattari tira daí com muita força. Primeiro, a primazia do significante segundo Lacan resulta na relatividade do complexo de Édipo, que só é funcional a título de estrutura significante para um sujeito já articulado pela triangulação e submetido à ordem simbólica, e não para um sujeito psicótico. Édipo não é operatório para as psicoses. Isso já assinala uma historicidade do complexo de Édipo que Guattari faz repercutir sobre o significante enquanto tal. Guattari tira claramente do ensinamento de Lacan a necessidade de uma crítica do complexo de Édipo16, e opta, ele também, pela psicose como objeto teórico capaz de esclarecer as sínteses inconscientes: “Sob certos aspectos, Freud sabia perfeitamente que seu verdadeiro material clínico, sua base clínica lhe vinha da psicose, via Bleuler e Jung. E isso não cessará: tudo o que surgir de novo na psicanálise, de Melanie Klein a Lacan, virá da psicose”17. Mas se ele retém de Lacan a urgência de criticar Édipo, ele lhe dá uma versão radicalmente diferente.

Esquizofrenia e política

Lacan reduz Édipo a uma etapa enganosa da topologia simbólica da constituição do sujeito; Guattari o entende como um agenciamento sociopolítico de codificação do desejo. Para Lacan, igualmente, à diferença dos freudomarxistas como Marcuse ou Reich, não existe nenhum espontaneismo do desejo, nenhum desejo anterior a sua codificação social. Mas sobre esta codificação os dois autores diferem. A escolha de uma clínica orientada para a paranoia, em Lacan, e de uma clínica orientada para a despersonalização esquizofrênica, em Guattari, já o mostrava. Deleuze, com sua crítica da falta, sua análise das relações plurais entre desejo e lei na obra Sacher–Masoch, sua crítica da função paterna, encoraja Guattari em sua urgência de sair da posição lacaniana. Mas Guattari não se contenta em criticar a concepção da lei como invariante transcendente e o desejo como falta: ele entende a lei como estrutura de dominação social positiva, perspectiva esta que faltava completamente a Lacan.

É então com Marx e sua crítica política da lei e do direito, como instituições sociais, que é preciso retomar a crítica do significante e da ordem simbólica lacaniana. Não se trata mais de interpretar, mas de experimentar, segundo a bela fórmula de Deleuze e Guattari em Kafka: por uma literatura menor:

Acreditamos apenas em uma política de Kafka, que não é nem imaginária nem simbólica. Acreditamos apenas em uma ou mais máquinas de Kafka, que não são nem estrutura nem fantasma. Acreditamos apenas em uma experimentação de Kafka, sem interpretação nem significância, mas somente protocolos de experiência18 .

Esta fórmula, tantas vezes citada e analisada no contexto literário de uma crítica da interpretação, deve ser simultaneamente conduzida à sua dimensão clínica e política. Ela explica como uma referência ao paradigma estético pode se revelar mais operatória do que o paradigma científico para expor a complexidade do inconsciente. Nem a psicoterapia, em que a análise é exclusivamente centrada na cena familiar, no complexo de castração e no complexo de Édipo, nem a estrutura simbólica com seu despotismo do significante e seu formalismo lógico-científico, podem ser ali suficientes. Mas ainda, as formalizações abstratas das metalinguagens desempenham sempre de maneira pragmática o papel de uma garantia dos agenciamentos de poder e, em primeiro lugar, do estatuto “[social] de seus notáveis e de seus escribas”19. A esquizoanálise, por sua vez, coloca em primeiro lugar a crítica contra si mesma: os cuidadores [terapeutas] estão necessariamente inscritos em uma estrutura de institucionalização do cuidado, o que Guattari não contesta de modo algum, estando ele mesmo em La Borde – uma estrutura certamente alternativa –, no entanto ele recomenda, a cada um, uma maior vigilância com relação aos mecanismos de reprodução da dominação que operam nas instituições e em seus agentes.

Sob outro aspecto, aliás, a referência a Kafka é decisiva, pois a crítica da interpretação significante enquanto imaginária não implica somente uma contestação do estatuto edipiano da literatura – Kafka e Proust figuravam como os dois grandes edipianos20, tão facilmente reduzidos a uma relação neurótica com a lei – e uma recusa de toda “edipianização” da literatura ou da arte. Ela implica, sobretudo, a confrontação direta com a posição transcendente da lei lacaniana, e o termo esquizoanálise envolve uma crítica do significante maior, que passa pela valorização da esquizofrenia.

O delírio psicótico se faz assim histórico-mundial e não fantasia privada, como Guattari o afirma desde Psicanálise e Transversalidade: “o sujeito se encontra desmembrado pelos quatro cantos do universo histórico, (…) ele alucina a história.”21 Dito de outro modo, o delírio não versa sobre o Nome-do-Pai, mas sobre todos os nomes da história22; e o pai é colocado nesta posição despótica tão-só naquele determinado agenciamento em que se inscreve o simbólico. É por isso que Guattari, escrevendo O anti–Édipo com Deleuze, articula a análise da esquizofrenia àquela do capitalismo.

Isto explica a distribuição do conceito de esquizofrenia segundo os dois limites do processo molecular do desejo e do desmoronamento psicótico do doente internado, proveniente do molar, do modo de subjetivação capitalista. Do ponto de vista molecular, a esquizofrenia em O anti-Édipo designa o processo em geral, o nome indeterminado do fluxo que as máquinas desejantes formam, qualificando positivamente sua valência ativa; enquanto o artificial “esquizo” é designado em seu lugar de indivíduo sofredor, inadaptado social, apenas do ponto de vista molar dos fenômenos de grupo, na medida em que sucumbe às afecções reativas da codificação capitalista. Artaud, o Esquizo, aparece assim como um experimentador do social: ele “fura o muro do Significante”, mas a posição anômala, extrema e arriscada que ele ocupa diante da codificação social lhe permite denunciar a fabricação do interno psiquiátrico, assim como a edipianização da literatura ou dos sujeitos em geral.

Guattari não opõe de maneira binária o fluxo revolucionário do processo desejante ao fascismo dos investimentos reacionários, mas insiste na carga de crítica social da psicose, e no risco permanente que ela comporta de voltar-se para a interrupção do processo. “A esquizofrenia é ao mesmo tempo o muro, a abertura no muro e os fracassos desta abertura”23. Ela indica como as máquinas desejantes se dobram, ou não, aos modos de codificação inconscientes e aos modos de subjetivação social. Por esse motivo, assinala o processo de codificação das máquinas desejantes (o muro), a abertura com suas eventuais novas codificações, mas também seus possíveis fracassos na direção de um recolhimento catatônico. Ela leva em conta a codificação social lá onde ela rateia. Como o sintoma, a arte mas também as diferentes práticas sociais têm esta faculdade de perfurar, linha de fuga que não consiste apenas em escapar de um agenciamento dado, mas em construir uma alternativa: esta linha, todavia, nem sempre tem êxito, e se transforma, por vezes, em uma linha ainda mais desfavorável que o muro inicial. Toda a dificuldade da valorização da esquizofrenia aponta para seu duplo estatuto: ela surge como uma alternativa à edipianização – codificação de adaptação social –; e indica uma produção social alternativa do desejo, mesmo que continue a ser o nome de uma perturbação psíquica, que Guattari trata em La Borde.

Clínica

Assim, o sintoma, os atos falhos, os lapsos, etc., e toda manifestação do inconsciente, não devem mais ser compreendidos como uma linguagem, nem tomados como um significante simbólico, nem analisados como um fantasma individual. Guattari amplia a atualização pontual do sintoma, que inclui, doravante, a partir desta crítica, a trajetória, o choque do bico, a resolução – e não se limita mais ao pássaro. Dilatado em sua dimensão temporal, o sintoma deixa de ser reconduzido exclusivamente ao passado e se determina como crise, um algo = x, que só poderemos tomar em função da onda de choque que ele provoca a partir de seu choque inicial, kairos, instante decisivo de atualização, que provoca ou não uma reviravolta da situação. Portanto, o sintoma não deve ser traduzido conforme uma modelização reducionista da psicanálise como mapa do passado, mas usado para experimentar devires, cartografias de um porvir possível. A esquizoanálise não leva em conta apenas o bico de contato ou o pássaro indeterminado e, necessariamente, incognoscível, mas suas trajetórias, o conjunto do dispositivo.

As trajetórias não são dadas, elas mesmas, como um traçado, mas como um programa “para enxergar”, lúdico e condicional – se é para enxergar, ele é sem garantias –, sob a condição de que possam “servir de indicadores de novos universos de referência, que poderiam adquirir uma consistência suficiente para provocar uma virada na situação.”24 Fazendo-se experimentação, o trabalho analítico volta-se inteiramente para o lado da prática e se define como uma prática clínica, aventureira e prospectiva, não como uma ciência exata dedutiva e definida. Todos os componentes da análise são assim transformados.

Primeira consequência decisiva: o sintoma ganha uma significação, que permanece da ordem da experimentação. É uma significação que surgirá quando formos capazes de observar os tipos de mudanças pragmáticas produzidas na situação. Portanto, não se trata de uma significação dada, mas de um efeito de sentido, programático já que ele está por vir, e pragmático, ou seja, engrenado com seu agenciamento coletivo. O fato de ignorarmos de onde sai o pássaro ou em qual direção ele se precipita não é uma ameaça para o processo da análise, pois o caso clínico está sempre em processo de cura. Considerar o sintoma como uma essência dada, cujo conteúdo poderíamos exaustivamente restituir, reconduzindo-o a sua suposta origem traumática e temporal (a “origem do fantasma”) ou estrutural e significante, remete aos dois modos da interpretação que Guattari contesta: o imaginário e o estrutural.

Trata-se menos ainda de projetá-lo em direção a um ponto de resolução em um futuro suposto (a cura) que o orientaria teleologicamente. Ele não tem causa nem fim. Pouco importa que o sintoma, fragmento cinético, não nos diga de onde vem, nem para onde se dirige, pois seu papel operatório não é ligado aos termos estáticos de seu projeto, partida e chegada, segundo uma concepção obsoleta do movimento que o reduz a suas estações de repouso. Ele é trajetória, devir. O sintoma é sempre plural e como tal ele é agenciamento, fragmento cinético, ponto de vista que se abre sobre uma reconfiguração do território: ele é uma encruzilhada.

Segunda consequência também decisiva: nenhum sintoma, sonho, lapso ou outra formação do inconsciente tem sentido fora do agenciamento do cuidado [tratamento] ou de qualquer outro contexto de aparição. Sua atualização estabelece sempre uma relação, remete à cartografia externa de sua atualização real, à situação na qual ele surge e ganha sentido, batendo contra a vidraça da escuta flutuante, distraída do analista. Já que se trata de uma tomada de sentido pragmática, que se efetua no agenciamento definido e que depende de seu meio pré-individual, poder-se-ia dizer que um mesmo sintoma ganhará sentidos diferentes em diferentes agenciamentos, mas, na verdade, não existe o “mesmo” sintoma, já que o sintoma não tem por si só existência fora deste choque, desta crise, deste efeito enigmático de aparição na janela. Longe de ser redutível a uma cápsula significante indiferente ao seu contexto de enunciação, o sintoma ganha sentido em função de sua capacidade de reconfiguração, de produção de pontos retroativos, ou de vetores de transformação capazes de mudar a situação. Ele nos confronta com “uma multiplicidade de cartografias”, tanto as do analista quanto aquelas do analisando, mas também com aquelas de sua família, dos diferentes espaços que ele atravessa, e isto sem que uma formalização a priori destes espaços seja possível, nem mesmo desejável. A partir da ruptura a-significante disparadora (choque do bico), ele surge como cruzamento de linhas retrospectivas e prospectivas: é ele quem cria seu tempo, seu antes e seu depois.

A análise não é mais interpretação transferencial de sintomas em função de um conteúdo latente preexistente, mas invenção de novos focos catalíticos suscetíveis de fazer bifurcar a existência25.

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Tradução: Adriana Barin de Azevedo. Revisão Técnica: Damian Kraus. Publicado no Caderno de Subjetividades, 2012.

Notas:

1. Guattari, F.; Rolnik, S. Micropolitiques. Tradução Renaud Barbaras. Paris: Les Empêcheurs de Penser en Rond, 2007, p. 323 [Micropolítica: cartografias do desejo. 7. edição revisitada. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005, p. 269].

2. Guattari, F. L’inconscient machinique. Essais de schizoanalyses. Paris: Recherches, coll. “Encre”, 1979, p. 10 [O inconsciente maquínico: ensaios de esquizoanálise. Tradução Constança M. Cesar e Lucy M. Cesar. Campinas, SP: Papirus, 1988].

3. Guattari, F. La Révolution Moléculaire. Paris: Recherches, coll. “Encre”, 1977, p. 231 [O divã do pobre. Psicanálise e Cinema. Coletânea do n. 23 da revista Communications, Comunicação/2. Lisboa: Relógio d’Água, 1984].

4. Guattari, F. L’inconscient machinique, op. cit., p.7–8 [p. 9–10].

5. Guattari, F. Chaosmose. Paris: Galilée, 1992, p. 20 [Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 1992, p. 18]

6. Deleuze, G. Pourparlers. Paris: Minuit, 1991, p. 197 [Conversações. Tradução Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992, p. 180].

7. Guattari, F. La transversalité. Psychothérapie institutionnelle, n. 1, 1965, p. 92 [A transversalidade. In: Guattari, F. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. Tradução Suely Rolnik. São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 88–105].

8. Marx, K. Le capital, livre I, chap. 1, s. 4 [O capital. Tradução Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, Livro I, vol. I, seção 4].

9. Deleuze, G.; Guattari, F. L’Anti–OEdipe. Capitalisme et schizophrénie. Paris: Minuit, 1972, p. 58–59. As citações foram extraídas de Foucault, M. Histoire de la folie à l’âge classique. Plon: 1961, p. 588–589 e da reedição da Galimard, coll. “Tel” p. 510 [O anti–Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Tradução Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2010, p. 71].

10. Deleuze, G.; Guattari, F. L’Anti–OEdipe, op. cit., p. 59 [p. 71].

11. Deleuze, G. Pourparlers, op. cit., p. 29 [p. 27–28].

12. Deleuze, G.; Guattari, F. L’Anti–OEdipe, op. cit., p. 196 [p. 221].

13. Lacan, J. Fonction et champ de la parole et du langage (1953). In: ___. Écrits. Paris: 1966, re-editado em dois volumes pela Seuil, coll. “Points”, 1971, tomo 1, p. 147 [Função e campo da fala e da linguagem em Psicanálise. In: ___. Escritos. Tradução Vera Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 133].

14. Lacan, J. Le Séminaire 1955–1956. Paris: Éditions du Seuil, 1983, tomo III, Les psychoses, p. 360 [O Seminário. Livro III, As Psicoses. Tradução Aluísio Menezes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988].

15. Lacan, J. Séminaire 1955–1956, op. cit. p. 304 [p. 304].

16. Ibidem, p. 360. Ver ainda L’Anti–OEdipe, op. cit., p. 62 e 206 [p. 359. Veja também Deleuze, G.; Guattari, F. O anti–Édipo, op. cit., p. 75 e 231–32].

17. Deleuze, G. Pourparlers, op. cit., p. 27 [p. 26].

18. Deleuze, G., Guattari, F. Kafka. Pour une littérature mineure. Paris: Minuit, p. 14 [Kafka. Por uma literatura menor. Tradução Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 1977, p. 13 e Deleuze, G.; Guattari, F. Kafka. Por uma literatura menor. Tradução Cintia Vieira da Silva. Belo Horizonte: Autêntica (no prelo)].

19. Guattari, F. L’inconscient machinique, op. cit., p. 12 [p. 13].

20. Deleuze, G.; Guattari, F. L’Anti–OEdipe, op. cit., p. 473 e Kafka, op. cit., p. 14 [respectivamente p. 518 e p. 15].

21. Guattari, F. Psychanalyse et transversalité. Paris: François Maspero, 1972, préface, p. I–XI [Deleuze, G. Três problemas de grupo. In: Guattari, F. Psicanálise e Transversalidade. Ensaios de análise– institucional. Tradução Adail U. Sobral e Maria S. Gonçalves. Aparecida: Ideias e Letras Editora, 1972, prefácio, p. 7–9]. Esta referência encontra–se também no texto “Trois problèmes de groupe” [1972]. In: Deleuze, G. L’île Deserte et autres texts: Textes et entretiens 1953–1974. Org. David Lapoujade. Paris: Minuit, 2002, p. 273 [Três problemas de grupo. Tradução Cíntia V. da Silva. In: Deleuze, G. A Ilha Deserta e outros textos. Org. David Lapoujade. Organização e revisão técnica da ed. bras. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Iluminuras, 2005, p. 251].

22. Trata–se de uma resposta ao livro de Laplanche, J. Hölderlin et la question du père. Paris: PUF, 1961, e ao artigo de Foucault, M. Le ‘non’ du père. Critique, n. 178, mars 1962 [Hölderlin e a questão do pai. Tradução Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Zahar, 1991 e O ‘não’ do pai. In: Foucault, M. Problematização do Sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. Ditos e Escritos I. Organização Manoel B. da Motta. Tradução Elisa Monteiro. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1999, p. 169–183].

23. Deleuze, G.; Guattari, F. L’Anti–OEdipe, op. cit., p. 161–2 [p. 184].

24. Guattari, F.; Rolnik, S. Micropolitiques, op. cit., p. 323 [p. 269].

25. Guattari, F. Chaosmose, op. cit., p. 35 [p. 30].

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