PENSAMENTO-RAIO OU A FAÍSCA – por RADMILA ZYGOURIS

Transcrição do seminário do dia 17 de dezembro de 2000. Traduzido por Denise Caccese Perroti.


Lembrete

No ano passado tentei falar sobre um “Além do princípio de Realidade”, concentrando minhas observações na importância do Princípio de prazer como garantia da vida e da necessidade de manter, no seio da situação analítica, uma separação concebível entre   vínculo e transferência. O vínculo  pertence ao que circula entre dois humanos face a face, que lhes escapa em parte e que não depende de uma interpretação; ele representa o ser vivo sensível enquanto buraco central no corpo da análise; quanto à transferência, eu a reservei para o que depende de interpretação, enunciada ou não. Também falei longamente de Balint e das três zonas psíquicas e, mais particularmente, do “Defeito Fundamental” que me parecia importante para esse propósito.

Neste ano gostaria de falar sobre o pensamento. Pensamos o tempo todo, no estado de vigília e no estado de sono. É preciso distinguir o processo, isto é, o pensamento como atividade – consciente ou inconsciente – do pensamento como produto, que pode se tornar um objeto separado. Há um perpétuo ir e voltar entre o consciente e o inconsciente, entre processo e produto.

Introdução

Dizemos que fazemos análise para falar e para melhorar, por causa da talking-cure. É verdade, é a atividade essencial: ao mesmo tempo falar para alguém e falar com alguém. Para muitos pacientes isso é difícil, para outros o essencial se coloca, não pelo que se diz, mas pelo que é delineado em silêncio, de certa maneira subentendido nas palavras. Mas não podemos deixar de nos perguntar em que e como o paciente pensa. Além disso, depois de um longo silêncio, perguntamos: “no que você está pensando?” Isso supõe que o outro pensa. No mínimo supomos que o outro pensa. Não estamos errados. Mas como ele pensa? Pensar não é necessariamente ser racional. Além disso, a regra fundamental quer que convidemos o paciente a dizer tudo o que lhe vem à mente, mesmo que pareça absurdo ou sem interesse.

Eis uma especificidade da abordagem psicanalítica: só a análise dá tanta importância, ou até mais, ao que surge de maneira não racional, só a análise admite como pensamentos sérios aqueles que parecem vir de lugar nenhum, aqueles que parecem “desligados” de todo contexto. Só a análise tornou aceitável a ideia, conhecida por tantos artistas e criadores, que pensamentos se pensam e acontecem sem que o sujeito consciente tenha o controle. Dizemos que há pensamentos inconscientes – como, por exemplo, no sonho – tudo isso não é evidente. Esses pensamentos inconscientes podem ser deduzidos, exercício perigoso, ou podem surgir no estado de desatados. São pensamentos soltos. Então, para que adquiram o estado de pensamentos reconhecidos como tal pelos outros, é preciso que sejam religados. Ligados a quê? Aos outros pensamentos, aos pensamentos dos outros, à realidade compartilhada. Em um momento ou outro, devemos considerar a realidade compartilhada, pois os pensamentos devem ter uma estrutura, isto é, um referente comum.

Abordar o pensamento é um vasto programa. Existe uma literatura importante.

Para o que nos interessa, eis como vejo as coisas, partindo do mais simples que encontramos nas discussões cotidianas na clínica.

Há três espécies de pensamentos: pensamentos relacionados, pensamentos desatados e pensamentos clivados. Os pensamentos relacionados são os que se inserem na rede associativa ou lógica, que seguem uma racionalidade reconhecida que os enquadra. Quando raciocinamos, quando falamos na vida cotidiana, nossos pensamentos são relacionados, não somente entre eles, mas também com os do interlocutor, presente ou virtual; têm o mesmo referente.

Os pensamentos desatados são os que parecem chegar sozinhos, para os quais não dispomos de círculo associativo nem discursivo. Nós os conhecemos como “associações livres”, o Einfall como dizia Freud e, em inglês, Insight. Assim como os pensamentos relacionados, seu conteúdo é variável. Pode ir de uma imagem significativa, reveladora, a uma conceituação, até mesmo a uma solução de um problema matemático que surge de manhã ao acordar.

Os pensamentos clivados são pensamentos que se apresentam como pertencendo ao puro discurso racional, os que chamamos de intelectual (muitas vezes injustamente), sem qualquer representação subjetiva e afeto. Atividade cognitiva que seria livre de qualquer apego emocional. Frequentemente ignoramos que a verdadeira atividade intelectual está sempre ligada a um afeto, de uma maneira ou outra. Quando há clivagem, há, então, uma patologia. Digo de maneira um pouco lapidar, mas teremos a oportunidade de voltar ao assunto. É difícil abordar um assunto quando ele é tão complexo!

Finalmente, não são os pensamentos como tal que me interessam, mas seu nascimento e seu relacionamento com a vida psíquica.

No ano passado, eu disse que a tradução do termo freudiano Einfall por associação livre não era boa, pois esses pensamentos chegam justamente dissociados do contexto, surgem sem aviso, sem estar aparentemente ligados ao que se está dizendo. Sugeri chamá-los de “faísca” ou “pensamento-raio” por causa de seu aparecimento brusco e solto. Em vez de chamá-los de “associações livres”, deveríamos chamá-los de “dissociações livres”.

Eu estava escrevendo este seminário quando, de repente, me lembrei de como me veio a ideia de falar sobre “isso pensa”. Tinha me esquecido de meu próprio Einfall. Neste verão, acordei uma manhã bem cedo, por volta das 4 horas, com pensamentos em mente. Acredito que foram eles que me acordaram. Rapidamente peguei alguma coisa para escrever e, de uma só vez, anotei o que me vinha à mente, como diriam, tudo pronto. Chamei de Visão Geral. Escrevi aproximadamente durante uma hora sem parar, diria sem pensar, ou melhor, sem criticar. Estava tudo pronto. Depois deixei de lado.

Redigindo o seminário de hoje, quando estava quase acabando, lembrei-me da minha “visão geral”. Resolvi, então, deixar para a próxima vez uma parte do que tinha preparado para hoje e mostrar o que havia pensado e que, literalmente, me despertou. Não é um sonho, mas surgiu de minha atividade mental noturna, relacionada, evidentemente, com o que me preocupava. Peço desculpas pela forma ligeiramente seca. Apresentou-se em 25 pontos. Não mudei nada, apenas organizei algumas frases muito complicadas, o resto simplesmente eu copiei, a forma e a ordem permaneceram as mesmas.

Visão geral

1. O pensamento-raio surge subitamente, sem aviso, com uma rapidez incrível. Muitos artistas e cientistas falaram desse tipo de pensamento, o qual é preciso depois fundamentar, dar corpo em função do domínio abordado por um trabalho às vezes muito árduo. Para o cientista, trata-se de demonstrar a validade; para o artista, de colocá-lo à prova realizando a obra. Mas a ideia inicial, a primeira realidade mental, aparece ao sujeito como um flash. Tratando-se de criadores, isso se chama inspiração. A procura de uma solução exige um trabalho prévio. Um matemático que procura uma solução pensa durante vários dias, depois adormece, não se recorda obrigatoriamente de um sonho, mas ao acordar ele tem a solução que procurava para o problema. Durante a noite, sua atividade mental continuou. Isso pensa mesmo quando ele dorme.

A análise é a única abordagem que permite ao homem comum conhecer o pensamento-raio – experiência normalmente reservada aos criadores – experimentar seus méritos, integrá-lo ao pensamento lento e discursivo e, portanto, se apropriar de seu conteúdo de maneira duradoura.

2. Podemos dizer que o pensamento caminha na mesma velocidade do impulso nervoso. A única resistência que diminui a velocidade da luz é a matéria que veicula o impulso, é o substrato da matéria biológica humana que é materializada pelas conexões entre os neurônios, matéria viva.

3. Para se comunicar o homem recorre à linguagem, é o meio de comunicação mais específico da espécie humana. Se ele pode pensar na rapidez de um impulso nervoso, ele só pode manifestar seu pensamento com a ajuda da linguagem, portanto a uma velocidade bem menor.

4. A linguagem, como meio de comunicação, é muito lenta. As abelhas, por exemplo, têm um meio de comunicação bem mais rápido. A linguagem adquiriu autonomia em relação a seus utilizadores, ela permite a existência de abstrações cuja vida útil excede a dos indivíduos, o que lhe confere superioridade em relação aos outros meios de comunicação.

5. A lentidão da linguagem se deve ao fato de que ela deve se desdobrar no tempo das frases. Tem que obedecer à sua sequência. O homem fala e a palavra se inscreve no mundo do som, um som sucede a outro som, a voz toma emprestada a flecha do tempo, que não pode ser apreendida instantaneamente como acontece no caso da imagem.

6. No sonho, que é, sobretudo, pensamento não discursivo — onde prevalecem as imagens — o pensamento é rápido. Às vezes, lidamos com o pensamento-raio.

7. O sonho para se transformar em narração usa a linguagem, por isso torna-se um meio de comunicação lenta. Atualmente alguns pesquisadores fazem diferença entre dois tipos de memória: a memória analógica — que seria uma memória rápida, as imagens — e uma memória cognitiva — que seria uma memória lenta, discursiva. Segundo eles, o sonho poderia utilizar esses dois tipos de memória, mas, essencialmente, a memória analógica. Na narrativa do sonho, ambas só podem se unir pela necessidade da transformação do analógico em cognitivo, isto é, discursivo, exceto certas imagens de sonhos que permanecem inexplicáveis, provavelmente depositárias de condensações decorrentes do pensamento analógico, rápido. Dizemos: não sei descrevê-lo. Deveríamos dizer: não sei “desdobrá-lo”.

8. Existem outros meios de comunicação entre os humanos, meios não verbais, que permaneceram no estado embrionário. Depende geralmente do que chamamos de intuição, empatia, telepatia, a maneira incompreensível, para as pessoas comuns, da comunicação entre alguns gêmeos, por exemplo, os telepatas. Geralmente suscitam a desaprovação dos meios científicos, pois fogem não somente da racionalidade, mas também da competência comum à maioria das pessoas,  o que é então assustador.

9. A comunicação entre os indivíduos depende dos interesses da espécie, e os interesses da espécie humana privilegiam a competência da linguagem articulada como forma de comunicação. Essa é a hipótese formulada por mim. Além dos aspectos autodestrutivos de certos comportamentos humanos, como as guerras (mas não sabemos se nem mesmo as guerras obedecem às regras da espécie), penso que, sem saber, o ser humano obedece amplamente, nos seus comportamentos, aos interesses de sua espécie. Freud dava grande importância a esse fato, falava de autopreservação no nível individual, mas acho que convém acrescentar a noção do interesse da espécie que controlaria, então, a transmissão hereditária e as modificações lentas da capacidade de adaptação humana ao meio ambiente.

10. O pensamento não é por si só de essência discursiva, ele é, sobretudo, apreendido das relações entre as coisas. O imperativo, que vem do coletivo para comunicar o pensamento pela linguagem, nos faz supor que o pensamento fora da linguagem não existe. No entanto, constatamos que os autistas podem pensar e, em particular, encontrar soluções lógicas e matemáticas. (Retornarei a esse assunto num próximo seminário.) Além disso, muitos artistas e pesquisadores dizem que têm intuições e pensamentos (podemos dizer aqui “sentires”) sem palavras. Assim, Whitehead (O conceito de natureza e processo e realidade) dizia: “Não penso com palavras. Começo com conceitos, depois tento colocá-los em palavras, o que é frequentemente muito difícil.”[2]

11. A linguagem verbal recalca e retarda o pensamento-raio para recolher fragmentos que ela sabe processar. Obviamente há a primazia do coletivo sobre o individual, uma vez que apenas a linguagem articulada é o instrumento coletivo da espécie humana. A linguagem é também uma instância de  recalque. O que já sabíamos.

12. Se todo indivíduo pode pensar em faíscas, ou seja, por insights, a maior parte de seus pensamentos-raios cai logo no esquecimento se ele não os coloca na forma lenta e linguística – a memória lenta e coletiva –, ou se ele não puder lhes dar uma forma compartilhável: partitura de música, disco, quadro, grafite, proposição conceitual. Essas formas podem ficar incompreensíveis durante séculos se são muito inovadoras para a época, mas têm a vantagem de tender à compreensão e de representar uma “isca” para o pensamento.

13. O sonho é uma claraboia para o pensamento-raio. Tendo em vista que ele representa uma atividade mental que se desenvolve enquanto o indivíduo dorme, ele não é considerado responsável. As diferentes civilizações sempre lhe deram um status à parte, integrando seus conteúdos às práticas coletivas, através de interpretações específicas da época, que ela mesma produz e que, portanto, se mostra capaz de assimilar. Freud permitiu ao pensamento ocidental continuar a fazer uso “útil” dos pensamentos oníricos dando-lhes um status científico e tornando-o uma ferramenta terapêutica, portanto, a priori, útil à espécie.

14. A arte é um meio rápido de comunicação.

– A pintura e a escultura: porque a compreensão é imediata. A análise e a compreensão acadêmica de uma obra não se enquadram nessa apreensão.

– A arte que utiliza a linguagem, como a poética, não a utiliza para comunicar segundo as regras usuais. Por isso é rápida. Recorre sempre à condensação e à metaforização que vão além do que é dito. É pela distância entre o que é dito e o que é evocado que se mede a especificidade da expressão artística em relação à palavra comum.

– A música, que abordo por último, é de fato a arte mais basal, porque o contato sonoro é o primeiro laço da criança, no útero, com o mundo. A música, ao contrário da pintura, ocorre no tempo, é um puro indicador da passagem do tempo permanecendo absolutamente fora de toda representação e fora de significação. Segundo Didi-Hubermann, a pintura também estaria no tempo, mas num outro tempo, presente-passado-futuro, diferente do tempo-fluxo. A música é o laço por excelência e, por excelência, o laço humano que liberta das imposições da linguagem, enquanto ocorre no mesmo espaço-tempo. O feto, no útero materno, começa muito cedo a se “des-fundir” dos ritmos da mãe. Para Cyrulnik, o tempo seria o primeiro objeto distinto e específico da criança que existiria já na vida intrauterina.

15. A psicanálise usa o sonho e o insight como meios de acesso aos momentos inconscientes, que se supõem ser o verdadeiro motor dos comportamentos humanos. A característica do inconsciente, ou ainda dos processos primários, é pertencer a esse universo da transmissão rápida das informações. Podemos dizer que os processos primários funcionam de modo analógico e não discursivo ou cognitivo. Sua sintaxe é literalmente dobrada. A linguagem, ou a interpretação, consistiria num desdobramento.

16. A diferença entre psicanálise e psicoterapia existe: ela não consiste em qualquer diferença de postura, demanda ou estrutura. A psicanálise faz uso das manifestações dos processos primários, a psicoterapia é todo o resto. A isso se une o interesse do paciente em seu próprio funcionamento psíquico, na manifestação do pensamento-raio. Esse interesse se manifesta imediatamente em alguns, em outros depende da aptidão e do desejo do analista de provocá-lo. Isso acontece ou não. Pelo simples fato de que ninguém pode se movimentar na simples esfera dos processos primários, do sonho e das associações livres, pelo fato de que, na maioria do tempo, nós estamos nos processos secundários e conscientes, é evidente que pretender fazer psicanálise pura depende de impostura.

17. Toda terapia que inclui o interesse espontâneo do analisado por seu próprio pensamento-raio é de fato uma análise didática. Sua capacidade de usá-lo no e pelo pensamento discursivo e a consideração da interação entre essas duas formas de pensamentos com as mesmas duas formas de pensamento em trabalho no analista, podem, depois, tornar-se objeto de investigações mais teóricas.

18. A fascinação do espírito humano pela rapidez depende, a meu ver, do conhecimento íntimo sobre a importância do pensamento-raio e do tamanho do recalque que a comunicação exige, pelo único canal autorizado que é o lento canal da linguagem verbal. Os computadores fazem parte desse movimento. O que não quer dizer que o computador seja estruturado como o inconsciente. Isso quer simplesmente dizer que o homem sente que ele pensa rápido e por múltiplas conexões e que sabendo, sentindo inconscientemente, ele é tentado a reproduzi-lo. Não acredito que o homem seja fascinado pela rapidez por razões unicamente econômicas.

19. O inconsciente não tem conteúdos específicos a não ser os que a linguagem autoriza e, particularmente, o que “a língua” da infância de um determinado sujeito permite. A linguagem não deixa muita liberdade, com exceção de suas formas artísticas. Ela torna concebível o que as leis (profundas), que estruturam uma sociedade, autorizam. Mas os conteúdos do inconsciente não são o todo do inconsciente. É preciso distinguir, e é o essencial, os processos inconscientes, que são uma energética, uma dinâmica, dos conteúdos do inconsciente. É deles que necessitamos para criar e para a verdadeira modificação em análise. Se Freud insistiu tanto sobre os conteúdos do inconsciente, é que ele devia estabelecer seus mecanismos, e ele não podia fazê-lo sem recorrer aos conteúdos interditados, obrigatoriamente sexuais para ele. É uma questão muito ampla. Todas as bifurcações em análise resultam disso. A análise lacaniana, estruturalista, ficou para trás principalmente por causa disso: ela não leva em conta a dinâmica, o aspecto energético no processo do pensamento. Então surgem duas tendências: uma estrutural, focada em representações, outra econômica, focada na energética. É preciso conectar as duas. Na melopeia lacaniana, o “Desejo” deve ser o representante dessa energia. É suficiente?

20. A psicanálise é uma tentativa de forçar os limites do pensável autorizado para um indivíduo num determinado momento por uma determinada sociedade. O fato é que a linguagem é primeiramente uma instância de recalque. A linguagem recalca por duas razões. Primeiramente por sua lentidão: é o recalque originário e universal em qualquer sociedade. Todos os homens se comunicam pela linguagem e não conseguem imaginar sua existência no mundo sem a linguagem. É seu limite comum, mas não é certo que a espécie não seja capaz de desenvolver, com o tempo, outros meios que não a linguagem para se comunicar. Segundo: a linguagem recalca por causa das representações sociais atuais. Esse recalque não é universal em seus conteúdos, varia de acordo com as sociedades.

21. O que é universal, portanto, é o fato de que há um real que é o mesmo para todos os indivíduos da espécie humana. A rapidez de seus pensamentos é universal e real. É igualmente universal a necessidade de passar do pensamento-raio para o discursivo. A existência de dois processos, primários e secundários, é, portanto, universal, mas não é universal o conteúdo das representações que são o fundamento dos interditos que estruturam toda e qualquer sociedade. Somente o interdito como tal é universal (nem tudo é possível, senão não há sociedade), mas o conteúdo dos interditos é diferente de acordo com as sociedades. É por isso que temos que fazer acrobacias para dizer que a interdição do incesto é universal. O que é universal é que as relações sexuais sempre incluem interditos. Em nenhuma sociedade é permitido se reproduzir com todo mundo. O que não é a mesma coisa que triturar o infeliz Édipo grego para torná-lo exportável para qualquer lugar.

22. A ideia de Freud segundo a qual os conteúdos recalcados do inconsciente seriam de natureza essencialmente sexual é, portanto, correta, pois não há sociedade sem interditos relacionados com as práticas sexuais. Por outro lado, o que pode ser considerado abusivo é o lugar dado ao casal de genitores da família antiga e europeia.

23. Em Freud e em muitos freudianos há uma confusão entre o recalque implícito na própria existência da linguagem e o recalque relativo aos conteúdos sexuais. Em última instância, não acredito que haja conteúdos universais do inconsciente. Há somente a energia e a velocidade de um organismo em perpétua transformação, dominado por múltiplas redes no mundo. Contudo, a energia e a velocidade, para alcançar a possibilidade de expressão verbal, se satisfazem com um inconsciente como processo. Entretanto um processo não pode ter sentido se ele não tiver uma realidade “das entidades” que ele processa e modifica no futuro. São essas “entidades” que são problemáticas.

24. Não existe sociedade humana sem interditos, e os interditos que estruturam uma sociedade se relacionam com a regulamentação dos vínculos relativos à reprodução – proibição do assassinato, proibição do canibalismo (mesmo onde é praticado é um ritual e não para se alimentar). Vemos o quanto sempre predomina o interesse da espécie humana sobre o individual, sabendo que o indivíduo não pode sobreviver sozinho. Podemos então supor que as “disciplinas” que sobrevivem a uma mania passageira, ou a uma necessidade local e pontual, são aquelas que servem tanto à espécie quanto ao indivíduo? A análise surge de uma necessidade pontual e local ou pode reivindicar a longevidade das disciplinas que servem à espécie?

25. Não podemos, então, considerar a psicanálise uma tentativa de liberar o indivíduo da gravidade das exigências da sociedade atual e de seus limites às vezes insanos e injustos, sem violar, até mesmo protegendo, as grandes leis da humanidade? Ginástica que só pode continuar eficaz se não confundirmos os interesses de uma microssociedade com os da humanidade toda, ou ainda, se não reduzimos as leis jurídicas atuais de uma sociedade em leis fundamentais da humanidade, invariantes de todas as sociedades.

Podemos nos perguntar sobre a pertinência do que fazemos quando decretamos o que deve representar os interesses da espécie em geral baseando-nos em nosso conhecimento local, nosso interesse local decorrente de nossa sociedade ocidental, especialmente a partir da Declaração dos Direitos Humanos. Pergunta eminentemente espinhosa adequada para iniciar guerras se a levássemos a sério.

Fim da visão geral

Clínica

Foi um pouco pesado, reconheço.

Não sei se tudo o que acabo de ler para vocês é válido ou não. Deixo como um exemplo clínico e como tal não quis argumentar ponto por ponto. A palavra clínico é usada aqui em seu sentido etimológico, pois escrevi na cama, assim que acordei. Confio muito em meu inconsciente. Sei que quando as ideias são apresentadas dessa maneira, elas podem não ser corretas quanto a uma argumentação objetiva, mas sei que lidam com o assunto que é importante para mim, assunto que contém uma íntima convicção e do qual não devo me esquivar.

Aí está então uma produção completamente “discursiva”, mas não vinculada a um trabalho intelectual consciente no momento de sua “chegada”.

Além de seu interesse clínico, acho que não foi inútil entregá-la como está, pois é sem dúvida o fio comum que conecta o que posso dizer no decorrer deste seminário.

Para terminar em outra clínica que não a minha, ou melhor, na clínica de um outro e de um modo menos pesado, eis uma interpretação que surgiu sob a forma de um insight, como uma faísca que veio iluminar um trabalho analítico em andamento.

Exemplo

Um paciente sofre de uma significativa fobia de transportes, mais particularmente a fobia de avião. Depois de ter explorado todas as formas possíveis de metáforas sexuais, depois de ter procurado na inadequação do holding materno, depois de ter falado dos medos infantis, contado muitas lembranças relativas a seus medos, depois de múltiplas associações mais ou menos espontâneas, parou um dia no meio de uma frase, que não tinha nenhuma relação com a problemática de suas fobias, gritando: “Sei por que morro de medo de tomar avião! É porque tenho medo de nunca mais encontrar minha casa!” Ficou quieto após essa declaração, totalmente desconectado do que estava contando.

Depois se lembrou dos bombardeios. Eram bombardeios recentes (na ex-Iugoslávia) e não da última guerra mundial. “Lembro-me de que eu tinha medo de me afastar alguns metros de minha casa durante a guerra, tinha a impressão que se me afastasse não a encontraria mais”.

Pouco importa para meu propósito aqui saber se era apenas a casa na realidade ou se ela representava outras perdas possíveis, outros portos protetores, cuja perda ele temia. Não subestimo o fato de que a profundidade de campo de um cenário evocado pode ser importante para a eficácia terapêutica de tal evocação. O medo de nunca mais encontrar a casa pode evocar, sem dúvida, um medo mais antigo de não encontrar a mãe, ou qualquer outro símbolo protetor, mas o que quero ressaltar é como surgiu a ideia: apareceu como um lampejo, sem que, nesse dia, ele procurasse qualquer coisa relacionada a suas fobias e teve certeza que era essa a “verdadeira razão”. Não duvidou um segundo da exatidão de seu pensamento. Depois constantemente ele se apoiava nessa certeza para construir uma verdadeira tática para validar a legitimidade de sua descoberta. É verdade que suas fobias depois desse dia começaram a diminuir, até desaparecerem sem aviso prévio. Tinha certeza da exatidão de sua descoberta.

Como isso se manifestou na realidade? Desde a primeira viagem de avião subsequente a essa sessão, ele decidiu tomar um grande copo de uísque antes da partida para diminuir sua angústia, enquanto ela não estivesse ainda presente… Algo que antes nunca tinha considerado fazer. Com a ajuda do uísque, ele não ficou angustiado, ou muito pouco… Além disso, durante toda a viagem, ele pensou em sua casa, no fato de que encontraria sua casa, pois a guerra havia acabado. Assim, pôde, nas viagens posteriores, contar com essa experiência em que a angústia foi infinitamente menor, quase inexistente, e, assim, de viagem em viagem, as angústias tornaram-se imperceptíveis, até o dia em que se esqueceu de tomar seu uísque fetiche.

Nada permite dizer que essa descoberta relativa a sua história fosse a causa real de seu sintoma. Para ele era. A causalidade nessa história, como em todas as histórias de análise, não é receber uma validação objetiva. Ela parece muito importante para certos pacientes. E mesmo quando isso é possível, se não conseguir a convicção íntima do sujeito, acaba por ser terapeuticamente ineficaz. O fato de saber a razão de um sintoma não o faz necessariamente desaparecer. Era o objetivo das primeiras interpretações de Freud. E continua sendo para muitos. No começo, Freud acreditava firmemente que era suficiente que o paciente se tornasse consciente das razões de seu sintoma para este desaparecer. Via aí o melhor meio de curar seus pacientes, mas progressivamente abandonou esse método. Podemos perguntar se isso não tinha eficácia até que os pacientes descobrissem por eles mesmos, que é por insights que eles descobriam, também encorajados por Freud, um novo modo de pensar. Isso era novo tanto para Freud como para os pacientes, em sua transferência. Depois não funcionou mais… Suponho que Freud quis verificar sua hipótese teórica e que ele não os deixou mais viver a experiência da descoberta. A questão do Édipo tinha se espalhado e tornou-se obrigatória. Então as curas atribuídas à explicação do significado do sentido não eram mais tão evidentes. A causa não era mais uma descoberta. Certamente ainda hoje descobrimos esses desejos incestuosos ao longo de um caminho e a descrença sempre ocorre quando isso acontece, mas o efeito produzido não é mais terapeuticamente tão eficaz. Ninguém mais descobre hoje, falando honestamente, a existência dos desejos incestuosos.

Acontece, entretanto, que cada um faça, mesmo hoje em dia, um sonho suficientemente chocante para ficar atônito, e que isso tenha efeito sobre os sintomas. A descoberta, no entanto, ocorre em outro nível. A descoberta do desejo edipiano ainda é eficaz hoje quando surge de surpresa, mas é raro que essa descoberta produza mudanças tão importantes quando no começo de Freud.

Por outro lado, uma experiência do tipo que chamo de pensamento-raio, o fato de ter vivido esse momento fulgurante da chegada repentina de uma ideia, tem muitas chances de ser mais eficaz. Não de eliminar o sintoma com uma varinha mágica, mas ela proporciona ao sujeito o desejo de provar que ele tem razão e lhe permite achar os meios para se livrar desse sintoma que, pelo fato da descoberta, é desinvestido de sua camada de mistério e atração. O que não quer dizer – e isso não pode ser provado – que haja uma relação linear entre uma causa e seu efeito. Por outro lado, o que funciona é o investimento libidinal. O que é investido é o desejo de provar a validade de seu pensamento. Se eu tivesse sugerido a esse paciente de se ajudar, antes de tomar o avião, tomando um uísque ou mesmo um tranquilizante — o que fazem muitos fóbicos — talvez ele o fizesse, mas teria sido um recurso vulgar a um truque, pior, sem o antecedente de um significado que leva ao abandono completo dos sintomas. Sem a aposta subjetiva.

Essa modesta história, muito banal, lembra brevemente a importância da verdadeira experiência e o impacto que pode ter para um sujeito seu próprio pensamento que chega como um lampejo de verdade. Embora ele chegue de outro lugar — do inconsciente como Freud chamava esse lugar —, ele é o que há de mais singular e mais próprio em sua organização subjetiva. É preciso acrescentar que o investimento libidinal é reforçado pela transferência. Afinal esse paciente recorre a uma explicação muito analítica. Ele usa minha estrutura de pensamento. É devido à transferência. Em outro contexto, teria ele “produzido” o mesmo pensamento?

Portanto existe, de um lado, esse modo de funcionamento: a centelha do espírito que estimamos e que será eficaz; de outro, o conteúdo dessa centelha, sua orientação ideológica, que está relacionada com o Outro, pois sempre há o Outro quando pensamos.

Não esqueçamos, entretanto, que em outras ocasiões, pode ser suficiente uma centelha para ficar ainda mais louco: se a vemos num momento de delírio, ela pode ser tomada pela voz de deus.  Nosso modo ocidental de acreditar na eficácia da causa, não é, em última instância, a busca eterna do dedo de deus?

Então acontece. E o que acontece, acontece na velocidade de um-raio. Mas dizemos também, para designar os simples de espíritos na língua de Freud, que eles são einfältig; esses “acreditam” em tudo que lhes acontece. Daí a necessidade da prova e do raciocínio. A evidência subjetiva não é suficiente. Mas sem evidência, sem salvação. Há, portanto, a velocidade da chegada do pensamento, seu brilhantismo, sua evidência para o sujeito que carrega sua adesão crente, e o acender do desejo de provar que isso é verdadeiro ou que é real: depende das circunstâncias, mas, neste caso, real e verdade se equivalem.

O pensamento-raio é uma isca para o desejo.

É como uma paixão instantânea. Outra faísca que atinge o sujeito diante de um outro. É o que chamamos de amor à primeira vista.

Essa aproximação entre o pensamento-raio e o amor à primeira vista não é fortuita.

Acontece que amamos de paixão os pensamentos-raios, pois não dependem da capacidade do intelecto, prazer não negligenciável, mas dependem da atualização de um potencial insuspeitável pelo próprio sujeito, que testemunha o fato de que nele “isso pensa”. A origem de seu pensamento continua misteriosa mesmo se ele sabe que vem dele. Pois esse pensamento chega sem o suporte de uma demonstração lógica e, entretanto, abrilhantado para o sujeito da certeza que pode conter a conclusão de uma demonstração irrefutável. Tornar-se, assim, espectador e ator de um momento de criação, mesmo que modesto, é uma experiência que enquanto tal provoca o amor do criador pela coisa criada, pela qual se torna, de certo modo, responsável.

Se o termo sujeito tem sentido diferente de indivíduo, é que, por meio de uma experiência, o sujeito de antes e o sujeito de depois não são o mesmo. A diferença é, certamente, imperceptível, mas é assim. O sujeito de antes da experiência se enriqueceu com sua criação que o modifica. Isso me lembra de Lacan dizendo que o sujeito saía modificado pelo seu ato… O homem que tem medo de tomar o avião fazendo todo tipo de suposições e o homem que viveu a chegada do pensamento não é o mesmo. Pensamento que lhe diz que ele tem medo de perder sua casa, pensamento que ele incorpora e pelo qual ele procura meios que lhe deem consistência, isto é, comprovar que é certo.

Fundamentalmente essa pequena experiência não é diferente da intuição criadora de um matemático, intuição que, durante muito tempo, o levará a provar com um trabalho duro de demonstração rigorosa. Encontramos por nós mesmos, trabalhamos para o Outro. Nem todas as descobertas resultam do pensamento-raio, nem tudo se descobre por lampejos, mas é suficiente que existam para que o problema de sua natureza nos obrigue a pensar.

Pelo menos duas questões se colocam.

Por que há uma convicção íntima, e além dela, amor pelo pensamento assim que chega, amor pelo produto vindo de outro lugar?

O caráter abrupto — não anunciado de tal pensamento — e sua velocidade de chegada contribuem para seu impacto afetivo sobre o sujeito que sofre essa experiência? O pensamento que chega como vindo de outro lugar o afeta. Ele seguiria de certa maneira os caminhos da emoção, seria levado pela energia pulsional. E o afetando, modifica seu organismo todo. Tudo que acontece e que, acontecendo, afeta, afeta o organismo inteiro. Tal experiência não é, pois, um puro jogo da mente desconectada do corpo sensível. Supondo-se que isso exista. Isso existe somente quando há clivagem entre uma atividade intelectual e emoção. Ora, o pensamento-raio suscita não somente surpresa, mas também uma descarga emocional e uma tomada direta sobre a pulsão. Faz ferver a panela do Isso.

Eu faço a hipótese de que há um gozo suplementar na experiência do pensamento que não pode mais esconder para si mesmo sua origem corporal e, portanto, erótica. Quando Isso pensa, meu corpo goza de sua presença ele mesmo, e através de sua produção abre o caminho para a existência de outrem, pois o pensamento, todo tipo de pensamento, envolve a existência de outrem. Assim podemos dizer:

“Quando Isso pensa, sinto que há Eu e o Outro”.

O exemplo clínico que mencionei se refere a um pensamento relativo ao próprio sujeito. Mas acontece que verdadeiras especulações, pensamentos completamente abstratos acontecem da mesma maneira.

O que é erótico, o que leva o sujeito a manter uma relação amorosa com sua produção é a experiência orgânica do “isso pensa”. Mas, de outra forma, sabemos que pensar faz mal, que não é fácil, é até doloroso. Trata-se, aí, de outro pensamento. Não é mais o “isso pensa”, mas o exercício que consiste em expor e, portanto, se expor diante do outro, o que produzimos de mais íntimo, de oferecê-lo a um possível desmembramento, mas também de expô-lo à prova de uma objetivação pelo pensamento dos outros. E há também uma outra dor: é a conformidade do pensamento-raio com as exigências da linguagem, é a submissão inevitável do ritmo rápido do acontecimento psíquico inerente à lentidão do discurso. É a verdadeira castração, que pode ser dolorosa, pode ser imposta pela linearidade da linguagem e, especialmente, por sua ordem. A linguagem é um retardatário do pensamento-raio; é também um mestre, às vezes muito severo quando não conseguimos seduzi-lo, quando não conseguimos fazê-lo dançar um pouco.

O Verbo nos libera, mas é também nosso terror.


REFERÊNCIAS

Whitehead, Alfred. Dialogues of Alfred North Whitehead, As Recorded by Lucien Price. Boston: David R. Godine Publisher, 1954.


NOTAS

  1. Original disponível em <http://www.radmila-zygouris.com/la-pensee-eclair-ou-letincelle/>
  2. Dialogues of Alfred North Whitehead, as recorded by Lucien Price, Boston, 1954, p.10 e p.363.

Radmila Zygouris é psicanalista francesa de origem iugoslava. Foi membro da Escola Freudiana de Paris até sua dissolução por Lacan, em 1978. Durante esse período, foi cofundadora de uma das mais interessantes revistas de Psicanálise, a L’ordinaire du psychanalyste [O ordinário do psicanalista], publicada em Paris entre 1973 e 1978. Autora dos livros: Ah! As belas lições (Escuta, 1995), Pulsões de vida (Escuta, 1999), O vínculo inédito (Escuta, 2003) e Nem todos os caminhos levam a Roma (Escuta, 2006).


FONTE

 ZYGOURIS, Radmila (2020) Pensamento-raio ou a faísca [Trad. D. C. Perrotti]. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -10, p. 8, 2020. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2020/12/02/n-10-8/>.

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