PISTAS PARA UMA ESQUIZOANÁLISE: OS OITOS PRINCÍPIOS – por Félix Guattari

Seria a esquizoanálise um novo culto a máquina? Talvez. Mas, com certeza, não no quadro das relações sociais capitalísticas! O progresso monstruoso dos maquinismos de toda espécie, em todos os campos, e que parece estar levando a espécie humana a uma catástrofe inelutável, poderia, da mesma forma, tomar-se a via real de sua libertação. Então continua o velho sonho marxista? Sim, até um certo ponto. Pois, ao invés de apreender a história como sendo essencialmente lastrada por máquinas produtivas e econômicas, penso, ao contrário, que são as máquinas, todas as máquinas, que funcionam à maneira da história real, na medida em que ficam permanentemente abertas aos traços de singularidade e às iniciativas criadoras. Como contestar, hoje em dia, que só uma revolução generalizada poderá não apenas melhorar de maneira sensível o modo de vida na Terra, mas simplesmente salvar a espécie humana de sua destruição? Trata-se de afrontar tanto imensos meios materiais coercitivos quanto microscópicos meios de disciplinarização dos pensamentos e dos afetos, de militarização das relações humanas. Tanto faz voltar-se para o Oeste, Leste ou Sul, a questão continua sendo a mesma: como organizar a sociedade de outra maneira. A repressão continuará sendo um dado de base de toda e qualquer organização social? Mas nada disso é inelutável; outros agenciamentos sociais, outras conexões maquínicas são concebíveis! Neste ponto, pouco importa parecer estar recitando o marxismo: não se pode esperar nada de bom de uma volta às naturezas primeira.¹ Nem solução geral nem a menor catarse em pequena escala! Não se pode resolver coisa alguma sem a instauração de agenciamentos altamente diferenciados. Só que deve ficar claro que as máquinas revolucionárias que mudarão o curso do mundo só poderão emergir, só poderão ter uma consistência que as faça efetivamente passar ao ato, com uma dupla condição:

1) que tenham por objeto a destruição das relações de exploração capitalísticas e o fim da divisão da sociedade em classes, castas, raças, etc.;

2) que se estabeleça em ruptura com todos os valores fundados sobre uma certa micropolítica do músculo, do falo, do poder territorializado, etc.

Eis que voltamos a questão da esquizoanálise! Não se trata, como podemos perceber, de uma nova receita psicológica ou psicossociológica, mas de uma prática micropolítica que se tomará sentido em relação a um gigantesco rizoma de revoluções moleculares, proliferando a partir de uma multidão de devires mutantes: devir mulher, devir criança, devir velho, devir animal, planta, cosmos, devir invisível. . . – tantas maneiras de inventar, de “maquinar” novas sensibilidades, novas inteligências da existência, uma nova doçura.

Isto posto, se eu fosse obrigado a concluir com algumas recomendações de bom senso, algumas regras simples para a direção da análise do inconsciente maquínico, eu proporia os seguintes aforismas, que, aliás, poderiam ser aplicados a campos completamente diferentes, a começar pelo da “grande política”:

1) “Não atrapalhar.” Em outras palavras, deixar como está. Ficar bem no limite, adjacência do devir em curso, e desaparecer o mais cedo possível. (Portanto, ficam fora de cogitação as curas se arrastando durante anos, dezenas de anos, como está na moda na psicanálise atualmente.)

2) “Quando alguma coisa acontece isto prova que alguma coisa acontece.” Tautologia fundamental para marcar, aí também, uma diferença essencial em relação à psicanálise, da qual um dos princípios de base reza que: “quando nada acontece, isto prova que, na realidade, alguma coisa acontece no inconsciente”. Principio que serve ao psicanalista para justificar sua política do silêncio e das esperas indefinidas. Na verdade, é raro que realmente aconteça alguma coisa nos agenciamentos de desejo! Aliás, convém guardar todo o relevo de tais acontecimentos, e toda vitalidade dos componentes de passagem que são sua manifestação. Os psicanalistas gostariam que acreditássemos que eles estão em constante relação com o inconsciente, que eles dispõem de uma conexão privilegiada que os liga a ele, uma espécie de telefone vermelho, como o de Carter e Brejnev! Os despertares do inconsciente sabem se fazer ouvir por si próprios. O desejo inconsciente, os agenciamentos que só se exprimem pelos sistemas dominantes de semiotização, manifestam-se por outros meios, que não enganam. Eles nao têm necessidade alguma de porta-voz, de intérpretes. Que mistificação esta de pretender que o inconsciente trabalha em segredo, que não se pode dispensar um certo tipo de detetive para decifrar suas mensagens, e sobretudo a de afirmar que ele está sempre vivo, latente, recalcado, até mesmo quando ele está visivelmente adormecido, esgotado, morto, e que não haveria mais outro recurso senão reconstruirr, às vezes, partindo quase do zero. Que alívio um tanto covarde que é encontrar alguém que te credita, apesar das aparências, uma riqueza inconsciente inesgotável, quando tudo ao teu redor –  a sociedade, a família, tua própria resignação – parecia ter conspirado para esvaziar-te de todo e qualquer desejo, de toda e qualquer esperança de mudar tua vida! Um serviço desses não tem preço e dá para compreender por que os psicanalistas se fazem pagar tão caro!²

3) “A melhor posição para se escutar o inconsciente não consiste necessariamente em ficar sentado atrás do divã.”

4) “O inconsciente molha os que dele se aproximam.” Sabe-se que “alguma coisa acontece”, quando o agenciamento esquizoanalítico revela uma “escolha de matéria”; torna-se então impossível ficar neutro, pois esta escolha de matéria arrasta em seu curso todos aqueles que encontra no caminho.

5) “As coisas mais importantes nunca acontecem onde esperamos.” Outra formulação do mesmo princípio: “a porta de entrada não coincide com a porta de saída”. Ou ainda: “as matérias dos componentes que esboçam uma mudança não são geralmente da mesma natureza que os componentes que efetuam esta mudança”. (Exemplo: a fala vai virar somática, ou o somático, econômico, ou ecológico, enquanto que o ecológico vai virar fala ou acontecimentos sócio-históricos, etc., etc.) A riqueza de um processo esquizoanalítico vai se medir pela variedade e pelo grau de heterogeneidade destas espécies de transferências rizomáticas, de maneira que mais nenhuma espécie de semiologia significante, de hermenêutica universal ou de programação política poderá pretender traduzi-Ias, colocá-las em equivalência, teleguiá-las para finalmente extrair delas um elemento comum facilmente explorável pelos sistemas capitalísticos. Um significante decididamente não representa a subjetividade esquizoanalítica por um outro significante! Enquanto os componentes não cheguem a organizar seus próprios núcleos maquínicos e seus próprios agenciamentos de enunciação, permanecem empacados diante da pretensão dos significantes dominantes de querer interpretá-los. E, em seguida, são eles que fagocitam o componente significativo. É preciso repetir: isso não é absolutamente sinônimo de um primado sistemático dos componentes não verbais “de antes do tempo das máquinas”.

6) Já se esbarrou na questão da transferência, acho que seria bom distinguir, em quaisquer circunstâncias:

– as transferências por ressonância subjetiva, por identificação personológica, por eco de buraco negro;

– transferências maquínicas (máquinas – transferências) que procedem aquém do significante e das pessoas globais, por interações diagramáticas a-significantes e que produzem novos agenciamentos em vez de representar e decalcar indefinidamente antigas estratificações.

7) “Nada é adquirido de uma vez por todas.” Nenhuma fase, nenhum complexo nunca são vencidos, nunca são superados. Tudo permanece sempre em suspenso, disponível a todos os reempregos, mas também a todas as degringoladas. Um buraco negro pode esconder um outro! Nenhum objeto pode ser designado por uma identidade fixa; nenhuma situação é garantida. Tudo é uma questão de consistência de agenciamento e de reagenciamento. A colocação no mercado de uma consistência simbólica garantida 100% (“como é que você passou seu complexo de castração?”), é uma operação desonesta e perigosa. Sobretudo por parte de pessoas que pretendem tê-la adquirido, eles próprios, no decorrer de uma análise dita didática!

8) Último, mas de fato, primeiro princípio: “toda ideia de princípio deve ser considerada suspeita”. A elaboração teórica é tanto mais necessária e deverá ser tanto mais audaciosa quanto o agenciamento esquizoanalítico tomar a medida de seu caráter essencialmente precário.


NOTAS

1. Não é por acaso que os diferentes fascismos não pararam de se declarar seus adeptos.

2. Poderíamos transpor, ipsis litteris, o que dissemos aqui, do psicanalista, para o militante profissional incumbido de “fazer existir” a classe-operária-como-motor-da-história, mesmo quando ela está aplastrada e desmilinguida, cúmplice da ordem dominante como em certos bastiões do capitalismo ou, o que é pior. quando ela praticamente inexiste no campo, como é o caso de inúmeros países do Terceiro Mundo.


FONTE:

Félix GUATTARI. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981.

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