Cartografias mistas de toda espécie vem sendo traçadas, ao mesmo tempo que a complexa criação dos territórios existenciais que se fazem e se desfazem em um mundo irreversivelmente globalizado. Perguntar–se se universos marcados pela hibridação, a flexibilidade, a fluidez (mais recentemente qualificados de “líquidos”) devem ser recusados ou celebrados, é falso problema: trata–se apenas da forma de nossa atualidade, a qual, como a forma de toda e qualquer realidade, se produz no embate entre as diferentes políticas de sua(s) construção(ões). É disso que pretendo tratar aqui, percorrendo a trajetória desta questão em meu próprio trabalho, no qual ela aparece pela primeira vez nos anos 1980, com a formulação do conceito de “subjetividade antropofágica” – inspirado, em parte, no Movimento modernista.¹ Desde então, venho retomando e reelaborando este conceito de tempos em tempos – não para “corrigi–lo”, mas para dar voz à singularidade do processo que o convoca e o constitui mais uma vez –, em função do contexto em que ele volta a ser operatório. Suas reaparições mais recentes foram mobilizadas pelo cenário da arte contemporânea que, a partir de meados dos anos 1990, tornou–se uma arena privilegiada de confronto entre as forças que delineiam a(s) cartografia(s) do presente transnacional.
Entalha–se o outro na carne
A noção de “antropofagia”, proposta pelos modernistas, remete originalmente, como sabemos, a uma prática dos índios Tupinambás²: um complexo ritual de morte e devoração dos inimigos, cativos de guerra. O que em geral não sabemos, a não ser que estejamos minimamente familiarizados com os estudos antropológicos, é que este ritual podia durar meses e até anos, sendo o canibalismo apenas uma de suas etapas. Curiosamente, esta é a única (ou quase única) registrada no imaginário ocidental, provavelmente pelo horror que terá causado ao invasor europeu. E mais curiosamente ainda, esta também foi a etapa privilegiada pelos modernistas na construção de seu argumento. No entanto, outro aspecto talvez pudesse oferecer uma chave complementar para as questões abordadas pelo Modernismo – em todo caso, sem dúvida uma chave essencial para as questões que pretendo abrir aqui. Eis como a descrevem os antropólogos Manuela Carneiro da Cunha e Eduardo Viveiros de Castro: “após ter matado o inimigo, o executor mudava de nome e era marcado por escarificações em seu corpo durante um prolongado e rigoroso resguardo”.³ E assim, com o decorrer do tempo, nomes iam se acumulando, a cada incorporação do confronto com um novo inimigo, acompanhados de seus respectivos desenhos entalhados na carne: e quanto mais nomes gravados em seu corpo, mais prestigiado seu portador. A existência do outro – não um, mas muitos e diversos – era assim inscrita na memória do corpo, produzindo imprevisíveis devires da subjetividade.
Obedece esta mesma lógica, o fato de que segundo os jesuítas, os Tupinambás recebiam facilmente seus ensinamentos de europeus católicos e, com a mesma facilidade, os esqueciam ou simplesmente os abandonavam. O que para os padres era “inconstância” revela na verdade a inexistência de um sentimento de si substancializado ou de uma cartografia vivida como suposta essência individual e/ou coletiva, seja ela qual for; daí o desapego e a liberdade de desfazer–se de elementos da própria cultura, absorver elementos de outras e também deixá–los de lado, quando não fazem sentido. Não por acaso, o único aspecto de sua cultura que os Tupinambás recusaram–se ferozmente a abandonar, foi a antropofagia4. Aceitavam inclusive abrir mão de sua etapa canibalista, quando eram obrigados a submeter–se a esta exigência dos portugueses; mas o que eles não podiam perder em hipótese alguma era esta “técnica de memória do inimigo”, do radicalmente outro, que sustentava e garantia a “abertura para o alheio, o alhures e o além”5 – em suma, este ritual de iniciação ao Fora e ao princípio heterogenético da produção de si e do mundo que ele implica. Mantê–lo a qualquer custo – não seria uma forma de exorcizar o perigo de contágio pelo princípio identitário e sua dissociação do corpo que regia a subjetividade e a cultura do invasor? Como se algo neles soubesse que é fundamentalmente de tal contágio que dependeria o poder colonizador do europeu.
Ao propor a ideia de antropofagia, a vanguarda do modernismo brasileiro extrapola a literalidade da cerimônia indígena, para dela extrair sua fórmula ética, que ocupa lugar central na cultura daqueles povos e fazê–la migrar para a cultura da sociedade brasileira como um todo. A fórmula consiste na existência de uma incontornável alteridade em nós mesmos que este ritual evoca e reitera, ao inscrevê–la na memória dos corpos. Com este gesto, a presença atuante desta fórmula num modo de criação cultural praticado no Brasil desde sua fundação ganha visibilidade e se afirma como valor: a devoração crítica e irreverente de uma alteridade sempre múltipla e variável. E se agregarmos à fórmula modernista, o que nos indica a etapa do ritual indígena acima mencionada, definiríamos a micropolítica antropofágica como um processo contínuo de singularização, resultante da composição de partículas de inúmeros outros devorados e do diagrama de suas marcas respectivas na memória do corpo. Uma resposta poético–política – regada a sarcástico humor – à necessidade de afrontar a presença impositiva das culturas colonizadoras (o que torna patético seu mimetismo deslumbrado pela intelligentzia local); resposta também, e talvez sobretudo, à exigência de assumir e positivar o inexorável processo de hibridação resultante das sucessivas ondas de imigração, o qual configura desde sempre a experiência vivida no país.6
Know–how antropofágico
Nos anos 1960 e 70 culmina, em vários países do Ocidente, um longo processo de absorção e capilarização das invenções do modernismo: estas transbordam o território restrito das vanguardas artísticas e culturais e tomam vulto numa ampla e ousada experimentação cultural e existencial de toda uma geração, no contexto do movimento que se designou por “contra–cultura”. Uma reação epidérmica à sociedade disciplinar, própria do capitalismo industrial, com sua subjetividade e cultura identitárias que compunham a figura do assim chamado “burguês” em sua versão hollywoodiana do pós–guerra.
Assim também no Brasil, reatualizou–se, naquele período, o ideário antropofágico da vanguarda local. Reavivado e transfigurado, este foi um aspecto crucial da originalidade deste movimento no país em diferentes campos da cultura (o Tropicalismo, mais conhecido internacionalmente, é apenas uma de suas expressões; colocar tudo sob este chapéu, é um equívoco frequentemente cometido7). Isso dava aos brasileiros um certo know–how para a experimentação de outras políticas de subjetivação, de relação com o outro e de criação que se buscava internacionalmente na contra–cultura.
Foi certamente meu intenso envolvimento com esta experiência, e a necessidade de atualizá–la em conceito de modo a integrá–la à cartografia do presente, o que me levou alguns anos depois a conceber a noção de “subjetividade antropofágica”. Assim, eu a descreveria em linhas gerais: a ausência de identificação absoluta e estável com qualquer repertório e a inexistência de obediência cega a qualquer regra estabelecida, gerando uma plasticidade de contornos da subjetividade (no lugar de identidades); uma fluidez na incorporação de novos universos, acompanhada de uma liberdade de hibridação (no lugar de atribuir valor de verdade a um universo em particular); uma coragem de experimentação levada ao limite, acompanhada de uma agilidade de improvisação na dinâmica da criação de territórios e suas respectivas cartografias (no lugar de territórios fixos com suas representações pré–determinadas, supostamente estáveis).
Utilizei este conceito pela primeira vez em 1987, em minha tese de doutorado, publicada em 19898 – exatamente o ano do fim da ditadura no Brasil9 e da queda do muro de Berlim. Se destaco estes fatos, não é para monumentalizar o contexto no qual tal elaboração se dá, mas pelo contrário, porque nas filigranas do diagrama que então se anunciava impunha–se nomear e reafirmar este modo de subjetivação que havíamos inventado nos anos 1960 e início dos 70, no bojo do movimento contra–cultural. É que tal modo havia sido alvo da truculência da ditadura militar ao longo dos anos 1970 e início dos 80, a qual reativara e enrije- cera o princípio identitário – como sói acontecer do ponto de vista micropolítico neste tipo de regime.10Alguns anos depois, em 1994, quando escrevi “Esquizoanálise e Antropofagia”, para um colóquio em torno do pensamento de Deleuze, publicado no livro Gilles Deleuze. Uma vida filosófica11, ainda se fazia necessário afirmar este modo de subjetivação. Mas o que estava então em foco era a relação entre aquilo que eu designava por subjetividade antropofágica e a concepção de subjetividade que se pode extrair da obra de Deleuze e Guattari para, a partir daí, compreender a ampla recepção do pensamento destes autores no campo da clínica no Brasil (o que aliás continua vigente ainda hoje)12.
Em 1998, quando retomei este conceito, num ensaio encomendado para o catálogo da XXIV Bienal Internacional de São Paulo (cujo tema foi justamente a Antropofagia)13, já era outro o problema que eu me sentia convocada a enfrentar: a política de produção de subjetividade e cultura inventada pela geração dos anos 1960/70 vinha sendo instrumentalizada pelo capitalismo financeiro transnacional, que então se estabelecia por toda o planeta. Transformada nesta operação, tal micropolítica tornava–se dominante (daí certos autores qualificarem o novo regime de “capitalismo cognitivo” ou “cultural”14). Não descreverei este processo, pois ele é amplamente tratado no texto em questão, e em vários de meus ensaios nos últimos seis anos15. Embora esta mudança tivesse começado já no final dos anos 1970, na Europa Ocidental e na América do Norte e, a partir de meados dos anos 1980, na América Latina e na Europa do Leste (com a dissolução dos regimes totalitários, em grande parte engendrada pelo próprio neoliberalismo), demorou pelo menos duas décadas para que seus efeitos perversos se fizessem sentir e se colocassem como problema – como acontece com toda mudança histórica de tal envergadura. Só agora tornava–se possível percebê–los, o que impunha a necessidade de distinguir políticas da plasticidade, da fluidez de hibridação e da liberdade experimental de criação que caracterizam o que eu havia chamado de subjetividade antropofágica. Descrevi estas diferenças, na época, propondo os conceitos de “baixa” e “alta antropofagia”, inspirada no próprio Oswald de Andrade16 (e ainda, inspirando–me Nietzsche, as chamei igualmente de “antropofagia ativa” e “reativa”).
Políticas da criação
O critério que adotei para distinguir estas políticas da subjetividade antropofágica foi o modo como se reage ao processo que convoca e dispara o trabalho de criação. Referia–me à dinâmica paradoxal entre, de um lado, o plano extensivo com seu mapa de formas e representações vigentes e sua relativa estabilidade e, de outro, o plano intensivo e as forças do mundo que não param de afetar nossos corpos, redesenhando o diagrama de nossa textura sensível. Tal dinâmica tensiona os territórios em curso e seus respectivos mapas e acaba colocando em crise nossos parâmetros de orientação no presente. É nesse abismo e na urgência de produzir sentido que se convoca o trabalho do pensamento. Já no momento deste impulso inaugural da criação se definirão suas diferentes políticas – em função do quanto se tolera os colapsos de sentido, o mergulho no caos, nossa fragilidade. Para descrever brevemente esta diferença, apontei dois pólos opostos neste processo – embora eles não existam enquanto tais, pois na realidade, além de serem muitos os matizes deste processo, eles variam no tempo de uma mesma existência individual e/ou coletiva.
Criar a partir do mergulho no caos para dar corpo de imagens, palavras ou gestos às sensações que pedem passagem, participa da tomada de consistência de uma cartografia de si e do mundo que traz as marcas da alteridade. Um processo complexo e sutil que requer um longo trabalho. Não seria algo assim o que faziam os Tupinambás em seu prolongado e rigoroso resguardo no ritual antropofágico?
Contudo, a criação pode resultar de uma denegação da escuta do caos e dos efeitos da alteridade em nosso corpo, ao invés de fazer–se a partir dela. Estripa da de sua vitalidade político–poética, a força de criação tende então a produzir cartografias a partir do mero consumo de ideias, imagens e gestos prêt–à–porter. A intenção é recompor rapidamente um território de fácil reconhecimento, na ilusão de silenciar as turbulências provocadas pela existência do outro. Produz– se assim uma subjetividade aeróbica portadora de uma flexibilidade a–crítica, adequada ao tipo de mobilidade requisitada pelo capitalismo cognitivo. E, aqui, pouco importa se as ideias e imagens consumidas venham do mercado cultural de massa ou de sua contrapartida, o mercado erudito de luxo; no domínio micropolítico, as coisas não se distinguem por sua pertença à uma classe social ou econômica, nem pelo lugar que ocupam em qualquer hierarquia de saberes, mas sim pelas forças que as investem.
Pois bem, ambas políticas de criação que acabo de descrever trazem todas as características anteriormente enumeradas daquilo que chamei de “subjetividade antropofágica”. No entanto, elas resultam da ação de forças totalmente distintas, as quais se diferenciam essencialmente por incorporar ou não os efeitos disruptivos da existência viva do outro na invenção do presente.
Em suma, estava claro naquele momento que se nos anos 1960/70 era pertinente opor ao capitalismo industrial (com sua sociedade disciplinar e sua lógica identitária), uma lógica híbrida, fluida e flexível, agora havia se tornado um equívoco tomar esta última como um valor em si – já que esta passara a constituir a lógica dominante do neoliberalismo e sua sociedade de controle. É, portanto, no próprio interior desta lógica – entre diferentes políticas da flexibilidade, da fluidez e da hibridação – que se dão os confrontos no traçado das cartografias de nossa contemporaneidade globalizada.
É evidente que o foco aqui abrange apenas parte das políticas de produção de subjetividade e cultura em confronto na atualidade. Outras forças participam deste embate, entre as quais os novos fundamentalismos que surgiram, exatamente, com a instalação do neoliberalismo e sua flexibilidade capitalística. Neste tipo de regime, o principio identitário reatualiza–se em suas formas mais extremistas. Tal política de subjetivação merece uma análise cuidadosa, não apenas em seu regime de funcionamento mas também – e, sobretudo – em sua relação com a política do flexível–híbrido–fluido. Este será provavelmente um dos desdobra- mentos da presente investigação.
Antropofagia cafetinada
Mais recentemente, em um ensaio que escrevi a este respeito17, senti necessidade de criar uma nova noção, a de “subjetividade flexível”,18 para evidenciar o contexto histórico que eu tinha em mente – a política de subjetivação dos anos 1960/70 e seu clone capitalístico – e deixar a qualificação de “antropofágica” para sua versão brasileira. Problematizo o processo que levou a esta instrumentalização e a descrevo mais precisamente; aponto ainda a confusão que muitos da geração dos anos 1960/70 fizeram entre estas duas políticas da subjetividade flexível, e o estado de alienação patológica que tal confusão provocou. Examino, por fim, a especificidade de tais efeitos em países recém saídos de regimes ditatoriais, particularmente aqueles cujo passado fora marcado por um singular e ousado experimentalismo – como é o caso de muitos países da América Latina e Europa do Leste. Nestes contextos, paralisado pela micropolítica das ditaduras, tal experimentalismo teria sido reativado com a instalação do capitalismo cultural, mas para ser diretamente cana- lizado para o mercado, sem passar pela elaboração da ferida da potência de criação, condição para reativar sua vitalidade poético–política que fora interrompida. Isto fez com que o advento do novo regime tendesse a ser vivido nestes países como uma verdadeira salvação. O capitalismo cultural parecia liberar as forças de criação de sua repressão, e mais do que isso, as celebrava e lhes dava o poder de exercer um papel de destaque na construção do mundo que então se instalava. Este fato agravou a confusão entre o modo contra–cultural e sua versão pós–cafetinagem capitalística, bem como os efeitos nefastos daí decorrentes.19
No Brasil, um terceiro fator somou–se ainda a esta complexa situação: precisamente, a presença da tradição antropofágica. Se esta havia desempenhado um papel na radicalidade da experiência contra–cultural dos jovens brasileiros nos 1960/70, agora ao contrário ela tendia a contribuir para uma adaptação soft ao ambiente neoliberal (inclusive de boa parte desta mesma geração, já entre seus 35 e 45 anos). O país provou ser um verdadeiro campeão atlético da flexibilidade a serviço do mercado.20 Aliciada sobretudo em seu pólo mais reativo, esta tradição produziu o que chamei então de “zumbis antropofágicos”.
Ainda neste texto, menciono um movimento crítico que começava a tomar corpo internacionalmente numa nova geração no final dos anos 1990 – especial- mente entre jovens artistas.
E o que a arte tem a ver com isso tudo?
Aqui chegamos no terreno da produção artística. Não é coincidência que é neste terreno que tal movimento se manifesta com maior veemência: a situação acima descrita o afeta diretamente. As artes plásticas nunca tiveram tanto poder no traçado da cartografia cultural do presente, como nos últimos dez ou quinze anos. Além da proeminência que a imagem em geral adquiriu neste traçado ao longo do século XX, no campo específico da arte, as exposições internacionais converteram–se num dispositivo privilegiado para o desenvolvi- mento de linguagens planetárias. De fato, nelas se concentra e se compõe, num só espaço e tempo, o maior número possível de universos culturais – tanto do lado das obras, como de seu público.
No início deste texto, apontei como falso problema perguntar–se se carto- grafias marcadas pela hibridação, a flexibilidade e a fluidez devem ser recusadas ou celebradas. Pois bem, é tão falso quanto perguntar–se sobre a pertinência do papel da arte na invenção de tais cartografias. Também aqui, o que importa são as forças em jogo em cada proposta artística: o quanto a criação parte das turbulências da experiência sensível contemporânea. Estas resultam dos inevitáveis atritos, tensões, impossibilidades que a complexa construção de uma sociedade globalizada implica singularmente em cada contexto e a cada momento. No campo das artes plásticas, estas forças tomam corpo não só nas próprias obras, mas em suas exposições e nos conceitos curatoriais que expressam, nos textos críticos que as acompanham e nas diretrizes dos museus que as acolhem – e por fim (ou início?), em todas as práticas artísticas que se fazem numa deriva para além do terreno institucional da arte, na qual tem embarcado parte da produção contemporânea. A força que predomina hoje neste território é a da denegação de tais turbulências, própria de uma flexibilidade reativa: a baixa antropofagia, como acima descrito. As mega–exposições tornaram–se uma das principais fontes das cartografias prêt–à–porter, vazias e sem relevo, adaptáveis para o consumo em qualquer ponto do planeta e a rápida aquisição de um repertório globalizado. Esta é provavelmente uma das razões pelas quais este tipo de exposição se espalha por toda parte em vertiginosa velocidade, a ponto de podermos supor que, num futuro nada longínquo, teremos bienais, gigantescas feiras de arte e museus de arte contemporânea com suas espetaculosas arquiteturas nas capitais de todos os países do planeta (o franchising de museus europeus e norte–americanos faz parte desta lógica).
Entretanto, paralelamente e a contrapelo deste mainstream, agitam–se outras forças que, de diferentes maneiras, trabalham na construção de cartografias a partir das tensões da experiência contemporânea e não de sua denegação. Através delas, afirma–se o poder poético da arte: dar corpo às mutações sensíveis do presente. Torná–las apreensíveis participa da abertura de possíveis na existência individual e coletiva – linhas de fuga de modos de vida estéreis que não sustentam coisa alguma a não ser a produção de capital. Não será esta precisamente a potência política própria da arte?
NOTAS
- A forte singularidade do Movimento Antropofágico no contexto internacional do modernismo ainda é relativamente ignorada fora do Brasil.
- designação de Tupinambá recobre uma grande variedade de grupos indígenas que habitavam o vasto território invadido e colonizado pela coroa portuguesa, no qual esta veio a “fundar” o Brasil.
- cf.: Carneiro da Cunha, Manuela & Viveiros de Castro, Eduardo. 1985. “Vingança e Temporalidade: os Tupinambás”, Journal de la Société des Américanistes 71: 191–217. Assim os autores descrevem o ritual: “Um prisioneiro, após ter vivido alguns meses ou até alguns anos entre seus captores, era abatido em praça pública. Decorado de plumas e pintado, travava com seu matador, também para- mentado, diálogos cheios de arrogância (…) Deveria ser idealmente morto com uma só pancada de Ibirapema, que lhe deveria esfacelar o crânio.” Depois disso, é que se devorava seu corpo seguindo um rigoroso ritual de distribuição de suas partes, e o matador retirava–se para seu resguardo.
- Segundo os mesmos autores, os portugueses queriam usar a prática de captura de inimigos para fazer escravos, mas os índios resistiam. Quando não dava para escapar às ordens dos colonizadores, eles preferiam oferecer–lhes seus familiares para a escravidão, ao invés de entregar–lhes seus inimigos e abrir mão do ritual antropofágico, com a matança em terreiro e suas demais etapas.
- Manuela L. Carneiro da Costa e Eduardo B. Viveiros de Castro, op. cit..
- Assim o descreve o antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro: “A colonização no Brasil se fez como esforço persistente de implantar aqui uma europeidade adaptada nesses trópicos e encarnada nessas mestiçagens. Mas esbarrou, sempre, com a resistência birrenta da natureza e com os caprichos da história, que nos fez a nós mesmos, apesar daqueles desígnios, tal qual somos, tão opostos a branquitudes e civilidades, tão interiorizadamente deseuropeus como desíndios e desafros”. (In: O Povo A formação e ou sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995).
- É o caso da obra de Lygia Clark, que se costuma incluir no Tropicalismo, quando a artista declarava explicitamente que seu trabalho nada tinha a ver com a proposta estética do Ver a este respeito, filme de entrevista de Caetano Veloso para Suely Rolnik para o arquivo de sua autoria: “Lygia Clark, do objeto ao acontecimento: ativação da memória de uma obra e seu contexto” (MinC, Cinemateca Brasileira e SESC–SP, 2008).
- Cartografia Sentimental. Transformações contemporâneas do desejo (São Paulo: Estação Liberdade, 1989, esgotado). 2a e 3a edições revisadas + prefácio (Porto Alegre: Sulinas / UFRG, 2006, 2007).
- A ditadura militar durou até 1985, quando, indiretamente, foi eleito o primeiro presidente civil do país. As primeiras eleições diretas ocorreram em 1989.
- A contra–cultura e a militância, dois pólos do movimento da geração dos anos 1960/70, foram ambos objetos do terrorismo do Estado durante a ditadura no Brasil.
- « Schizoanalyse et Anthropophagie ». In: ALLIEZ, Eric (Org.). Gilles Deleuze. Une vie philosophique (Paris: Synthélabo, col. Les empêcheurs de penser en rond, 1998 . P.463–476). Tradução brasileira: “Esquizoanálise e Antropofagia”, Gilles Deleuze. Uma vida filosófica (São Paulo: Editora 34, P. 451–462).
- Na América Latina em geral – e mais amplamente no Brasil – as obras de Guattari, Deleuze, Foucault e de toda uma tradição filosófica em que estas se inserem (Nietzsche e Espinoza, em particular) tiveram forte influência no campo psiquiátrico. Tal fato resultou numa postura crítica, interessada em problematizar as políticas de subjetivação no contemporâneo, fazer face aos sintomas que delas de- correm, compreendê–los em sua complexa transversalidade, enquanto sintomas de um contexto e de uma época e criar dispositivos de intervenção na densidade do real em função desta compreensão. No Brasil, esta singularidade alastrou–se pelas práticas terapêuticas em instituições públicas e em consultórios privados (inclusive entre os psicanalistas), bem como na formação universitária (aumenta cada vez mais o número de programas de doutorado neste linha de investigação em várias universidades). Para dar uma ideia da extensão desse movimento, os 30 profissionais que assumiram o Ministério de Saúde no primeiro mandato do governo Lula, situam–se todos nesta paisagem.
- Subjetividade Antropofágica / Anthropophagic Subjectivity. In: Herkenhoff, Paulo e Pedrosa, Adria- no (Edit.). Arte Contemporânea Brasileira: Um e/entre Outro/s, XXIVa Bienal Internacional de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, P. 128–147. Edição bilíngue (português/inglês).
- As noções de “capitalismo cognitivo” ou “cultural”, propostas a partir dos anos 1990, principalmente por pesquisadores atualmente associados à revista francesa Multitude, são em parte um desdobramento das ideias de Deleuze e Guattari relativas ao estatuto da cultura e da subjetividade no regime capitalista contemporâneo.
- Alguns destes ensaios encontram–se reunidos em edição bilíngue (espanhol/inglês) de Bruma- ria 8: “Arte y Revolución. Sobre historia(s) del arte”, Documenta 12 Magazine Project, 2007. Ou na edição multilíngue de Transversal multilingual webjournal: http://transform.eipcp.net/; 11/06 (Machines and Subjectivation) e 05/07 (Extradisciplinaire).
- A noção de “baixa antropofagia” aparece no Manifesto Antropófago, que a qualifica de “peste dos chamados povos cultos e cristianizados”. (Cf. ”Manifesto Antropófago” [1928], in A Utopia antropofágica, Obras Completas de Oswald de Globo, São Paulo, 1990).
- Zombie Anthropophagy. In: Curlin Ivet, Ilic Natasa (org), Collective Creativity dedicated to anony- mous worker. Kunsthalle Fridericianum: Kassel, 2005. Edição bilíngue (alemão/inglês). Em espa- nhol: Antropofagia zombie, in Brumaria 8: “Arte y Revolución. Sobre historia(s) del arte”, Documenta 12 Magazine Project, . Em português: Antropofagia Zumbi, in op. cit. (V. nota 15).
- “Subjetividade flexível”, noção que criei em 2003, inspira–se parcialmente da noção de “per- sonalidade flexível” sugerida por Brian Holmes, em texto escrito em 2001, a qual desenvolvo da perspectiva dos processos de subjetivação (V. Holmes, Brian, “The Flexible Personality”. In: Hi- eroglyphs of the Future. Zagreb: WHW/Arkzin, 2002; ou no Blog do autor: brianholmes.wordpress. com). Holmes retomou a ideia, mais recentemente (2006), no ensaio “The Flexible For a New Cultural Critique” (transversal 11/06: machines and subjectivation – http://transform.eipcp.net/transversal/1106; publicado por: eipcp – European Institute for Progressive Cultural Policies ; contact@eipcp.net ; http://www.eipcp.net..
- A Europa do Leste compartilha com a América Latina situações que fizeram com que a insta- lação da flexibilidade capitalística gerasse efeitos similares aos sugeridos no texto (o que mereceria ser objeto de uma pesquisa em comum). No entanto, há um fenômeno específico que entra em jogo em alguns países da Europa do Leste, neste mesmo contexto, que é justamente o surgimento dos fundamentalismos de toda espécie, tal como mencionado no corpo do texto.
- Alguns dos sinais deste fenômeno: as agências brasileiras costumam vencer todos os concursos internacionais de publicidade; as novelas da Rede Globo de televisão são difundidas em mais de 200 países; a mulher brasileira, segundo as estatísticas, é a que mais se identifica e se submete aos padrões ideias do corpo feminino estabelecidos pela mídia, o que coloca o Brasil no topo do ranking do consumo de cosméticos, de remédios para emagrecimento e de cirurgias plásticas.
Suely Rolnik é psicanalista, crítica de arte e curadora. Professora titular da PUC–SP, foi fundadora do Núcleo de Estudos da Subjetividade. Autora de Cartografia Sentimental e Micropolítica, cartografia do desejo (com Guattari), tem vasta pesquisa em torno de Lygia Clark, a arte contemporânea e as políticas de subjetivação na atualidade.
FONTE
Cadernos de Subjetividade, n. 12 (2010).