Em abril de 1987, o psicanalista Félix Guattari foi entrevistado[1] por um canal francês de TV para falar acerca de seu trabalho (com o filósofo Gilles Deleuze) em O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (1972), o qual produziu uma ruptura com a ortodoxia freudiana. Apesar da radicalidade da obra, ele nos lembra que muitos outros realizaram um deslocamento de um certo tipo de psicanálise e seu projeto não se tratava literalmente de uma ruptura com o campo psicanalítico, mas sim com o estruturalismo na psicanálise, principalmente por reduzir as produções do inconsciente a fatos da linguagem.
Para Guattari, o ataque à psicanálise foi necessário em nome da descoberta psicanalítica, para que não continuasse a se afundar em conflitos dogmáticos, em capelas, pois, segundo ele, estas capelas apresentavam uma prática de análise cada vez mais pobre e estéril. Portanto, da perspectiva deste pensador, foi preciso escrever O anti-Édipo, da forma estrondosa como foi, para possibilitar uma abertura das janelas do consultório e uma preparação para outros tipos de problemas além dos de identificações intrafamiliares.
Cabe lembrar que, segundo Guattari, Deleuze o viu como “uma espécie de ala esquerda do lacanismo”[2] e, assim, “O anti-Édipo surgiu como um acontecimento, como uma ruptura que reunia outras contestações potenciais, outras rupturas, outros questionamentos, sob um outro ângulo da psicanálise”.[3] Desse modo, no contexto francês pós-Maio de 68 surge a Esquizoanálise, forjada por um psicanalista e um filósofo. Anteriormente, Guattari havia fabricado o conceito de análise institucional para se contrapor à ideia de psicoterapia institucional, porém, nos anos 1980, demonstrou seu incômodo ao perceber que a análise institucional na América Latina havia sido capturada por professores universitários, psiquiatras e psicólogos, os quais a remeteram “a doutrinas de intervenção, a especialistas, a corpos institucionais especializados”.[4]
Como podemos perceber, esse analista, filósofo e militante não temia confrontos, nem se aprisionava em conceitos ou capelas. Ele sabia que, na psicanálise, havia confrontações de classe e, sempre que necessário, inventava novos conceitos, produzia outras possibilidades de intervenção, sem paralisar-se em retornos à tal ou qual mestre.
Pensamos na produção de uma esquizoanálise latino-americana, fabricada em nossa época, território, demandas e potências, mas desejamos não apagar nossas potentes origens como muito se faz até o presente momento nas práticas colonizadoras. Porém, hoje cabe perguntar o que diria Guattari acerca de uma certa “esquizoanálise” capturada em espaços institucionais, em que se forja um rosto no qual a apresentam como uma linha antipsicanalítica ou ainda como “a” mais atual abordagem psicoterapêutica. Contudo, basta ler a obra de Guattari, incluindo suas importantes entrevistas, para saber que em nenhum momento desejou inventar a esquizoanálise para asfixiá-la como uma especialidade “psi”, nem mesmo fechá-la em uma capela, como ocorreu com o lacanismo, ou reduzi-la a uma antipsicanálise. Aparentemente, alguns deixaram de lado seu alerta sobre a existência de um “falso nomadismo que nos deixa no mesmo lugar”.[5]
O molotov guattariano sempre foi lançado em direção ao discurso de saber-poder dos especialistas que tentavam privatizar o campo do inconsciente e a redução do desejo. Não à toa, Guattari, como dinamite dentro (e fora) da psicanálise, forjou uma prática analítica implicada, política e historicamente, com sua época, implodindo e transbordando uma psicanálise futurista, a qual olha para um inconsciente “voltado para o futuro”.[6] Neste sentido, é possível perceber que uma análise pode vir a compreender a força das avaliações, das escolhas, diferenças e composições, sem esquecer que “a vocação primeira da análise, na perspectiva freudiana, era a de uma abertura extremamente grande a todos os problemas sociais, estéticos, etc.”.[7] A partir dessa perspectiva, a análise é vista como uma análise de futuro, visto o inconsciente ter uma função de futuro, assim como os sonhos dos povos originários. Foi exatamente nessa direção que este psicanalista apostou, tendo em seu horizonte não um retorno ao passado, mas o encontro com o futuro, o pragmático e pulsional.
Quando Guattari e Deleuze criticaram a psicanálise, não foi necessariamente para produzirem uma antipsicanálise, afinal, eles mesmos escreveram que não escondem que a esquizoanálise seria “uma psicanálise política e social, uma análise militante”.[8] Portanto, para nós, psicanalistas que compomos este livro, estes autores marcaram um importante lugar dentro da recomposição do olhar psicanalítico; eles contribuíram com a fabricação de dispositivos críticos em relação à psicanálise e produziram uma dobra ali onde alguns analistas paralisaram. Desde Freud, é sabido que jamais haverá como avançarmos em nosso campo sem uma constante reavaliação de nossa teoria, prática e do movimento psicanalítico.
Após a publicação de O anti-Édipo, o psicanalista Jacques Lacan afirmou que “a clínica psicanalítica consiste em re-interrogar tudo o que Freud disse”[9] e que ela “deve nos ajudar a relativizar a experiência freudiana”.[10] Nesse sentido, é urgente uma decolonização na/da psicanálise ― a começar por uma desterritorialização europeizante —, mas, ao mesmo tempo, é necessário adentrar no debate da memória, pois a negação da memória, da História, é um grave problema no Brasil, principalmente no que concerne ao racismo, ao período da ditatura civil-militar e ao colonialismo. Desse modo, adentrar no debate da memória é participar da política. E ao questionar os fundamentos psicanalíticos a partir dos desafios que se apresentam em nosso tempo, temos a oportunidade de seguir pensando e inventando dispositivos que possibilitem políticas de composição, políticas para uma vida não-fascista.
Se O anti-Édipo surgiu quando as coisas não estavam indo bem, tratando-se de uma obra produzida para os inconscientes que protestam, demonstrando os protestos dos autores e sua mensagem aos aliados que buscavam, aliados que, como afirmou Deleuze, eles sabiam que já existiam e não esperavam por eles. Cada vez mais sabemos da importância em construir e fortalecer alianças e territórios existenciais que se movimentam por transversalidades, rizomas e desdobramentos. Porém, hoje, escrevemos porque as coisas ainda não estão indo bem, mas não somente na psicanálise, também no uso que atualmente se faz do que chamamos de esquizoanálise.
Sabemos que esta tarefa atual, ética e política, é também uma tarefa de guerrilha. E para tal, durante o período de pouco mais de um ano[11], repleto de encontros e desencontros, constituímos uma matilha com analistas de diversas partes deste planeta, agenciamos em/com outras línguas, gaguejamos em nossas palavras, escrevivemos,[12] traduzimos, revisamos, revisitamos perspectivas, nos afetamos e compomos coletivamente a realização de um diálogo inacabado entre psicanálise e esquizoanálise, o qual se iniciou em um debate inaugurado há 50 anos com a publicação de O anti-Édipo.
Consideramos que este é um diálogo atual e é importante que exista e permaneça em movimento. Portanto, foi uma grande alegria reunir psicanalistas de diversas gerações e territórios (Argentina, Brasil, França, Inglaterra) nesta coletânea, os quais contribuíram e com a potência de suas palavras asseveram que o conjunto destas leituras somente poderia ter se tornado uma obra com estilos variados, repleta de flutuações entre a densidade das abordagens que aqui se faz presente, explicitando através da escrita de cada um(a) como essa diferença se apresenta em cada pensamento e como tem sido possível a produção dessa composição sem necessariamente omitir ou excluir a existência do outro.
Não falamos em nome de Guattari, nem de Deleuze, Freud e companhia, mas através deles, com eles, e com o legado que nos deixaram: o compromisso com o campo dos afetos, dos encontros, da diferença e da vida. Evidentemente, aqui nos aliamos às contribuições desses autores, os quais nos afetaram e nos deslocaram de maneira radical da ordem do entendimento como busca neurótica pela Verdade, provocando o corpo a desanestesiar-se do campo das representações, inserindo-nos no universo das afetações, no campo das intensidades, das diferenças e da imanência.
Em vista disso, não deixamos de fazer emergir na memória o legado/surgimento da psicanálise e do encontro da radicalidade da esquizoanálise com esta máquina de fazer ver e falar. Nos rastros de Maio de 68, retornamos a uma das pichações mais famosas daquele acontecimento: sejam realistas, exijam o impossível. Para alguns é impossível essa composição, mas somos realistas e, por meio da força dessa importante caixa de ferramentas esquizoanalítica, fazemos do impossível um lugar de possibilidades.
Os textos que compõe esta coletânea são perpassados por diversos olhares. Encontram-se aqui olhares críticos acerca da psicanálise, perpassando os escritos acerca dessa revolução dentro da revolução e do desejo, do uso singular da língua. Adentramos na memória e história de O anti-Édipo e seus detratores, caminhando pelas terras freudianas, mergulhando em um devir-esquizoanalista para uma possível psicanálise menor. Mantemos, nesta coletânea, um diálogo constante entre estes pensamentos. Porém, para ir além disso, nos aliamos às perspectivas decoloniais de outras autoras e autores que, mediante suas interlocuções com a psicanálise e a esquizoanálise, oxigenaram estas perspectivas heterogêneas, contribuindo, neste processo, em colocar fogo no racismo, no colonialismo, no edipianismo e nas violências de gênero que ainda persistem em nossos territórios; construindo em conjunto um viver a partir do inconsciente em entrelaces com uma ética ecofeminista da psicanálise.
Ao passo que se seguem os escritos, inserimos, em uma certa desordem, os esquizos na psicanálise e levamos a psicanálise aos esquizos, realizando cartografias analíticas. Por fim, esta coletânea se encerra com palavras precisas acerca da fundação da psicanálise em nosso mundo como micropolítica, a composição com a natureza, o ecossistema e os povos originários. Esperamos que as aranhas, os Guarani e os Guattari continuem se espalhando pelo planeta, oxigenando e afetando outros mundos, produzindo uma decolonização do inconsciente.
Março de 2022.
Anderson Santos
NOTAS
- Disponível em: https://clinicand.com.br/felix-guattari-entrevista-sobre-o-anti-edipo e https://www.youtube.com/Clinicand
- UNO, Kuniichi e GARCIA DOS SANTOS, Laymert. Guattari: confrontações. São Paulo: n-1 edições, 2016, p. 45.
- Ibidem, p. 47.
- Comentário feito em uma conversa informal na cidade do Recife em 1982. GUATTARI, Félix e ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
- GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. 2. ed. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34, 2012, p. 170.
- GUATARRI, Félix. O inconsciente maquínico: ensaios de esquizoanálise. Campinas: Papirus, 1988, p. 10.
- UNO, Kuniichi e GARCIA DOS SANTOS, Laymert. Guattari: confrontações, op. cit.
- DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix (1972). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2011, p. 135.
- LACAN, Jacques. Abertura da Seção Clínica. Ornicar?, n. 9, 1977, p. 8. [Reproduzido e traduzido em Traço, ano 1, n. 0, set.out. 1992]. Disponível em: http://www.traco-freudiano.org/tra-lacan/abertura-secao-clinica/abertura-clinica.pdf
- Ibidem, p. 11.
- 2021-2022.
- Referência ao conceito “escrevivência” cunhado por Conceição Evaristo.
FONTE
Texto publicado em “Psicanálise e Esquizoanálise: diferença e composição” (org. Anderson Santos, 2022, n-1 edições).