POR UMA PSICANÁLISE LAICA: ENTREVISTA COM RADMILA ZYGOURIS

Realização Andréa Carvalho, Bela M. Sister, Danielle M. Breyton, Deborah Cardoso, Silvio Hotimsky e Susan Markuszower

Tradução Andréa Carvalho e Danielle M. Breyton


Nosso grupo iniciou este trabalho de forma diferente e surpreendente. Fomos procurados por colegas da Comissão de Admissão do nosso Departamento2 com a sugestão de realizar uma entrevista sobre formação em psicanálise, destacando a questão da admissão de novos membros dentro de uma instituição de psicanalistas. A proposta de um reencontro com Radmila Zygouris, que havia sido entrevistada pela Percurso em 1995, nos pareceu muito feliz. No decorrer desses anos ela seguiu produzindo um pensamento vivo, atual e radical que interessa ser atualizado aos leitores de nossa revista.

Radmila foi membro da École Freudienne de Paris (efp), fundou o grupo Ateliers de Psychanalyse e participou da criação da revista L’Ordinaire du Psychanalyste, que tinha como princípio a publicação de textos não assinados por seus autores com a finalidade de promover um espaço onde as ideias pudessem ser expostas e lidas da forma mais livre possível. Escreveu vários livros, alguns deles publicados em português, como Ah! As belas lições(Escuta,1995), Pulsões de vida (Escuta,1999), O vínculo inédito (Escuta, 2003), Nem todos os caminhos levam a Roma (Escuta, 2006) e uma grande quantidade de textos e palestras que podem ser encontrados em seu belo e interessante site: http://www.rad­mila­zygouris.com/

Sua visão inovadora tanto se reflete nas suas considerações sobre a formação do psicanalista e sua relação com as instituições, como no que diz respeito ao encontro analítico. Para ela, é fundamental que haja uma cultura de heterogeneidade na formação dos analistas e que estes assumam a laicidade da psicanálise associada a uma postura política de luta contra o esmagamento do sujeito por um mundo que valoriza a uniformização, a robotização, o controle e a normalização. Merecem destaque suas reflexões a respeito do vínculo e da transferência, marcando de forma singular o trabalho possibilitado por uma relação analítica, onde o analista deve poder se adaptar às possibilidades dos seus pacientes.

Radmila Zygouris analisa o lugar das teorias na tentativa de compreensão da complexidade das estruturas psíquicas, chama atenção para a importância das descobertas das neurociências e retoma as discussões sobre a pulsão de morte dentro da psicanálise. Suas contribuições ampliam e aprofundam os questionamentos propostos pelos grupos de admissão e de entrevista.

A ela, nossa gratidão pelo cuidado e generosidade ao responder esta entrevista, realizada por e-mail em agosto de 2010.

SILVIO HOTIMSKY

SUSAN MARKUSZOWER


PERCURSO: Relendo sua entrevista publicada na revista Percurso em 1996, nos surpreende a atua­lidade de suas reflexões, seus questionamentos e propostas, visando a uma livre interlocução entre analistas. Passados quase trinta anos da fundação da Federação dos Ateliês de Psicanálise (FAP) [3], que balanço a senhora faz hoje dessa experiência? Quais foram seus ecos ou desdobramentos?

ZYGOURIS: Em mais de vinte anos houve duas gerações de psicanalistas formados parcial (vin­dos de outras instituições) ou inteiramente den­tro da FAP. Pelo que posso constatar, algo do nosso desejo inicial foi transmitido: hoje, assim como ontem, não há posições e nem práticas dog­máticas, e, pouco a pouco, uma verdadeira cultura de heterogeneidade começa a existir.

Referências múltiplas coexistem.

Após um longo período em que constata­mos certa rejeição ao lacanismo, atribuível a uma intoxicação sofrida pelos antigos da École Freudienne, os mais jovens, que não conheceram isso, começam a redescobrir Lacan de maneira mais fresca e mais leve.

No conjunto, a aposta sobre o primado da clínica foi mantida. Os membros são em sua maioria, do meu ponto de vista, bons clínicos e muito bons terapeutas. Isso tem um preço: ape­nas uma minoria consegue levar adiante uma im­plicação clínica – frequentemente excepcional – e a disponibilidade necessária à pesquisa e à pro­dução teórica. Pois, com frequência, trata­-se de uma questão de tempo e não apenas de interesse ou disposição intelectual. Um bom clínico consa­gra muito tempo a seus pacientes, a escutá-los, a refletir sobre o que ele escutou, e um bom teórico deve também dedicar muito tempo aos conceitos e aos trabalhos teóricos de outros analistas.

A FAP não se tornou conhecida particular­mente por publicações nem pela presença midi­ática. Isso tem vantagens e desvantagens.

época mudou e a vida dos jovens analis­tas se tornou mais difícil, material e psicologi­camente. Eles devem trabalhar muito mais do que aqueles da minha geração, na idade corres­pondente, para subsidiar suas necessidades, e as condições de trabalho dentro das instituições de saúde se tornaram pouco valorizadoras e desa­gradáveis. No setor público, eles são obrigados a lutar para manter um mínimo de condições de duração das sessões para poder escutar como analistas seus pacientes adultos ou crianças.

No setor privado, eles deparam com pacien­tes vivendo em condições cada vez mais precá­rias, o que não facilita o tempo necessário das análises.

Os Ateliês de discussões clínicas são, a esse título, assim espero, espaços onde eles podem de­bater sobre essas novas dificuldades em compara­ção às exigências teórico­-clínicas das “formações” institucionais clássicas.
Continuamos a não praticar nenhum reco­nhecimento em termos de titularização ou dife­renciação de níveis ou passe. O reconhecimento acontece, não obstante, de maneira mais sutil. A confiança não é um conceito psicanalítico, no en­tanto ela é um fator que determina o encami­nhamento de pacientes. É difícil explicar por que alguém inspira mais confiança do que um outro. Isso pode ter a ver com a capacidade de escre­ver ou de sustentar discursos sábios! É suficiente que cada um procure em seu foro íntimo a quem ele enviaria um ser querido, para ver quão pouco peso tem o reconhecimento midiático…
No que diz respeito à instituição, um dos problemas que percebo é o risco de certa endo­gamia. Como não temos o recurso a UMA teo­ria que habitualmente cimenta os membros de um mesmo grupo, nem uma hierarquia de dis­tribuição de títulos e de níveis, como é o caso da maioria das instituições analíticas, os fatores de simpatia ou antipatia pessoais podem tomar um lugar dominante. Logo, dificilmente escapa­mos dos canais transferenciais e da vinculação dos antigos analisandos a seus analistas. É por isso que falo em endogamia e encorajo os jovens que fizeram suas análises com membros da FAP a viajar e ir ver como funciona em outras insti­tuições. Habitualmente eles vão e voltam. É um problema, pois as transferências ficam frequen­temente mais virulentas do que acreditamos, e isso engendra tensões e rivalidades que o traba­lho nem sempre consegue sublimar. Dito isso, constato a mesma endogamia nas instituições em que se titulariza…
Penso que há um grande trabalho a ser feito sobre os laços muito arcaicos que se encenam no interior dos grupos de analistas. Acabei por me dar conta de que frequentemente uma análise acaba não unicamente no espaço privado de uma relação analista/analisando, mas em uma confli­tiva grupal. O aspecto arcaico passa, na maioria das vezes, despercebido, quando ele é, bem mais do que pensamos, o motor de violências nas ins­tituições entre os analistas.
Com frequência uma análise “didática” ter­mina na praça pública! Quantas cisões institu­cionais levantam problemáticas transferenciais e narcísicas não analisadas, pois secretas. Ferenczi, novamente mais clarividente que outros, tinha proposto levar uma análise didática até a análise de caráter!! Tarefa imensa. Ora, sabemos bem que o que mais dificilmente se transforma numa análise é o caráter. Noção da qual não falamos espontaneamente.
Não posso dizer muito mais sobre a FAP, é uma instituição com poucas estruturas fixas, que muda de presidente e de escritório a cada dois anos, renováveis uma única vez. Portanto, uma equipe bastante renovada assume a direção a cada quatro anos. O que dá, com cada nova equipe, uma tonalidade diferente, um ritmo di­ferente, um estilo diferente.
Pessoalmente me retirei de toda função ins­titucional. Penso que os “velhos” devem ceder lu­gar aos mais jovens, que estão mais bem colocados para sentir os sintomas de sua época dos quais eles padecem, assim como seus pacientes. Estão mais bem situados para sentir o espírito da época. Estou, entretanto, sempre interessada pelo que está acontecendo e encontro, regularmente, vários dos membros que são também meus amigos.
Se entendi bem, vocês estão me perguntando se nós criamos modelos? Não. Mas muitos dos temas mais importantes, das nossas prioridades, que nos anos 1986­-96 não interessavam a nin­guém, são hoje temas de colóquios das mais im­portantes instituições. É o caso do interesse em relação a Ferenczi, Winnicott, a contratransfe­rência, a noção de acolhimento, e mesmo o lugar cada vez mais importante dado ao afeto!! Lembro que até pouco tempo atrás, nos meios lacania­nos esse termo era banido sob o pretexto de que o conceito de angústia era suficiente… e porque Lacan o tinha ridicularizado..
Mas mesmo a palavra afeto voltou, e é um sinal de que o interdito está empalidecendo…
Aí estão alguns dos domínios sobre os quais nós já estamos adiantados, não por sermos me­lhores, mas simplesmente mais livres para esco­lher as palavras dos nossos discursos. E constato, com alívio, que uma mudança está se operando.
Está chegando, está chegando… mas não podemos dizer. É impressionante como os analistas têm medo da infidelidade! Estamos distantes de estarmos à altura de uma boa so­ciedade laica.
PERCURSO: O que a Sra. destacaria como pri­mordial na formação de jovens analistas? Quais são suas considerações a respeito da questão do tempo e do talento no devir de um analista? A seu ver: por que nos tornamos analistas? Como nos tornamos analistas? E ainda… como nos mantemos analistas?
ZYGOURIS: Vasta questão! Ela recobre todo o campo da formação de analista e do desejo de análise.
O que me parece primordial é a capacidade de estar em uma proximidade ao outro humano, qualquer que seja ele. É uma aptidão subjetiva so­bre a qual não devemos transigir: deve ser ani­mada por um desejo de escutar o não dito e por uma curiosidade intelectual face ao funciona­mento psíquico do outro e de si mesmo, frente a esse outro. Ao mesmo tempo, há que se possuir uma confiança nas suas próprias capacidades de sustentar uma relação com o desconhecido e com a angústia que engendra o sofrimento psíquico, do qual o paciente demanda ser libertado.
Mas, acima de tudo, alguns, mais do que ou­tros, têm um desejo e um poder de proximidade com o humano estrangeiro. Estar próximo man­tendo o respeito à diferença, trabalhar no sentido de uma transformação sem tomar o poder sobre ele. Isso pode tomar os mais diferentes aspectos segundo os indivíduos.
A presença unicamente da curiosidade faz pesquisadores. Mas um analista não é apenas um pesquisador. Se for apenas isso, estamos diante de um comportamento cínico. Um analista cí­nico é um ser perigoso para os seus pacientes. Ao contrário, se ele tem unicamente a capacidade de sustentar uma relação com o desconhecido, de se implicar em uma relação terapêutica e suportar angústia, corremos o risco de cair na compaixão, o que também não é desejável.
Em suma, é necessário ser curioso sobre os mistérios do pathos, trabalhando no sentido de re­solvê­-los pelo desdobrar da história do paciente e dos seus conflitos através da transferência, tendo a sabedoria de suportar as postergações, as resis­tências e as denegações.
Um analista não pode ter pressa! Essas são as qualidades de um analista que não é um pes­quisador frio e cínico frente a seu analisando, mas também um terapeuta que não o aprisiona em suas especulações puramente intelectuais. Sei que em muitos círculos psicanalíticos a ideia de terapeuta é mal vista. Pra mim tanto faz. Esses mesmos, que escrevem contra a análise como te­rapia, veem um dia ou outro demandar ajuda… simplesmente para conseguir suportar a vida! Então tento não ter uma visão esquizofrênica da psicanálise e levar em conta aquilo que conheço através da minha experiência cotidiana.
A análise ajuda um outro a se pensar. Mas o pensamento numa análise não é uma operação intelectual. A análise abre uma inteligibilidade outra em relação a si mesmo e ao outro. E por isso é necessário ser capaz de fazê­-lo antes para si mesmo. É para isso que serve a análise neces­sária para se tornar analista.
Por que nos tornamos analistas? Responde­rei de maneira abrupta: pois a maioria dos ana­listas tem famílias loucas! Porque há loucuras escondidas nas melhores famílias, assassinatos psíquicos atuais ou foragidos dentro da história familiar, e porque há também traumas que vêm afetar certas famílias ou certos indivíduos mais do que outros. Não nos tornamos analistas por ra­zões sempre confessáveis. Ou então nos tornamos médicos, dentistas, comerciantes ou cientistas. Mas há também pessoas que se tornavam psica­nalistas (coloco no passado, pois não é mais uma verdade) porque os psicanalistas ganhavam muito bem suas vidas, muito melhor do que os médicos ou os psicólogos! Era, portanto, um modo impor­tante de ascender socialmente. Essa época é pas­sado na França, com exceção dos psicanalistas que fazem sessões ultracurtas e despacham um grande número de pacientes em pouco tempo.
Como nos tornamos analistas? Tornamo­-nos analistas analisando, portanto graças ao me­nos a um analisando que endereça uma demanda de análise a esse analista. Dizem que nos tornamos analistas através da própria análise, sim, mas é uma preliminar, não há analista sem analisando. Isso acontece seja nas instituições que traçam um cami­nho muito formalizado, seja vivendo uma verda­deira aventura subjetiva. Mas mesmo num percurso padronizado, há sempre uma parte de aventura.
Emito uma hipótese: em cada devir­-analista há momentos privilegiados. Momentos­-chave. Momentos em que deparamos com a presença real do inconsciente que faz acontecimento. Esse acontecimento psíquico faz efeito de iluminação. Em seguida isso pode voltar a se fechar, mas esse momento fará marco nesse percurso. É raro que um analista não tenha vivido uma experiência desse tipo. Podemos então falar de iniciação sem ritual, sem crença particular prévia. É perigoso falar desse tipo de coisas – pois abrimos brecha a críticas da ordem do irracional. No entanto, nada solicita mais o pensamento do que tal experiência de resplandecência. E muito frequentemente es­ses momentos de clarão voltarão para estimular mais e mais o analista em sua pesquisa.
E, finalmente, como nos mantemos analistas?
É uma questão muito boa. Pois não somos analistas de uma vez por todas. Há analistas que, enquanto analistas, são fósseis há muito tempo, mas como continuam a se manifestar, seja escre­vendo, seja ocupando posições sociais importan­tes, esquecemos que eles são verdadeiros zumbis.
Penso, então, que se trata inicialmente de continuar vivo, e de manter a paixão pela psicanálise. E essa paixão nada mais é do que o vis­lumbre de um não saber e o intenso desejo de vencê-­lo. Eu sei que Lacan disse que a histérica tinha a paixão da ignorância… mas eu não estou falando da ignorância, falo de uma percepção de um não saber que é motor, que incita a pesquisar e a incrementar o saber.
Logo se trata de se manter vivo e curioso. Falávamos outrora de curiosidade sexual infantil. Isso é apenas uma outra maneira de dizê-­lo.
Há que se admitir que nós nunca acabamos de aprender, e que, com cada um dos pacientes, a psicanálise se reinventa, mesmo quando temos dezenas de anos de prática nas costas. Se não há mais encantamento, se não há mais surpresa, en­tão o analista se entedia, e um analista entediado é um analista morto.
Faço um parêntese: é necessário fazer uma ex­ceção para o aborrecimento que alguns pacientes provocam no analista e que é característico daquela transferência ou do domínio de certo interdito de pensar que é, em geral, a repetição de um silêncio mortal na história do paciente. Mas esse tipo de enfado provoca o analista ao pensamento e não ne­cessariamente o adormece. E há também o anali­sando que precisa adormecer seu analista em certas sessões…. mas esses são casos particulares.
Muitos analistas trabalham até idades bem avançadas. Eles não são obrigados a fazê-­lo. Tra­ta ­se de interesse científico ou algo bem pior? Por que não uma adicção? Mas podemos também di­zer que o fato de não conseguir se desligar é o si­nal de que a sua própria análise é interminável.
PERCURSO: Se focalizarmos a relação do psicana­lista com as instituições, a Sra. considera que a formação de psicanalistas pode se dar fora de insti­tuições psicanalíticas? Será que o exercício da psi­canálise sobrevive sem as instituições formais?
ZYGOURIS: Não é possível se tornar psicana­lista sozinho, nem se manter psicanalista isolado. Cada analista precisa de outros analistas para co­locar sua prática e seu pensamento à prova. Sozi­nho ele corre o risco de delírio de grandeza e de onipotência, mas também de se desencorajar.
Mas isso não significa precisar estar em uma instituição. Um analista pode trabalhar com um pequeno número de colegas sem uma institui­ção formal.
Acontece que, sempre que um grupo ultra­passa um certo número de participantes, um mí­nimo de regras de trabalho se torna necessário e, inevitavelmente, a instituição se perfila. O insti­tuído tende sempre a reprimir o instituinte. Mas é o instituinte que impulsiona a criatividade ne­cessária à vitalidade da psicanálise.
É uma questão completamente diferente que se coloca a partir do momento em que um agrupamento de analistas pretende se tomar por fiador oficial da qualidade de analista de seus membros. Aí podemos falar de instituições for­mais. Há duas décadas houve uma enorme multi­plicação de instituições analíticas, levando a uma tamanha diversidade de práticas, que se torna di­fícil falar da psicanálise. Podemos nos perguntar legitimamente se ainda existe uma unidade da psicanálise. As divergências se tornam mais im­portantes que os pontos de concordância.
Por exemplo, o que resta em comum entre a prática da psicanálise pelos analistas da Cause Freudienne e aquela dos analistas kleinianos, ou ainda dos pós-­lacanianos, dos pós­-kleinianos, dos alunos de Bion e dos freudianos ortodoxos? Às vezes, temos a impressão de que termos como o inconsciente, a transferência, a pulsão ou a repe­tição – supostos conceitos fundamentais da psi­canálise – recobrem conteúdos semânticos e tratamento clínico tão díspares que eles represen­tam exclusivamente apelações formais idênticas.
Devo, ainda assim, fazer aqui uma correção àquilo que disse antes: todos os analistas, as­sim como seus analisandos, vivem dentro de um mesmo mundo. E apesar das divergências apa­rentes – diga-­se dogmáticas – que separam as diferentes instituições, os praticantes são obriga­dos a levar em conta a sua época, suas mudanças e os imperativos políticos que pesam sobre os ci­dadãos. Então, se olharmos mais de perto, se não levarmos mais em conta os discursos teóricos ofi­ciais a partir dos quais os diferentes grupos se le­gitimam, constatamos que todos são obrigados a mudar em função do espírito da época. Assim, e somente assim, podemos encontrar semelhanças e incômodos comuns. Respostas similares a difi­culdades idênticas. É, portanto, através do polí­tico que podemos reencontrar um diálogo e uma luta compartilhada.
Então, pode a psicanálise sobreviver sem instituições formais? Sem dúvida não. Pois hoje em dia não existe mais nenhuma homogeneidade teórica nem prática que possa fazer alicerce co­mum e unidade entre as diversas instituições ana­líticas. Poderíamos ainda dizer que há um “objeto” comum? Se dissermos que é o inconsciente, já ca­ímos em conflitos, pois não se trata do mesmo in­consciente segundo os diferentes grupos.
Então?
Então sobra apenas a referência à palavra psicanálise (ou ao significante psicanálise, se pre­ferirem, mas não muda nada) que ainda mantém uma unidade, imaginária por enquanto.
Evidentemente há instituições que têm em comum mais do que a palavra psicanálise, que têm referentes comuns assim como exigências éticas e científicas, além da técnica psicanalítica, do dispositivo e do método da associação livre.
Mas por quanto tempo? Parece que as pe­quenas diferenças dos narcisismos de grupo pre­valecem sobre o interesse geral. E há ainda as guerras que precederam as gerações atuais. As guerras entre nossos ancestrais analistas que nós continuamos a levar sem ainda conhecer os ver­dadeiros motivos.
O que nos resta é inegavelmente uma origem comum: Sigmund Freud… e… um inimigo co­mum: o esmagamento do sujeito por um mundo em vias de uniformização e de robotização.
É possível que, no fim das contas, seja graças a esse inimigo comum que uma unidade poderá se reformular para além das guerras de capelas.
E, contudo… há para mim um critério que não engana. Quando viajo e falo com analistas que não conheço, quantas vezes não encontrei essa magia de um interesse comum, de uma pai­xão comum que circula para além dos códigos, das diferenças de língua e de formações, assim que começamos a falar da clínica? Há analistas, qualquer que seja a formação deles, com os quais essa magia se dá, e outros, aparentemente mais próximos, com os quais não posso trocar nada, frente aos quais fico muda e cujo discurso me gela. Em geral, esses analistas não se dignam a falar de clínica. Preferem ficar nas esferas desen­carnadas da teoria. Penso que a fronteira, para mim, passa por aí: eu não tenho nada a dizer a ideólogos. Pois um analista que não pode dividir sua prática da loucura e da solidão (a sua e a de seus pacientes) com outros é um ideólogo.
PERCURSO: Em seu texto “Stardust”[4], a Sra. su­blinha a franca oposição da FAP à nomeação do analista, venha ela de onde vier. Poderia se esten­der um pouco mais sobre esse ponto? 
ZYGOURIS: Não gostaria de comprometer de maneira alguma a FAP, como instituição, com as minhas respostas. Estive, junto com outros oito analistas, na origem de sua fundação, mas hoje não ocupo nenhuma função oficial. Expresso­-me, portanto, de maneira estritamente pessoal.
Vale dizer que desde o início da FAP houve uma parcela de membros da antiga École Freudienne e outra parte de analistas vindos da SPP (Sociedade Psicanalítica de Paris), afiliados à IPA. Uns e outros tinham experiência de instituições que efetuavam a nominação de analistas, cada uma delas de uma maneira diferente. Tínhamos, cada um de nós, visto o quanto um reconheci­mento institucional não garantia em nada a qua­lidade de psicanalista. E ainda o quanto analistas de renome podiam fazer besteiras, isso para di­zer as coisas de maneira mais suave. Então, desde as origens nós não queríamos nominações. Em contrapartida, alguns de nós, eu inclusive, tinham assistido a júris de nominação e tivemos a oca­sião de ver o arbitrário inevitável desses títulos. Eu tinha pessoalmente feito o passe, como pas­sadora, assim como candidata a passe. Conhe­cia, portanto, seus mecanismos desde o interior. E veja que a EFP não era a pior das instituições. É com conhecimento de causa que nós tomamos essa decisão de não praticar nominações.
Quem pode dizer quem é analista e, sobre­tudo, quem não é? Ainda que a maioria dos ana­listas esteja de acordo em dizer que se deve, para tornar­se analista, ter feito uma análise pessoal prolongada. Mas então: o que é uma análise pes­soal prolongada? Imediatamente se coloca o pro­blema dos critérios de final da análise. A cada dez anos esses critérios mudam. Era, em dado momento, a ascensão ao estádio genital, depois à simbolização da castração, e ainda, ou ao mesmo tempo, a localização dos significantes mais im­portantes, etc. etc. e depois veio, nos lacanianos, a moda do passe com seu falta­a­ser, último grito! No início, Lacan ainda vivo, o passe era uma ex­periência facultativa, que tinha seu interesse enquanto experiência, mas depois de sua morte ela se tornou praticamente obrigatória, leia­se em­blemática e, em certos locais, sinal de uma análise bem­sucedida. Seria engraçado, se o poder de no­minação não implicasse também inevitavelmente em humilhações e feridas.
Hoje estamos em um momento de grande mutação.
Sobre quais critérios podemos nos funda­mentar para dizer “uma análise aconteceu” ou “essa pessoa está em condições de escutar um outro e de tratá­lo”? Pois ouvir apenas não é suficiente. E menos ainda escutar com apenas uma grade de leitura. Ainda deve haver uma ”aposta” do analista, um engajamento e… um dom. Sobre o que se ba­sear para dizer que tal pessoa é capaz de cumprir essa função junto a um outro humano em sofri­mento ou delirante? Alguns são capazes, mesmo após pouco tempo de análise (ainda que deva se­guir sua análise por muito tempo depois de come­çar a praticar), e outros são surdos, surdos a essa música particular que distingue uma voz de outra, qualquer que seja o tempo que eles mesmos pas­saram em análise, qualquer que seja a excelência de seu analista. Pois um analista não pode tudo. Ele não pode “fabricar” um analista quando não há matéria­-prima. Nenhuma erudição e nenhuma formação podem ser garantia. Essa é a parte cho­cante do negócio! Nesse campo a democracia mostra rapidamente seus limites. É politicamente pouco correto, mas se deve dizer, dane­-se. Simu­lamos afinar (e cada instituição o faz) um conjunto de critérios objetivos para a “formação” dos analistas. Ao final da dita formação, há diferentes procedimentos, espécies de ritos, que são de fato uma seleção. Sempre chega um momento em que um júri deve decretar quem é analista e quem não é. O que é terrível é que mesmo o mais imbecil dos júris vê perfeitamente bem que alguns não são capazes de praticar a psicanálise, então ele é obrigado a inventar pseudo-critérios, para susten­tar sua recusa. O mais frequente é que o infeliz candidato seja reenviado ao divã! Ele é reprovado, como na escola primária, ele deve recomeçar, repe­tir, refazer uma parte, encontrar o bom analista, enfim, fazer um percurso de batalhador. Como se, esforçando­-se, ele poderá, apesar de tudo, se tornar analista. Às vezes isso dá certo, outras não. Por vezes ele troca de escola, outros critérios lhe são mais convenientes. Às vezes ele não conse­gue. E por isso ele deixa de ser analista? Ou ele é excessivamente original para ser aceito por pa­res? Ou excessivamente psicótico? Excessivamente genial? Não suficientemente isso ou aquilo? Ou ainda não aprendeu um discurso segundo o có­digo de sua escola?
Ninguém pode dizer de verdade. Isso dá ape­nas um máximo de chances aos bons alunos. Se­rão eles bons analistas? Eis a questão. E isso não tem nada a ver com a cultura ou a inteligência ou a aptidão para estudar. Outras qualidades, mais sutis, são exigíveis. Mais que um saber, é uma po­sição subjetiva específica, a única que permite não abusar de um saber conferido como um poder sobre o outro. Ora, a psicanálise, assim como a psi­quiatria, não pode evitar uma posição de poder sobre o outro, pois ela não poderá jamais se des­fazer de sua obrigação de classificação.
É por isso que as instituições ficam mais à vontade com os psicólogos e os psiquiatras.
As instituições têm que se contentar com um semblante de critérios, um semblante de sa­ber. Com uma transmissão que pode ser contro­lada. Isso lhes confere uma verdadeira razão de existir.
As instituições podem pretender dar uma instrução, dar um acesso à cultura analítica, per­mitir a circulação do saber, dividir “savoir-faire”, mas não é possível instituir um espaço em que se enunciaria uma verdade sobre quem é e quem não é analista. Todos podem aprender a tocar um instrumento, mas nem todo mundo pode ter o ouvido absoluto.
Tomemos o caso da pintura: uma acade­mia de pintura pode ensinar técnicas, analisar as grandes obras dos mestres, exigir conhecimentos sobre a história da pintura, mas ela não poderá dizer quem será pintor e quem não será. Profes­sores poderão perceber talentos em alguns, ver genialidade, mas e depois? E sempre houve ar­tistas que nunca foram a academia alguma e se tornaram grandes pintores.
Estamos mais próximos desse caso do que da formação de um engenheiro ou de um físico, ainda que a questão da genialidade seja comum a todas as disciplinas.
A FAP não é uma escola. É uma associação de psicanalistas que assim se declaram e que têm ao menos um ou dois analisandos. Há membros que fazem seminários, que fazem supervisões co­letivas, outros se juntam para trabalhar a teoria ou a clínica e para discutir suas práticas. Mas não pre­tendemos o ensinamento. Atenção! Isso não quer dizer que nada é ensinado. Mas há, sobretudo, um espírito em que tentamos nos ensinar uns aos outros. Certamente há os analistas que têm mais experiência que outros, a quem os mais jo­vens reconhecem um saber, mas isso é tudo. Não digo que todos devem fazer assim.
É bom e desejável que existam instituições bem diferentes para que os jovens e também os menos jovens possam circular e escutar músi­cas distintas, se confrontar com formulações e conceitualizações diferentes. É importante viajar para se formar. Considero nefasta a fidelidade a um único discurso. Isso engendra toda sorte de ignorância e de endogamias inúteis. Mas é com frequência um voto piedoso. Todo tipo de fator entra em consideração. Notadamente aquele dos canais de “clientela” do qual pudicamente evita­mos falar.
Em relação ao reconhecimento pelo Estado, ele se faz na França de maneira cada vez mais coercitiva. O Estado demanda garantias. Serie­dade, seriedade burguesa, dessexualizada for­çosamente, o Estado demanda garantias de um trabalho concluído, mas ainda mais, e, sobretudo, o Estado pede uma garantia de normalidade!
Trata­-se aí de um problema analítico e polí­tico. Qual instituição dará mais garantia da “nor­malidade” de seus formadores e dos objetivos de sua formação? A única coisa que podemos con­siderar são os critérios de seleção universitários e pseudo-universitários. Critérios de aprendizagem, de um corpus visível de conhecimentos. Voltando ao modelo do pintor… chegamos rápido à arte acadêmica, que, ao que conheço, nunca deu em verdadeira pintura. Inversamente, um verdadeiro pintor, qualquer que seja o caminho que ele tenha percorrido para se tornar pintor, terá adquirido um conhecimento sobre a técnica pictural.
Podem me contestar dizendo que a psicaná­lise não é uma arte. Não, o artista cria real e eu não acredito que o analista cria real nesse sentido, mas ele tem relação com o real.
Não, não é uma arte, tampouco uma ciên­cia, no sentido de que nossa matéria-­prima é do humano não moldável o tanto quanto se quer, e que nossas situações, contrariamente à pesquisa científica, não são experiências que podemos re­produzir no laboratório e, ainda, que o analista não assina sua obra.
É sem dúvida essa frustração que está na ori­gem da grafomania de tantos analistas. Alguns escrevem tantos livros que eu me pergunto: quando é que eles se ocupam de seus pacientes?!
O Estado só pode pedir garantia sobre o que é objetivável. Onde está então a ética da relação singular? O que, ao contrário, é observável são as melhoras sensíveis da vida das pessoas que fize­ram uma análise, mas isso não se mede.
No âmbito institucional, quando preten­demos formar jovens analistas, o mínimo é dar­-lhes condições de pensar a relatividade, leia­-se inutilidade, dos reconhecimentos oficiais. Em seguida, se um Estado torna obrigatório deter­minado estudo, determinado diploma, cada um saberá quais as “formalidades” necessárias que ele deve cumprir, mas que não deve conferir a eles demasiado valor de verdade, e que as pessoas as­sim titularizadas não são forçosamente dignas de lhes enviarmos um ser querido para análise. Pare­ce ­me importante que os analistas sejam radical­mente laicos na visão de suas próprias “carreiras”. O que é diferente de sua capacidade de supor­tar as transferências, capacidade que pode, ela mesma, variar segundo diferentes momentos de uma vida. Estamos longe da medicina e da reli­gião. A laicidade da psicanálise não pode ser dis­sociada da resistência política a uma sociedade de mais em mais ávida de controle e normalização.
PERCURSO: Ainda naquele texto, a Sra. afirma que “é o analista que deve se adaptar às possibi­lidades tanto psíquicas quanto materiais do pa­ciente, e não o inverso” (p. 93). Poderia adentrar um pouco sobre esse tema, assim como abordar a questão do dinheiro e a ética psicanalítica?
ZYGOURIS: Retornemos a Freud. Foi escutando e acompanhando seus pacientes que Freud “in­ventou” a psicanálise. Freud inventou os concei­tos, mas foram seus pacientes que inventaram o método. Ora, o método é fundamental em nosso trabalho. Uma paciente lhe pediu que a deixasse associar livremente. Freud escutou­-a e foi assim que até hoje continuamos a aceitar o convite dessa senhora e deixamos os pacientes associarem e di­zerem o que lhes vem. Foi um momento de ver­dadeira descoberta. De quem? Da analisanda e de Freud. Pois ele soube adaptar­-se ao que sua paciente lhe pedia e que lhe permitia ser mais ver­dadeira. Nossos pacientes também são precurso­res quando sabemos escutá-­los. É a maior razão para dizer que o analista deve poder adaptar­-se às possibilidades dos pacientes, se não queremos que a psicanálise se esclerose numa eterna repeti­ção de regras nem sempre fundamentadas.
Ora, isso significa que um analista possa, num dado momento, “desobedecer” o que fez seu próprio analista ou aquilo que lhe foi ensinado ou ao que é a doxa. Cada paciente deve ser tratado como único, e é preciso reinventar a análise para ele. É fácil dizer isso, mas não é nada evidente fazer. A adaptação do analista diz respeito, mais frequentemente, ao enquadre. Alguns pacientes não suportam deitar­-se e não ver o analista… nem por isso são inanalisáveis… nem obrigato­riamente psicóticos! Obrigá­-los a se submeter a um dispositivo só se justifica pelo conforto do psicanalista, pois adaptar­-se ao paciente é fre­quentemente desconfortável.
Existem pacientes que não podem pagar ou que não compreendem por que devem pagar as sessões em que faltaram. O analista pode aceitar essas exceções, isso não coloca a análise em pe­rigo. Isso coloca em perigo a ideologia do ana­lista… e sua carteira.
Desde que me instalei em consultório par­ticular fiz análises gratuitas, quando os pacien­tes estavam em grandes dificuldades. Eu preferi transgredir as regras que me ensinaram a enviar para uma instituição um paciente que começou comigo.
Esses pacientes sempre terminaram pagando e tudo corria bem. Mas quando se é um jovem analista, a instituição psicanalítica amedronta e não se ousa experimentar. Então se praticam, em nome de não sei qual verdade analítica, análises em duas velocidades: uma no privado para os ri­cos, outra para os pobres, em instituições. Assim, os pacientes que não podem se dobrar aos stan­dards analíticos são especialmente bons para uma psicoterapia… ora, sabemos que esse termo na boca de alguns significa uma subanálise.
É preciso distinguir o fato de que o ana­lista deve poder viver do seu trabalho, do fato de se pretender que existam razões especifica­mente psicanalíticas que tornam necessário o pa­gamento. E… suprema hipocrisia da profissão: quanto mais cara, melhor seria a análise. Isso se diz, alguns acreditam, mas não existe nenhuma justificativa analítica!
É evidente que o dinheiro não é um agente neutro, convém trabalhar essa questão. Trabalhar sobre o lugar sagrado que o dinheiro possuía nos tempos muito antigos, assim como trabalhar so­bre o paradigma “desejo­-dinheiro” tão caro (sic) à sociedade liberal, retomado pela análise sem nenhuma crítica. Freud fazia seus pacientes pa­garem o mais caro possível porque ele precisava de dinheiro, mas ele não encenou a comédia de mascarar sua demanda com um sentido psicana­lítico. Aliás, ele atendeu durante ao menos dez anos um paciente, cinco vezes por semana, gra­tuitamente, para verificar certas hipóteses sobre as resistências.
Eu fui muito criticada devido a essas posi­ções. Mantenho-­me firme, e tenho atualmente outros colegas que também podem testemunhar que análises gratuitas em consultório particular funcionam… nem melhor e nem pior do que ou­tras, com a condição de que o analista não seja mudo, pois essa questão se impõe ao trabalho para ambos.
É um dos casos em que se trata de o analista adaptar­-se ao seu paciente e não o inverso. Mas não é o único. Infelizmente existe com frequência um abuso no uso da noção de frustração ou de castração com a finalidade única de constranger. Os pacientes submetidos a uma pura forma não vão longe na sua exploração pessoal.
Então por que eles aceitam se submeter as­sim? Eles aceitam porque sua miséria é grande e eles fariam qualquer coisa para serem amados.
Muito tempo depois de ter terminado uma longa análise, um paciente que veio me visitar por ocasião de uma passagem por Paris lembrou­-me de seus inícios caóticos. Durante vários anos ele vinha me ver marcando um encontro de última hora. Por vezes ele me telefonava para me dizer: “eu estou te ligando para dizer que vou te ligar para marcar um encontro logo mais”. E então, de­pois de vários falsos encontros ele vinha em uma hora e dia totalmente imprevistos. Eu o recebia entre duas sessões, ele me contava uma história improvável e depois tudo recomeçava. Um dia eu lhe disse: “se você continuar assim eu vou acabar não o recebendo mais, não podemos trabalhar nessas condições”. Ele começou a rir dizendo: “eu não acredito”. Eu também ri e respondi: “você tem razão”. Pois, no momento em que eu acabava de anunciar, com uma voz grave de profissional, mi­nha ameaça, me achei totalmente ridícula. Ele ti­nha compreendido. E assim iniciou-­se um jogo, um jogo de invenção de um possível encontro. Pouco a pouco, sem que eu me desse conta, ele começou a respeitar um horário e um dia dei­tou-­se. Depois se levantou… depois se deitou, etc. Ele esperava que eu recomeçasse a mostrar meus limites. E foi então que me ocorreu a ideia da adaptação do analista… eu lhe perguntei: que jogo era aquele? Ele me disse: “jogo de ser criança desobediente”. “E você espera ser amado assim como é? Desobediente?”. “Sim, porque obedecer é perder a alma”. “Eu obedeci outro analista e perdi minha alma com ele”. Anos mais tarde, por oca­sião dessa evocação de “nossos” difíceis inícios, ele subitamente associou: “Ah, pensei agora: minha avó foi obrigada a se batizar para casar com seu marido, meu avô, e ela dizia que nesse dia tinha perdido sua alma”. “E como foi que isso se mani­festou?”. “Ela nunca mais pôde cantar, ao passo que tinha uma voz magnífica e dava concertos”. Esse analisando não queria perder sua alma… Como saber disso? A não ser aceitando com nos­sos frágeis meios, seguir em seu labirinto aquele que vem nos demandar. Nem sempre é possível reencontrar as razões que nos impelem a fazer “diferentemente”.
Existe também a influência do que chamo “o espírito da época”.
Constatamos hoje recusas cada vez mais fre­quentes do enquadre clássico porque a psicanálise é vivida como uma sujeição muito grande e… acre­dita­-se menos nela. Existe uma “resistência” cole­tiva a submeter-­se às exigências dessa prática.
É o que chamo de “espírito da época”. E a res­posta também é coletiva, ainda que cada analista se adapte à sua maneira. É sabido que as análises deitadas, três ou quatro vezes por semana, são cada vez mais raras, e isso independentemente dos sintomas do paciente e do analista. De fato, apesar de todos os discursos anteriores sobre a necessidade do enquadre, os analistas tentam se adaptar e escutamos cada vez mais os mais or­todoxos de ontem dizerem: “afinal, mesmo duas vezes por semana, mesmo uma vez, e face a face, existe análise possível”… Enquanto, até ontem, era “impossível!”.
Existe, no entanto, um limite: a atitude dos pacientes que se comportam como puros con­sumidores. Eu não tenho nada contra o fato de que cada um tente se fazer bem com outros mé­todos que não a psicanálise. Toda técnica tem algo bom. Mas a atitude de consumidor me in­comoda. Qualquer disciplina se torna descartável após um uso superficial. Cada vez mais pacientes se fazem de turistas e visitam as diferentes áreas, para abandoná-­las em seguida e tentarem outra coisa que está na moda. Nesse caso, é preciso saber recusar, é preciso saber ser exigente, não em relação a uma forma, mas em relação a um engajamento subjetivo. Pois existe engajamento por parte do analista e por parte do paciente… é nossa ética, e todo o resto pode se inventar.
PERCURSO: A Sra. afirma que algumas das desco­bertas das neurociências validam as descobertas freudianas e sugere que deveríamos ficar muito atentos a isso no sentido do enriquecimento da psicanálise. Como a Sra. pensa a relação entre esses saberes?
ZYGOURIS: De maneira geral podemos desejar que os analistas não sejam ignorantes em relação aos saberes conectados à sua disciplina. A neuro­biologia faz parte delas tanto quanto a antropolo­gia, a etiologia ou a linguística. As neurociências ocupam­-se essencialmente do funcionamento do cérebro. Seria estranho, por exemplo, que os ana­listas não estivessem a par dos trabalhos sobre a memória e o papel do afeto sobre o raciocínio e sobre a memória. 
Freud era muito atento a isso. Ele disse, com frequência, que no futuro a ciência poderia forne­cer soluções mais rápidas ali onde, por enquanto, a psicanálise penava na melhoria dos sintomas. Ele menciona isso, entre outros, no seu livro tes­tamentário que é o Esboço de Psicanálise, no qual insiste sobre o fato de que a teoria, tal como ele havia construído, deveria ser prosseguida por uma pesquisa que pudesse recolocar em ques­tão suas hipóteses. Então, ele dizia que tudo o que construiu só se aplicava às neuroses e que tudo o que dizia respeito às psiconeuroses narcí­sicas estava por fazer. É apenas recentemente que aceitamos bem a ideia, por exemplo, de que os borderlines (categoria contestada pelos analistas ortodoxos, que dizem: “isso não passa da forma pós-­moderna da histeria”) devem ser abordados de maneira menos rígida que os neuróticos clássi­cos, com pressupostos teóricos diferentes. Ainda falta muita coisa a ser dita sobre as formas pós­-modernas dos sintomas. Não é sem interesse e eu seria a última a contestar o fato de que os sin­tomas mudaram, mas a redução ao já conhecido é frequentemente uma maneira de evitar recolo­car-­se em questão.
Freud disse, nesse mesmo texto, que espe­rava que um dia se encontrassem medicamen­tos que agissem diretamente sobre os centros neurológicos, evitando assim a longa duração das análises, que deveriam ser consideradas so­mente como um momento transitório, na espera de algo melhor.
Eu penso que essa modéstia de um verda­deiro pesquisador e seu desejo de assentar o sa­ber daquilo que diz respeito à vida psíquica sobre bases biológicas foram varridos, em grande parte, pela megalomania estruturalista dos anos 1960­1970. O que também está na origem do aban­dono do diálogo com a biologia em proveito da linguística. Por que um deveria impedir o outro, senão pela redução sistemática à estrutura!?
Hoje em dia temos outros problemas, mui­tos medicamentos são prescritos, todo sofri­mento deve ser imediatamente medicalizado, o político está reduzido ao patológico, etc. Falarei disso mais adiante.
Freud queria dar uma base biológica às suas hipóteses. Ele fez o melhor que pôde, mas com conhecimentos que evoluíram desde sua época.
Algumas intuições de Freud foram validadas hoje em dia, outras devem ser repensadas. No con­junto, eu me mantenho admiradora face às suas in­tuições tão à frente da ciência de sua época.
Alguns exemplos:
Eu fiquei muito tocada ao ler nas obras so­bre a apoptose (a morte celular ou, mais preci­samente, o suicídio celular) a que ponto a vida e a morte estão intrincadas no plano biológico e isso absolutamente no mesmo sentido que Freud lhes dava. Um livro tal como La sculpture du vi-vant de Jean Claude Ameisen é, nesse sentido, to­talmente apaixonante. Este imunologista não se furta de evocar Freud e a pulsão de morte falando do suicídio celular, indispensável na regulação da forma do vivente. Por exemplo, a proliferação das células cancerígenas seria o resultado da inibição do suicídio celular normal, que acarretaria a sua proliferação e a sua indiferenciação. Ora, para que exista vida e formação diferenciada é preciso que um número de células “sãs” se autodestrua. Eu não posso fornecer aqui o resumo de um traba­lho tão complexo e considerável como esse, mas isso estimula o pensamento e só posso aconse­lhar sua leitura. O que me surpreende é que os grandes pesquisadores em biologia ou em neuro­ciência leram Freud e frequentemente bem lido, mas o inverso não é verdadeiro, muitos analistas são de uma ignorância crassa nesses aspectos. É por causa de sua ignorância que eles adotam tão frequentemente uma atitude paranoica nos raros diálogos com os cientistas, sendo que ninguém os está agredindo! Infelizmente temos a tendência de colocar no mesmo saco os cognitivistas mais hostis à psicanálise e os pesquisadores que estão interessados pela psicanálise, mesmo se, por ve­zes, e felizmente, eles se permitam criticar certas explicações que suas pesquisas invalidaram. 
Penso também nos trabalhos de Antonio Da­masio sobre a memória e o papel do afeto e das emoções nas decisões, à primeira vista, as mais car­tesianas. O mesmo Damasio insiste no fato de que a maioria de nossas decisões aparentemente racio­nais tem uma origem inconsciente. Não se trata do mesmo inconsciente proveniente do recalque. Mas os processos de pensamento inconscientes são si­milares. Os títulos de suas publicações são, aliás, sugestivos: L’erreur de Descartes, Le Sentiment même d’être soi, Spinoza avait raison. Podemos ainda elen­car outros trabalhos sobre a memória, assim como as pesquisas sobre as “células­-espelho” no cérebro, que estariam na origem da empatia e da imitação, mais ou menos desenvolvidas segundo cada in­divíduo. É uma pesquisa ainda balbuciante, mas me parece interessante. Nesse caso, vemos como a identificação inconsciente pode prevalecer sobre uma semelhança puramente genética. Aí está um exemplo típico em que a concepção analítica ga­nha da explicação genética, sem que, no entanto, a genética seja invalidada.
Podem me perguntar, sim, mas no que isso influencia a psicanálise? Eu penso que escuta­mos diferentemente quando sabemos que exis­tem origens múltiplas, caminhos complexos de um devir humano.
Espero que isso possa influenciar num sen­tido positivo a aceitação de um pensamento com­plexo no que se refere às condutas humanas. Um pensamento não reduzido a causalidades simples, sejam elas psíquicas, neuronais ou ambientais. Existem origens múltiplas, sem esquecer que a origem não é uma causa. Ora, todos nós apren­demos a pensar causa­-efeito… É um modelo de pensamento muito forte e que impregna as mentalidades. Um diálogo com as neurociências pode favorecer uma relativização tanto de um lado quanto de outro. Não se trata, sobretudo, de uma sobreposição de um saber sobre o outro, cada um deve guardar seus métodos e objetivos, mas isso pode fortalecer um combate comum contra a “crença” num diabo único!
Existe ainda um imenso trabalho a ser feito para destronar o pensamento causal que embalou e embala ainda nossos aprendizados.
PERCURSO: No Brasil o uso de antidepressivos, ansiolíticos, indutores de sono, reguladores de humor etc. está bastante disseminado, inclusive na infância. Como a Sra. avalia o diálogo da psi­canálise com a psiquiatria e o uso atual da medi­cação psiquiátrica?
ZYGOURIS: Vivemos todos numa mesma so­ciedade. Todos nós fazemos parte da mesma sociedade, todos nós temos uma parte de res­ponsabilidade nesses devires.
A supermedicalização em nossa sociedade é um problema político e econômico tanto quanto médico ou psicológico.
Os psicanalistas, assim como os médicos, se fazem de bobos não denunciando o marketing e o poder econômico dos laboratórios farmacêuti­cos. Para dizer o mais diretamente possível: existe uma urgência de intervenções políticas e militan­tes nesse campo, mais importante que a indigna­ção em nome exclusivamente da psicanálise.
Possuímos hoje em dia informações sufi­cientes que denunciam casos de desonestidade de certos médicos influentes que trabalham em instituições de pesquisa compradas por laborató­rios farmacêuticos. Somas importantes são gas­tas em favor de experiências que demonstrem os efeitos positivos de certos psicotrópicos e dis­simulam seus efeitos negativos, assim como os efeitos significativos dos placebos. Portanto, não é possível tratar seriamente da questão dos me­dicamentos sem considerar o enorme proveito dos laboratórios farmacêuticos e sua influência sobre as prescrições e os investimentos nas pes­quisas nacionais e internacionais. As moléculas milagrosas são rapidamente mundializadas e não há mesquinharia no investimento na publicidade medicamentosa.
Só posso lhes responder a partir do que vejo na França, mas no que diz respeito à supermedi­calização pelos psicotrópicos incluindo as crian­ças, creio que se trata de um mesmo fenômeno. Ele ultrapassa amplamente a relação da psica­nálise e da psiquiatria. Cada vez mais médicos generalistas prescrevem, ao final de uma única consulta, antidepressivos. Eles são influenciados por um discurso midiático orquestrado pelos la­boratórios. Os médicos não são formados para suspeitar do que lhes contam suas revistas espe­cializadas, elas mesmas financiadas pelos mes­mos laboratórios que por sua vez se servem delas como plataforma publicitária escondida.
Na França, apenas uma revista de medicina geral não é financiada por um laboratório farma­cêutico. É, portanto, a única, entre centenas, que se mantém independente. Aliás, muitos médicos dizem que, se eles não prescreverem, os pacientes irão procurar medicamentos em outro lugar.
Ao que é preciso acrescentar a péssima in­formação dos clínicos gerais no que se refere aos efeitos aditivos das medicações psicotrópicas que eles prescrevem muito tranquilamente para satis­fazer sua clientela.
Existem, de um lado, os antidepressivos, cujos efeitos positivos começam a ser seriamente pos­tos em dúvida e que podem ser, em grande parte, substituídos por placebo. Ora, isso não quer dizer que sejam quimicamente inativos! Eles têm efei­tos colaterais muito nocivos. Mas sua ação sobre o humor é frequentemente superestimada e o efeito placebo pode ser dominante. Por outro lado, assis­timos a uma generalização e a uma banalização das prescrições dos benzodiazepínicos sobre os quais subestimamos o efeito tóxico e aditivo.
Existe hoje certo número de trabalhos que mostram a ineficácia e a ignorância da psiquia­tria francesa face a esse problema. Em geral, se subestima seriamente o tempo necessário para o desmame. Ele pode durar anos. Desconhece-­se igualmente a importância dos efeitos físicos e psí­quicos do desmame em si, uma falta digna de drogas pesadas que é atribuída, injustamente, ao retorno da doença. E então, em vez de prosseguir o desmame, se reintroduz a medicação.
O tempo de desmame é muito longo e se constatam graves sintomas de abstinência que te­mos a tendência de psicologizar, quando são de na­tureza física. É assim que observamos os doentes cronificados numa errância de médico em médico por causa de uso excessivo de psicotrópicos.
Portanto, existe de um lado a subestimação dos efeitos físicos e de outro superestimação dos efeitos psicológicos. Estamos longe de uma si­tuação que permitiria um estudo racional sobre o uso dessas substâncias.
Não desejo de modo algum negar os pro­gressos consideráveis da medicina em geral, mas me parece que é preciso dar um lugar à parte para a psiquiatria e para os psicotrópicos. Nesse sentido, admito voluntariamente que alguns psi­cotrópicos, tomados em períodos curtos, podem trazer um alívio notável da angústia, ou aplacar lufadas delirantes. Mas qualquer psiquiatra ho­nesto e sério admitirá que nunca viu, ao longo de sua carreira, um doente sarar unicamente com seus medicamentos. Eu tive pessoalmente a opor­tunidade de conversar sobre isso com médicos que prescrevem e que reconhecem os limites de sua ação.
Em quarenta anos de prática e, sobretudo, ao longo dessa última década em que o fenômeno tomou grande amplitude com a chegada de novas moléculas, eu presenciei fracassos desses trata­mentos depois de um breve período de melhora, principalmente quando eram consumidos em quantidade.
Então, é preciso ser prudente. Entre uma confiança cega nos medicamentos e sua recusa dogmática, existe um meio termo que nem sem­pre é fácil de ser encontrado.
É difícil para os psicanalistas aceitar uma ajuda farmacológica que acelere sua ação e é difí­cil para os positivistas aceitar a ideia de que a pa­lavra e o espírito possam agir sobre o soma. Que um simples placebo bem administrado provoca um real aumento da secreção de neurotransmis­sores tanto quanto uma palavra pacificadora ou liberadora.
O que se coloca aí como pano de fundo é, no fim das contas, a questão do dualismo espírito-­corpo. É difícil sair dessa crença e optar por um monismo consequente. Eu penso que os psica­nalistas deveriam dedicar mais trabalhos mostrando a necessidade de um pensamento monista e os impasses arcaicos dos dualismos.
À parte essa disputa muito antiga, eu re­torno ao que dizia no início dessa resposta. Não se trata unicamente da oposição corpo­-espírito, ainda que esse problema ocupe um lugar impor­tante aqui, mas também do aspecto político, pois não se trata de qualquer medicamento. Trata-­se de medicamentos supostos agirem (de forma real ou imaginária) sobre as condutas das pessoas e, portanto, dos cidadãos.
Seria útil nesse assunto referir­-se a Michel Foucault. Nós vivemos num momento histórico fundamentalmente despolitizado, em uma so­ciedade que exige, para se manter no lugar, um controle cada vez mais performático, e que tem técnicos médicos a seu serviço. É nesse quadro que convém situar tal debate.
A medicina, e mais particularmente a psi­quiatria, são instrumentos de controle e de nor­matização. Existem cada vez menos cidadãos em fúria e cada vez mais vítimas e deprimidos. As vítimas não devem se revoltar, são reduzidas ao estado de doentes. A sociedade em si torna-­se pouco a pouco um grande lugar de tratamento. Estamos mais próximos de um grande hospital do que de uma ágora de cidadãos.
A sociedade do “care” e do individualismo, onde o mínimo fracasso, a mínima dificuldade pessoal torna­-se o naufrágio de um eu isolado, ofe­recido à solicitude dos psis… naturalmente. Os psicanalistas não estão a salvo dessa colaboração.
A melhor maneira de reduzir ao silêncio um desempregado é declará-­lo em depressão. Claro que ele está deprimido, como não estaria, mas ele não é um doente. É preciso tratá­-lo ou ajudá­-lo a revoltar-­se na impossibilidade de lhe encontrar um trabalho?
Tomemos o caso das crianças. Uma criança turbulenta é rapidamente diagnosticada de hipe­rativa e lhe é prescrito Ritalina. Ela se torna mais calma, concentra­-se na escola, se torna um aluno melhor, obedece, e os pais podem pensar em ou­tra coisa. Quem vai se queixar? Em algumas de­zenas de anos essas crianças talvez se tornarão adultos dependentes de produtos químicos.
A questão é a seguinte: por que nossa socie­dade produz tantas crianças hiperativas? Como nasceu essa nosografia? Ela foi inventada por quem? Como essas crianças vivem? Como é seu dia a dia? Quanto tempo elas passam com suas mães e com seus pais? Mas também, que vida têm seus pais? Não falo apenas de suas vidas ín­timas, mas de sua própria visão da sociedade na qual vivem.
Como é possível que em tempos de guerra ou insurreição muitos dos sintomas psiquiátri­cos desapareçam?
Se levássemos realmente a sério o estado de submetimento social com o qual a psiquiatria e mesmo certa psicologia colaboram, reduzindo as insatisfações, as feridas narcísicas e as turbulência através de medicações e de psicoterapias normati­zantes, e se quiséssemos que isso realmente mu­dasse, estaríamos então em estado de insurreição civil. Poucas pessoas estão dispostas a isso, salvo os muito pobres, os que não têm nada a perder. Mas não são seus filhos que são levados aos psi­quiatras de ponta!
Eu digo novamente: estamos todos no mesmo barco. Evidentemente que, um a um, cada um dos psiquiatras desejosos de realizar bem seu tra­balho fará o melhor de si para resistir à grande máquina de guerra que esmaga os rebeldes e des­viantes de toda espécie. Entretanto, nossos meios são fracos frente à superpotência dos fluxos de di­nheiro que estão na base dessas imperícias médicas e que constituem as mentalidades, sem que elas tenham verdadeiramente consciência disso.
PERCURSO: Em seu livro O vínculo inédito, a se­nhora pensa as especificidades da transferência e do vínculo. O vínculo não tem interpretação nem prazo de validade. Sustenta-­se na presença que, segundo a Sra, muitas vezes vale mais do que a interpretação. A transferência, ao contrário, ba­seia-­se na interpretação e na noção de término. Qual a importância dessas reflexões para com­preendermos melhor a relação analista­-anali­sando?
De que forma nossa sensibilidade frente a esse vínculo pode favorecer a concepção que inspira a reinvenção da psicanálise a cada analisando?
ZYGOURIS: Foi escutando um jovem analista queixar­-se em supervisão que se impôs em mim a ideia de diferenciar o vínculo e a transferência. O infeliz jovem estava desolado por compreen­der tão pouco do que se passava na transferên­cia com seu analisando, ainda que este lhe falasse com sinceridade e que se passasse uma série de coisas em sua vida.
O que me surgiu foi o mau uso do termo transferência para designar tudo, absolutamente tudo o que se passava entre um analista e seu pa­ciente, e mais ainda, tudo o que acontecia na vida de um analisando ao longo de sua cura.
Eu me disse: é preciso salvar o soldado Bryan! A transferência é uma descoberta extraor­dinária de Freud, um conceito que é o diamante de nossa disciplina, não se deve desonrá­-lo para designar tudo e qualquer coisa.
Como não vou reescrever meu artigo, penso que pode ser útil retomar ao menos à metá­fora que utilizei, do mapa e do território. Um território pode ter vários mapas: dos relevos da composição dos solos, do desnível, das variações climáticas etc. O território continua o mesmo, é um real do qual o mapa realça os dados numa dimensão decodificada.
O vínculo seria o equivalente ao território: é o real das presenças, o mundo do sensível que se manifesta ou não pela relação verbal ou silenciosa, consciente e inconsciente entre analista e analisando, ao que se acrescentam os efeitos do ambiente que podem interferir de maneira dis­creta ou barulhenta.
A transferência seria o equivalente ao mapa: é a transcrição de uma parte dos elementos do mundo sensíveis ao vínculo, material que tornou inteligível o que pode ser escutado graças a uma leitura teórica específica ao campo da psicanálise. A existência de diferentes mapas para um só ter­ritório são as diversas leituras da transferência se­gundo as diferentes teorias psicanalíticas.
Vemos então que o vínculo é o conjunto mais amplo englobando tudo o que pode comportar uma relação entre dois seres humanos, relação em si não comparável a uma relação mundana, pois ela só tem lugar no encontro psicanalítico.
Isso é certamente muito esquemático, mas exprime bem a inadequação da confusão entre o terreno real que liga dois seres humanos (e que compreende a troca de palavras) e a codificação própria a uma visão teórica.

Uma outra diferença deveria nos ser útil, a que consiste em separar o produto de uma in­venção do produto de uma descoberta. Pode­-se “inventar” a partir do mapa, inventar um con­ceito a partir de um conjunto de levantamentos ou de uma nova combinatória. A partir de uma nova observação, “descobre­-se” sobre o território um elemento que parece novo, mas que sempre esteve ali. Porém, para descobri­-lo era preciso ter o bom ângulo de vista e a ideia.

A transferência é uma descoberta, mas é tam­bém uma invenção, existe transferência em prati­camente todas as relações humanas e, sobretudo, na relação médico­-paciente, mas é também uma “invenção” de Freud, pois ele fez dela um conceito que não se aplica a qualquer situação e, sobretudo quando a interpretação não tem lugar.
Parece­-me que a “sensibilidade ao vínculo” permite justamente ao analista sair de um código preexistente e descobrir algo novo, não percebido por outros. Essa descoberta pode tornar­-se uma invenção conceitual específica à psicanálise ou manter­-se como uma descoberta singular em um momento de uma cura.
Com frequência se usurpa o conceito de transferência. A transferência é a priori inter­pretável mesmo se não se verbaliza. Ora, nem tudo é interpretável. Mesmo que se silencie, é presunçoso acreditar que o analista possui, em sua “caixa de ferramentas”, uma forma para dar sentido analítico a tudo o que acontece em sua relação com seu analisando. Uma grande parte do que é pensado, sentido ou vivido – em outras palavras, todo o sensível de um encontro – excede a possibilidade de tornar­-se inteligível através de uma teoria, por mais exaustiva que ela seja.
Para um analista freudiano, a transferência deve ser tomada no sentido literal da palavra: tra­ta ­se sempre do retorno no aqui e agora da cura, de um conflito, um acontecimento ou uma re­presentação que aconteceu num tempo passado e num outro lugar. Progressivamente muitos analistas esqueceram que se tratava de uma segunda ocorrência, portanto de uma repetição.
Tomemos, como exemplo, o apego, que é com frequência um sentimento compartilhado e não caracteriza apenas a dependência do anali­sando em relação a seu analista: para muitos ana­listas é uma verdadeira injúria a seu “ser analista” suspeitar que eles sejam capazes de experimentar algum afeto por seu paciente sem que isso prove­nha do nobre conceito de transferência, forçosa­mente explicável. Eu creio que, apesar de todas as teorizações que tendem a produzir uma assepsia na relação analítica, resta uma grande parte que resiste a toda redução.
Então, se não levamos em conta o vínculo, se não nomeamos esse “resíduo” (que por vezes pode tornar­-se o mais importante motor da cura), es­tamos simplesmente na denegação daquilo que é novo no encontro e da implicação subjetiva do analista enquanto sujeito. Aconteceu­-me mais de uma vez de receber analisandos com uma longa história de análise e que não sabiam o que fazer com esse “resto” que ainda os mantinha ligados, e por vezes para sempre, a seu analista. Então eles diziam: “é como uma mãe que eu nunca tive” ou “um pai… do qual não posso me desligar”… isso para dar um sentido teoricamente aceitável a um sentimento de apego que nasceu da convivência com um sujeito novo. Por exemplo, quando um analista ajuda um paciente a conseguir trabalho, o que se diz então? Ele saiu de seu papel? Ou ele criou um vínculo? Ou quando um analisando, depois de ter terminado sua análise, convida seu ex­-analista para uma exposição?… Dizemos que existe uma transferência ou uma contratransfe­rência não liquidada ou não analisada! “Analisar” significa então reduzir a nada aquilo que vem da vida, como pulverizamos com inseticida peque­nos insetos incômodos? O novo se inscreve sem­pre sobre um fundo preexistente. É por isso que vínculo e transferência são solidários, mas não redutíveis um ao outro.
Se retomar a transferência como repetição do passado no presente através da relação com o analista, então sim, a análise dessa  repetição restitui ao passado o que pertence ao passado e torna assim o presente disponível e vivo, pois livre do afloramento das representações ou dos movi­mentos pulsionais ou afetivos de outra época.
O trabalho sobre a transferência tende a tor­nar uma análise terminável, pois podemos supor que a repetição na relação com o analista tende também a um esgotamento. Nesse sentido a transferência, teoricamente, tem um fim.
O vínculo, que é uma singularidade do en­contro, não se reduz ao retorno do passado. É uma descoberta oriunda do encontro, uma rela­ção mais ampla do que aquela que pode se pres­tar a uma leitura analítica. O vínculo não tem nenhuma necessidade de ter um fim, pertence à vida, mesmo se mais dia menos dia torna-­se ne­cessário que paciente e analista se separem. O fim de uma análise não é sinônimo de morte e sim de autonomia de vida.
Evidentemente não existe um muro entre vínculo e transferência, são duas formas de falar de uma única e mesma relação, existe passagem contínua de uma à outra, do vínculo à transfe­rência, com inclusões recíprocas. Sua separação é artificial, mas necessária pelas necessidades do exposto e também para enunciar certo número de evidências que de outra forma ficam impossí­veis de apreender.
Podemos constatar que certos analisandos se tratam essencialmente através da força e da qua­lidade da relação, praticamente negligenciando o apontamento da transferência e o posiciona­mento dos significantes recorrentes. É assim que se deve admitir o sucesso terapêutico obtido por analistas pouquíssimo instruídos teoricamente, cuja presença e intervenções podem produzir mudanças profundas num paciente. É chato! Porque isso diminui perigosamente as preten­sões a uma cientificidade da psicanálise! Como? Trataríamo­-nos apenas pelo afeto de uma relação humana? Daí a achar que o trabalho conceitual é inútil é uma ideia que pode surgir, mas com a qual eu não compartilho em absoluto.
Existe uma tendência pesada de certos ana­listas em considerar os analisandos soldados da psicanálise. E soldados que pagam! Raramente se viu dispositivo mais louco… ou pacientes dese­josos de submissão. Felizmente muitos analistas não gozam até o fim com a aptidão de seus pa­cientes em serem submissos. O mais frequente é limitar-­se a um rigor retórico no que se refere à pureza analítica de sua prática e não se confun­dem de registro.
Mas outros são bem mais loucos: passeiam sobre um mapa imaginando que estão olhando uma paisagem real!
Eu penso que muitos analistas são mais in­ventivos do que acreditamos, mas não ousam fa­lar de sua prática efetiva. Eles passam o tempo mostrando em público o quanto compreenderam bem A Teoria e se esgotam em comentários so­bre os textos sagrados. É uma pena, pois se trata de uma terrível falta de liberdade…
Quando pudermos conversar juntos com tranquilidade sobre nossos mestres, sem ideali­zá-los e sem os tomar por peões que se deslocam sobre um mapa esplêndido, quando aceitar­mos recolocá­-los em seu território de vida, um grande passo será dado em direção a uma aná­lise mais criativa. Eu penso que esse tempo não está longe.
PERCURSO:A Sra. diz que a pulsão de morte é o conceito mais abstrato da psicanálise e precisa ser reanimado constantemente para não sair de cena. Como entender o constante afastamento, negação ou recusa desse conceito? 
ZYGOURIS: Freud descobre a pulsão de morte em 1920. A primeira guerra mundial acabara de ter­minar. O mundo mudou seu olhar e perdeu um bom número de ilusões. Muitos tabus caíram, a Europa foi remodelada e coberta por cadáveres. Ela se recupera com dificuldade da morte de uma juventude que partiu e se deixou matar por nada. É o fim do Império Austro-­Húngaro e a Áustria vive em 1920 uma inflação sem precedentes, que torna a vida difícil.
Ao mesmo tempo, uma vitalidade artística inaudita surge nessa Viena pós­-guerra. Esse pe­ríodo representa um momento de articulação na cultura ocidental. O expressionismo está lado a lado ao nascimento da arte abstrata, da música serial e de uma literatura na qual o homem não é mais o senhor de seu destino.
É nesse contexto que Freud tenta encon­trar uma explicação para o retorno dos sonhos traumáticos dos soldados vindos do front. Ele se pergunta por que eles têm pesadelos que lhes trazem de volta cenas horríveis enquanto, em suas vidas diurnas, eles parecem estar bem. E então ele foi atraído pelo espetáculo de seu neto que relança repetitivamente o carretel, represen­tando sua mãe que partiu. Ele monta o jogo do Fort-Da como uma metáfora da compulsão à re­petição.
O que impulsiona essa sujeição ao retorno do que lhe fez mal, sem nenhuma necessidade aparente? O sujeito é movido por uma força que vai ao encontro de seus desejos.
Ele nomeia esse motor da repetição “Pulsão de Morte”. A palavra pulsão faz pensar na vida, ora, aqui, está ligada ao termo morte. É um pa­radoxo. Mas existe mesmo uma força que impele a esse retorno repetitivo.
A força de inércia é uma verdadeira força, mas ela não pode ser diretamente observada. Nesse sentido estamos numa abstração. Nenhuma “ne­cessidade” está na origem de tal conduta. Nenhum bom senso pode explicar essa força pela qual o ho­mem se esgota em se prejudicar.
A pulsão de morte é silenciosa e Freud in­siste em dizer que ela nunca se apresenta isolada, não é observável em estado puro. Ela é de certa maneira “deduzível”. Só se veem seus efeitos. Até 1920, a psicanálise podia ser considerada como uma psicologia particular, tendo como seu cen­tro o inconsciente e o recalque, dois conceitos que a distinguiam da psicologia clássica. Mas após a entrada em cena da pulsão de morte, a psica­nálise torna­se por sua vez um lugar de maior complexidade: a linearidade causa e efeito não funciona mais, a representação está fraturada. É nesse sentido que digo que é o conceito mais abs­trato da psicanálise. Para retomar o que eu dizia na questão anterior: o conceito (mapa) é insufi­ciente para imaginarizar o processo (território) que ele designa.
Frequentemente se confundiu pulsão de morte e agressividade. Ora, a agressividade faz parte das pulsões de vida. Ela está a serviço da vida. Não esqueçamos que Freud insistia sobre o fato de que a pulsão de morte visava, em pri­meiro lugar, ao próprio sujeito. É antes de qual­quer coisa uma destrutividade de si mesmo.
Ora, é difícil admitir isso. Sobretudo na au­sência de razões patentes de um desejo de morte. Isso se observa bem no melancólico, que é um de­sesperado da vida sem razão aparente. Uma força negra está em curso. A melhor metáfora seria a evocação dos buracos negros do universo. Eles engolem a matéria, são uma força invisível que atrai e faz desaparecer objetos visíveis.
Portanto, é um conceito que pode ter seu uso ignorado na prática cotidiana. Mas não se pode ignorar a força e a insistência das repetições na vida dos neuróticos. Os analistas mais reticen­tes a essa noção não podem ignorar a repetição. Eles acomodam isso de outra maneira. É possível, mas eu penso que não levar isso em conta em­pobrece o pensamento freudiano. Certamente é raro escutá­la, evocá­la na apresentação de uma história clínica. A repetição é suficiente, ela é ob­servável, ela se inscreve numa história. Mas assim que a gente se pergunta qual seria o motor des­ses retornos a um passado o qual o sujeito teria todo interesse de esquecer ou a manter no pas­sado, apenas a evocação da regressão nem sem­pre é suficiente. Pois não é sempre uma questão do infantil. A pulsão de morte toca a vitalidade do sujeito, toca seu desejo de vida. É uma estase de fluxos de vida e uma estase que tem sua própria energia. Aliás, a pulsão de morte não se repre­senta. Ela é de fato abstrata. Uma pura negativi­dade das formas de vida.
A escola anglo­-saxônica é a mais reticente ao uso desse conceito. Winnicott diz que não precisa dele. Sem dúvida porque ele está em contato com a criança. Tanto a criança real quanto a criança no adulto. E ele entra no jogo com a criança. O que ele faz quando a criança joga Fort-Da em sua frente? Ele faz a mãe. Ele se faz carretel, ele se faz linha, ele se faz área de jogo, e assim ele contra­ria a inércia que resulta do trabalho do negativo, ele lhe injeta suas pulsões de vida, ele coloca sua própria pessoa ali onde o vazio é irrepresentável. Ora, Freud mantinha­se um observador neutro, ele não intervinha no jogo. Ele não tinha a in­tenção de intervir no jogo de seu neto que dessa maneira repetia vertiginosamente a insensatez do desaparecimento.
A pulsão de morte é um conceito limite. Li­mite do pensável, limite do representável, sobre­tudo se levarmos em conta o fato de que, antes de qualquer coisa, nós pensamos em imagens e que a palavra, a designação vem depois. O motor da compulsão à repetição não corresponde a ne­nhuma imagem, a nenhum acontecimento.
E, no entanto, é uma energia, uma energia negativa.
Ele nomeia esse motor da repetição “Pulsão de Morte”. A palavra pulsão faz pensar na vida, ora, aqui, está ligada ao termo morte. É um pa­radoxo. Mas existe mesmo uma força que impele a esse retorno repetitivo.
A força de inércia é uma verdadeira força, mas ela não pode ser diretamente observada. Nesse sentido estamos numa abstração. Nenhuma “ne­cessidade” está na origem de tal conduta. Nenhum bom senso pode explicar essa força pela qual o ho­mem se esgota em se prejudicar.
A pulsão de morte é silenciosa e Freud in­siste em dizer que ela nunca se apresenta isolada, não é observável em estado puro. Ela é de certa maneira “deduzível”. Só se veem seus efeitos. Até 1920, a psicanálise podia ser considerada como uma psicologia particular, tendo como seu cen­tro o inconsciente e o recalque, dois conceitos que a distinguiam da psicologia clássica. Mas após a entrada em cena da pulsão de morte, a psica­nálise torna­se por sua vez um lugar de maior complexidade: a linearidade causa e efeito não funciona mais, a representação está fraturada. É nesse sentido que digo que é o conceito mais abs­trato da psicanálise. Para retomar o que eu dizia na questão anterior: o conceito (mapa) é insufi­ciente para imaginarizar o processo (território) que ele designa.
Frequentemente se confundiu pulsão de morte e agressividade. Ora, a agressividade faz parte das pulsões de vida. Ela está a serviço da vida. Não esqueçamos que Freud insistia sobre o fato de que a pulsão de morte visava, em pri­meiro lugar, ao próprio sujeito. É antes de qual­quer coisa uma destrutividade de si mesmo.
Ora, é difícil admitir isso. Sobretudo na au­sência de razões patentes de um desejo de morte. Isso se observa bem no melancólico, que é um de­sesperado da vida sem razão aparente. Uma força negra está em curso. A melhor metáfora seria a evocação dos buracos negros do universo. Eles engolem a matéria, são uma força invisível que atrai e faz desaparecer objetos visíveis.
Portanto, é um conceito que pode ter seu uso ignorado na prática cotidiana. Mas não se pode ignorar a força e a insistência das repetições na vida dos neuróticos. Os analistas mais reticen­tes a essa noção não podem ignorar a repetição. Eles acomodam isso de outra maneira. É possível, mas eu penso que não levar isso em conta em­pobrece o pensamento freudiano. Certamente é raro escutá­-la, evocá-­la na apresentação de uma história clínica. A repetição é suficiente, ela é ob­servável, ela se inscreve numa história. Mas assim que a gente se pergunta qual seria o motor des­ses retornos a um passado o qual o sujeito teria todo interesse de esquecer ou a manter no pas­sado, apenas a evocação da regressão nem sem­pre é suficiente. Pois não é sempre uma questão do infantil. A pulsão de morte toca a vitalidade do sujeito, toca seu desejo de vida. É uma estase de fluxos de vida e uma estase que tem sua própria energia. Aliás, a pulsão de morte não se repre­senta. Ela é de fato abstrata. Uma pura negativi­dade das formas de vida.
A escola anglo­-saxônica é a mais reticente ao uso desse conceito. Winnicott diz que não precisa dele. Sem dúvida porque ele está em contato com a criança. Tanto a criança real quanto a criança no adulto. E ele entra no jogo com a criança. O que ele faz quando a criança joga Fort-Da em sua frente? Ele faz a mãe. Ele se faz carretel, ele se faz linha, ele se faz área de jogo, e assim ele contra­ria a inércia que resulta do trabalho do negativo, ele lhe injeta suas pulsões de vida, ele coloca sua própria pessoa ali onde o vazio é irrepresentável. Ora, Freud mantinha-­se um observador neutro, ele não intervinha no jogo. Ele não tinha a in­tenção de intervir no jogo de seu neto que dessa maneira repetia vertiginosamente a insensatez do desaparecimento.
A pulsão de morte é um conceito limite. Li­mite do pensável, limite do representável, sobre­tudo se levarmos em conta o fato de que, antes de qualquer coisa, nós pensamos em imagens e que a palavra, a designação vem depois. O motor da compulsão à repetição não corresponde a ne­nhuma imagem, a nenhum acontecimento.
E, no entanto, é uma energia, uma energia negativa.
É em sua relação com a pulsão de vida que reside o interesse da pulsão de morte. Pois não seria uma amputação de sentido que sofreria a pulsão de vida, caso ela não tivesse que combater a força da inércia que entrava seu impulso vital em direção à luz do dia? Podemos então pensar que a pulsão de vida se apoia sobre a pulsão de morte para se pôr em movimento.
Estranha pulsão que só pode se manifes­tar intrincada à pulsão de vida, mas ainda assim pulsão, pois ela visa à vida do corpo. E ela fas­cina assim como a morte pode fascinar quando a privamos da distração que é uma doença. Em favor dessa fascinação, eu me contento em evo­car a atração que exerce o melancólico sobre as mulheres nostálgicas do amor. E os românticos foram suas melhores figurações.
Eu gostaria de levantar a hipótese de que Freud – o homem científico, racional e come­dido – havia encontrado, na descoberta da face sombria de nossas pulsões, uma via finalmente dizível onde alojar seu próprio romantismo.
Então este seria o conceito mais abstrato, pois o mais interditado de encarnação…
PERCURSO: Gostaríamos que a Sra. respondesse à sua própria questão provocadora formulada em seu livro O vínculo inédito: “Nos países latino­ ­americanos, o encanto por Melanie Klein cedeu lugar ao fascínio pela doutrina lacaniana. Passa­gem de uma estrutura forte e coercitiva para ou­tra. Haveria uma relação entre as estruturas de poder nesses países e a atração pelas estruturas coercitivas em psicanálise?” (p. 57).
A seu ver, o lacanismo e kleinismo foram vivi­dos de forma diferente em seus países de origem, que já possuíam uma tradição democrática?
ZYGOURIS: Não posso dizer muito mais do que aquilo que já comentei: a saber, que, para sobre­viver em uma sociedade de poder autoritário, é mais assegurador apoiar­-se sobre um pensa­mento fortemente estruturado. Dito de outra maneira: uma teoria “forte” oferece um suporte de certezas para pensar, ela tira a angústia face a um poder que faz reinar o medo.
A teoria de Melanie Klein, em voga logo antes da chegada da onda lacaniana, é também uma estrutura forte, que deixa pouco espaço para a dúvida, e ela poderia igualmente ser um bom continente em período de crise ou de incertezas pessoais. Ela tem muito mais chance de ser aceita sem críticas em um contexto em que a psicaná­lise é nova. Mas ela é menos eficaz para pensar o coletivo do que a teoria lacaniana.
Assim, para desalojar a teoria kleiniana de seu lugar dominante, a teoria lacaniana, de força comparável, era bem-­vinda dentro de uma co­munidade analítica em dificuldade de sobrevi­ver. Era principalmente o caso para aqueles que não estavam engajados em um partido político de luta ativa. Além disso, ela tem a vantagem sobre a teoria kleiniana de permitir um pensa­mento que ultrapassa o quadro “papai­-mamãe”, ela abre na direção da dimensão social, na direção do Outro. Em uma situação política incerta ou perigosa, essa teoria pode servir de referência para pensar a política, evitando a passagem ao ato político. Aquilo de que alguns a acusaram: de servir muito facilmente como refúgio contra uma ação direta.
É, portanto, uma referência que pode se re­velar muito ambivalente, e eu não quero cair em uma simplificação excessiva.
Podemos apenas nos interrogar sobre as re­lações entre o sucesso das teorias fortes – que ex­cluem a dúvida assim como qualquer coexistência com outras teorias – e estruturas de poder polí­ticas igualmente coercitivas.
Nas ciências conjeturais, como é o caso da psicanálise, vemos como um pensamento se torna hegemônico em certos momentos históricos e em contextos culturais e políticos particulares.
Na França o estruturalismo reinou abso­luto nos anos 1960­1980, esmagando qualquer outra forma de pensamento nas ciências huma­nas, paralelamente à fascinação da intelligentzia pelo marxismo e o partido comunista.
Não é por um acaso que a psicanálise in­glesa não conheceu cisões tão dramáticas como a análise na França. Winnicott pôde criticar muito abertamente Melanie Klein, permanecendo na mesma sociedade e abrindo, entre ela e Anna Freud, uma terceira via. Era um compromisso e não uma guerra.
Muitos países latino­-americanos seguiram o modelo francês. Eles viveram, no entanto, uma experiência política dramática que dava todo um outro alcance aos seus recursos teóricos. Aqui na Europa, era uma maneira de esquecer a história em benefício da estrutura. Na Argentina, e sem dúvida também no Brasil, era uma maneira de se fazer esquecer pela história e de continuar a pensar, ainda assim.
Foi durante a ditadura na Argentina que o lacanismo começou a interessar massivamente os intelectuais, para além do simples interesse pelo exercício da psicanálise, e isso bem antes que a colonização milleriana viesse recrutar voluntários aos milhares. Muito provavelmente a estrutura do discurso de Lacan permitiu que se tivessem pensamentos fortes e fortemente estruturados, que serviram de defesas muito eficazes em tem­pos difíceis. Teorias com mais brechas, que dei­xam mais liberdade a pensamentos laterais, a dúvidas, em suma menos duras, não permitem se prevenir contra a angústia coletiva, pois elas não fabricam o Um. A privação de liberdade po­lítica e cívica ataca de maneira muito dissimulada o espaço de liberdade subjetiva. É por isso que as referências teóricas muito estruturan­tes, que eliminam todos os conflitos ideológicos, são próteses úteis para sobreviver às privações de liberdade dos corpos e das palavras.
Podemos pensar por analogia no papel de continente de pensamento e de contenção da ira que a religião desempenha hoje para os mais des­providos da terra.

NOTAS

  1. Agradecemos a gentileza de Catherina Koltai na elucidação de alguns termos utilizados pela entrevistada.
  2. O Grupo de Admissão do Departamento de Psicanálise (biênio 2009‑2011) é formado por Anna Maria Alcântara do Amaral, Anna Mehoudar, Célia Klouri, Claudia Justi Monti Schönberger, Cleide Monteiro, Décio Gurfinkel, Eva Wongstchowski, Noemi Moritz Kon, Osvaldo De Vitto e Rita Cardeal.
  3. A Federação de Ateliês de Psicanálise teve origem em 1982, depois da dissolução da Escola Freudiana de Paris criada por Lacan em 1964, e por ele dissolvida em 1980. Desde seu início, a FAP nunca se propôs a oferecer uma formação instituída e seus estatutos não incluem nenhuma regra de formação institucional. Inicialmente, e por cerca de dez anos, a Federação era composta por três associações independentes: os Ateliês de Psicanálise que constituíam grupos de trabalho formados por pessoas que se reuniam em torno de algum tema clínico ou teórico, ou então seminários organizados por alguém em nome próprio; o Coletivo Acontecimento de Psicanálise (CEP) que organizava eventos pontuais, como colóquios, e que se autodissolveu após alguns anos de funcionamento e a Associação da Escrita, que chegou a publicar a revista Espaces.
  4. In Jornal de Psicanálise, Instituto de Psicanálise – SBPSP, São Paulo, v. 34 (62 /63), 2001, p. 85‑97. Publicado originalmente na revista Che vuoi, n.15, 2001.

FONTE

ZYGOURIS, RADMILA. (2010). Por uma psicanálise laica. Percurso23(45), 137–160. 

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