POR UMA VIDA NÃO FASCISTA. CONTRIBUIÇÕES PARA UMA CLÍNICA ATIVA – por Hélia Borges

Resumo: Este artigo busca uma articulação entre conceitos elaborados por Deleuze e Guattari em O Anti-Édipo e certas questões postuladas por Reich acerca do estado patológico como expressão molar que revela o funcionamento molecular do campo intensivo.


… o antesmente verbal, a despalavra mesmo

( Manuel de Barros)

A proposta deste artigo é refletir acerca da desconstrução operada por Deleuze e Guattari, em seu livro O anti–Édipo, evidenciando o pensamento em que se fundamenta certa perspectiva psicanalítica, ao tomar como eixo questões como a falta originária, a lei paterna e a lógica binária fálico/castrado como modelo operador dos fenômenos de exclusão/inclusão. Articulando, na contramão desta perspectiva, com um fazer clínico que se coloca atento à importância do ambiente na constituição subjetiva, via afecções com o mundo como na construção teórica desenvolvida por W. Reich.

Para além da problemática central do livro – a questão edípica – os autores buscam realizar uma análise complexa do sistema de pensamento ocidental, colocando em questão o próprio pensamento que em seus desdobramentos possibilitou o chão ontológico onde a psicanálise foi buscar seus fundamentos favorecendo a emergência de categorias como, por exemplo, o Édipo. Não só ao triângulo edípico, propriamente circunscrito, se refere o texto; seu título: O Anti-Edipo. Capitalismo e Esquizofrenia nos aponta para certas implicações decorrentes da questão edípica, na medida em que esta questão se insere numa estrutura de parentalidade ocidentalizada, moderna e capitalística e suas devidas produções.

Trata-se, sobretudo de denunciar as práticas de subjetivação do mundo contemporâneo comparando o capitalismo à esquizofrenia, na medida em que este opera, tal como a esquizofrenia, pela desterritorialização dos códigos, mas ao mesmo tempo, diferentemente dela (da esquizofrenia) atualizando-os incansavelmente, portanto, novamente codificando-os. A este processo os autores denominam máquinas abstratas. Discutem em seus textos que diferente de outras formas de organização social, como os selvagens e os bárbaros, o mundo moderno – os ditos civilizados passaram a operar seus códigos de modo invisível, num campo de captura que produz organizações subjetivas, cada vez mais sutilmente desapropriadas de si. Segundo Cristina Peretti (1989), Derrida na sua estratégia geral de desconstrução intervém na ideia do significante paterno (que nomeia de logofalocentrismo) como escolha privilegiada do discurso, o nome próprio, lei, do eu falo a verdade. Derrida nos mostra como esta perspectiva, do significante paterno, legitima a busca e a garantia da origem como fundamento último da razão patriarcal. Ou seja, a questão da origem é privilegiada na cultura ocidental como acesso ao verdadeiro, ao legítimo. E para este pensamento, o pensamento logofalocentrico, esta ideai de verdade estaria centrada na identidade, no pensamento racionalista, na representação e na lei do patriarcado.

Desde aí, problematizando, se posicionam Deleuze e Guattari ao propor para pensar as montagens subjetivas do mundo moderno, as noções de máquinas de produção, máquinas desejantes e corpo sem órgãos (CsO).

Entendendo o inconsciente como uma usina, uma fábrica, portanto, como uma maquinaria, os autores abrem o campo de apreensão dos conflitos subjetivos para além do espaço representacional implicado na ideia originária de inconsciente como um teatro. Deste modo aproximam o processo de subjetivação de uma produção encarnada, inscrita no espaço social, onde o inconsciente é visto como constituído pelos encontros que se dão no meio do mundo e não como uma instância interiorizada constituída pela lógica familiar burguesa do teatro edípico.

Tal perspectiva encontra ressonância no pensamento espinosista que propõe como construção de si a ideia de que é através de bons ou maus encontros que expandimos ou não nossa possibilidade de deslocamento na existência. Para Espinosa (cf. DELEUZE, 1978) são as afecções que podem aumentar ou não a potência de um corpo no seu agir. Por afecção Espinosa quer reforçar a importância de tomarmos o corpo, os sentidos como forma de conhecer o mundo, ou seja, as ideias estão implicadas em modulações afetivas que se dão através da afetação ocorrida pelo encontro dos corpos no momento do conhecimento.

E sobre essa linha melódica de variação contínua constituída pelo afeto, Spinoza irá determinar dois pólos, alegria-tristeza, que serão para ele as paixões fundamentais: a tristeza será toda paixão, não importa qual, que envolva uma diminuição de minha potência de agir, e a alegria será toda paixão envolvendo um aumento de minha potência de agir. […] E Spinoza diz, no “Tratado teológico-político”, que esse é o laço profundo entre o déspota e o sacerdote: eles têm necessidade da tristeza de seus súditos. Aqui, vocês compreenderão com facilidade que ele não toma “tristeza” num sentido vago, ele toma “tristeza” no sentido rigoroso que ele soube lhe dar: a tristeza é o afeto considerado como envolvendo a diminuição da potência de agir. (DELEUZE,/Spinoza Cours Vincennes 24/01/1978).

Por esta via de entendimento é que Deleuze e Guattari irão discutir as questões relativas aos assujeitamentos oriundos das máquinas produtoras de desejos a serviço do capital e da reprodução da lógica do estado capitalista que, reduzidos em seu campo de operações aos fantasmas familiares, através da herança por filiação, ao nome próprio, levam à sustentação os poderes instituídos.

Assim, propõem que para além do familiarismo, do conflito familiar, existem forças que atravessam a polis e que irão, necessariamente, constituir os sujeitos:

Todo o delírio tem um conteúdo histórico-mundial, político, racial; arrasta e mistura raças, culturas, continentes, reinos […] Trata-se de saber se o histórico-político, racial e cultural faz apenas parte de um conteúdo manifesto e depende formalmente de um trabalho de elaboração, ou se deve ser seguido, ao contrário, como um fio latente que a ordem das famílias nos esconde” (DELEUZE e GUATTARI, 1972, p. 118).

Para além da família nuclear, o sujeito é instalado em um espaço marcado pelo tempo onde tais inscrições se fazem no próprio ato de viver, nas relações com o mundo, na experiência do ser no mundo1 com a promíscua experiência que é estar no mundo, atravessado por pelas forças da existência, construídas na experiência do existir.

Esta experiência de ser no mundo aqui se refere à construção merleaupontyana (cf. DASTOUR, 2001) do conhecimento como algo da ordem de um ser que é posto frente ao objeto de conhecimento sendo aquilo que lhe envolve e lhe atravessa, pois que a visão que tem do objeto como nos diz Dastour:

se dá no meio ou no coração do ser […]. Pois o ‘no’ de ‘no mundo’ não designa de forma alguma uma simples relação objetiva de inclusão, como já havia sublinhado fortemente Heidegger, mas a experiência de um contato que provem de uma relação de enlace entre o corpo e o mundo. (DASTOUR, 2001 pg.72)

Assim, as questões para as quais os autores do anti-Édipo parecem nos despertar são para os dispositivos de um processo como o psicanalítico clássico que, no seu desenrolar se limitaria a uma interpretação dos sintomas inconscientes como manifestação de uma presença de jogos associativos restritos ao campo edípico/fálico, ao espaço representacional colocando, deste modo, à deriva outros vetores de constituição do mundo subjetivo. Portanto, os autores entendem a produção desejante “esmagada, submetida às exigências da representação” (DELEUZE e GUATTARI, 1972, p. 75).

Se se pode fazer uma leitura do inconsciente como um teatro seria pela aproximação do teatro da crueldade proposto por Artaud (cf. DUMOULIÉ), no qual o único meio de afirmar a existência é combater o vazio. O teatro da crueldade visaria o inhumano, ou seja, as forças que destituiriam o humano no homem, o humano como categoria universal, como um estado, este sim, de esvaziamento das condições de criação singulares necessárias à vida.

Para Nietzsche e Artaud, o corpo é a realidade a mais ‘profunda’. Para além do inconsciente regido por um sistema de interpretação que reenvia o sujeito ao fechamento da linguagem existe uma semiótica dos corpos. Mas esta não pode jamais se constituir em significação: o ‘mais próprio’ é o menos comunicável, desde que isso fala, não é mais o corpo. (DUMOULIÉ, 1992 pg129).

Aqui, marcadamente, Dumoulié aponta para o embate entre o pensamento reflexivo, da recognição – posto seu apoio na representação: se isso fala não é mais o corpo – e um pensamento ação onde o corpo ocupa o lugar do incomunicável, da deriva, dos fluxos.

O corpo, para estes autores, Nietzsche e Artaud, segundo Dumoulié, é visto como “uma realidade trans-individual, trans-histórica um campo indeterminado de relações com outros corpos presentes ou passados, até mesmo futuros”. (DUMOULIÉ, 1992 pg.129) É também no Anti-Édipo, desta maneira, que as máquinas desejantes irão funcionar. Através de fluxos desterritorializados e reterritorializados. Fluxos intensivos trans-individuais, trans-históricos. O corpo sem órgãos se opondo às máquinas desejantes desfazendo suas organizações. É pelo corpo sem órgãos – CsO – como princípio de unidade e dispersão, que o corpo pode liberar-se dos automatismos.

Ainda, Dumoulié, ao nos falar sobre a obra de Artaud revela que não é “na recusa da ordem simbólica que podemos escapar de sua alienação” (DUMOULIÉ, 1992 pg. 95), mas utilizando-a de forma que, perdendo a razão de ser possa se expressar a desrazão de seu ser. A desrazão aqui entendida como este campo imanente de fluxos, que são constantemente apropriados pelas forças capitalísticas através da ordem simbólica.

O CsO em Artaud, assim como para Deleuze é uma crítica ao pensamento ocidental, na maneira como o pensamento ocidental trata seus corpos e pensamento, no modo como os indivíduos ocidentais objetivam e experienciam seus corpos e seus desejos. Entendem como corpo sem órgãos toda a sorte de estranhezas e experiências desviantes: o esquizo, o masoquista, os adictos etc. de modo que o que se apresenta diante de nós como patologia é apenas um campo de agenciamentos histórico-sociais.

Nos habituamos a crer que o que vemos diante de nós, através dos estados patológicos, são sujeitos despidos de razão e que a racionalidade é a consciência. “Cultivamos um mito de uma individuação a priori da subjetividade, ou seja: as pessoas seriam responsáveis e conscientes delas mesmas”. (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 251). Deste modo, “quando o pensamento foi erigido como medida de ser do sujeito, a loucura perdeu qualquer lugar no registro da subjetividade […], podendo, pois ser considerada um desvario da razão” (BIRMAN, 1998, p. 164).

Colocando em questão a racionalidade, Deleuze e Guattari (1978) pensam a consciência como signo de um fracasso, posto que redutora, a consciência impediria novos deslocamentos, tendendo à reprodutibilidade das ações, tornando o sujeito constrangido de sua expressão singular.

O inconsciente esquizo expresso no Anti-Édipo sendo um campo de intensidades dos corpos, um campo de possibilidades confronta-se com uma perspectiva de uma psicanálise que se constrói tendo em conta um inconsciente regido pelas leis da linguagem. Assim, ao romper com a moral e com o julgamento científico, inscrito que é na representação e na verdade e, ao pensar o corpo como campo de intensidades, de forças que podem ser descritas atentando para as dinâmicas imanentes, os autores abrem novas possibilidades de operação para a clínica psicanalítica.

O corpo, campo de intensidades, é conceituado como uma máquina, como um processo autoconstituinte. Deste modo, os autores realizam um curto-circuito no relacionamento entre o ego e o corpo, no sentido de destruir o determinismo, que define a coerência como lugar de inscrição do eu, se aproximando, assim, de uma concepção metaestável, em constante diferenciação, onde os processos subjetivação se dariam por composição e decomposição dos corpos nos encontros.

Este aspecto coloca em cena o projeto da modernidade no que se refere à exclusão do outro na constituição identitária do homem moderno. É, portanto, um ataque à arrogância do pensamento científico ocidental que persegue o controle e a determinação do existir.

De acordo com Deleuze e Guattari o sentido de nossos desejos pode ser encontrado nas ligações inconscientes e imediatas com o campo atual e histórico. Sociedade e indivíduo não estão separados. É esta separação que criticam como um pressuposto da modernidade, produto da família nuclear. Este tipo de família funciona como um mediador entre forças sociais e históricas.

O inconsciente, então, deve ser produzido, não é um amontoado de fantasmas e recordações da infância, mas as atualizações dos blocos de infância, o devir infância. Produzido a partir de devires, de experimentações.

O Inconsciente é uma substância a ser fabricada, a se fazer escorrer, um espaço social e político a ser conquistado. Não há o sujeito do desejo, nem o objeto do desejo, nem sujeito de enunciação. Somente os fluxos são a objetividade do desejo mesmo. (DELEUZE e PARNET, 1977, p. 96).

De acordo com os autores de O Anti-Édipo, o capitalismo funciona num caminho esquizofrênico: tem uma atividade imanente que consiste em codificar e decodificar. O sistema capitalista necessita abrir novos mercados para poder funcionar, daí tudo codificar e decodificar, desteritorializar e reterritorializar.

No prefácio para a tradução americana do Anti-Édipo, que tem como título: “O Anti-Édipo: uma introdução à vida não fascista”, Foucault (1977) irá ressaltar a importância do livro pelo seu conjunto de reflexões acerca da “extensão do terreno coberto” pelo projeto iluminista do pensamento ocidental mostrando como o desejo povoa determinado campo social e político, a partir de análises que relacionam a produção desejante com a realidade e com a máquina capitalista.

Para este autor, os três adversários com  os quais O Anti-Édipo se defronta são:

1) Os ascetas políticos, os militantes morosos, os terroristas da teoria, aqueles que gostariam de preservar a ordem pura da política e do discurso político. Os burocratas da revolução e os funcionários da Verdade; 2) Os deploráveis técnicos do desejo – os psicanalistas e os semiólogos que registram cada signo e cada sintoma e que gostariam de reduzir a organização múltipla do desejo à lei binária da estrutura e da falta; 3) Enfim, o inimigo maior, o adversário estratégico […]: o E não somente o fascismo histórico de Hitler e Mussolini […], mas também o fascismo que está em todos nós, que ronda nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz gostar do poder, desejar essa coisa mesma que nos domina e explora. (FOUCAULT, 1977)

Entre os teóricos da psicanálise é Reich quem realiza uma leitura sobre a fascinação das massas pelo fascismo, apelando para a dinâmica das forças inconscientes. Wilhelm Reich foi um autor polêmico e ignorado pela história da psicanálise, fato curioso, dada a importância atribuída a seus estudos nos anos 20 e começo dos anos 30 do século passado. Envolvido com políticas de saúde visando à educação sexual da juventude alemã, acreditava que somente com uma sexualidade livre de repressões um povo poderia se aliviar de suas dores psíquicas e produzir uma sociedade saudável.

Bernd Nitzschke (2004), em seu artigo “A interpretação política da psicanálise por Wilhelm Reich ou Resistência e acomodação dos psicanalistas na época dos nazismo“, nos resume a trajetória de Reich na Alemanha nazista como psicanalista no Círculo Psicanalítico de Viena e o desagrado de Freud e seus seguidores na articulação, realizada por esse autor, entre produção de patologia e a instauração de regimes autoritários de governo. Nitzschke revela que, no desejo de permanência que se instalou na instituição psicanalítica na Alemanha, foram realizadas discriminações ao pensamento reichiano, culminando na sua expulsão da sociedade, bem como ao ostracismo decorrente da negação e fechamento às contribuições de Reich ao desenvolvimento da teoria e práticas analíticas.

Segundo Reich o fascismo é um desejo das massas, como nos dizem Deleuze e Guattari:

Nunca Reich mostrou ser um tão grande pensador como quando se recusa a invocar o desconhecimento ou uma ilusão das massas ao explicar o fascismo, e pede uma explicação pelo desejo, em termos de desejo: não, as massas não foram enganadas, elas desejaram o fascismo num certo momento, em determinadas circunstâncias, e é isto que é preciso explicar, essa perversão do desejo gregário. (Psicologia de massa do fascismo). (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 47).

Para W. Reich, o sofrimento do homem está ancorado na estrutura patriarcal que é característica da forma como se organiza a cultura ocidental moderna e, como resultante desta ancoragem decorre o encouraçamento do caráter contra a própria natureza interior do homem desdobrando-se no que denomina de miséria social.

Para discutir tal constatação Reich parte da libido revelando que esta formação molecular irá se perpetuar em escala macroscópica nas formações molares das instituições sociais. Assim, problematiza a questão postulada desde Espinosa: porque o homem desejaria sua servidão, como se fora sua libertação?

Nos constrangimentos exercidos à corporeidade e consequente fabricação de desejo é que Reich irá buscar a resposta. É este autor, na psicanálise, que irá pela primeira vez, colocar em cena um corpo estagnado, resultante do conflito implicado na constituição do sujeito implicado com os movimentos histórico/sociais.

O corpo encouraçado do infante será aquele que sustentará um fazer social. Define os estados patológicos como decorrentes da forma verticalizada pela qual se organizam as sociedades, em que dispositivos de poder servem como obturadores das potencias inventivas da vida, ou seja, fecham a percepção aos encontros singulares favorecedores dos coletivos.

Em sintonia com o pensamento de Deleuze e Guattari em O Anti-Édipo, Reich coloca em evidencia, através dos constrangimentos manifestos na corporeidade, o mundo das formas: modo molar do funcionamento das coisas do mundo, buscando através de sua técnica explodir com o codificado a fim de captar o campo intensivo: o molecular.

Ao não se admitir reverter a lógica construída a partir do sentido único inaugurado por Platão e retido pelo pensamento como forma legítima de entendimento das coisas do mundo, se configura a impossibilidade de acessar o plano imanente para constituir um campo conceitual para outro modo de pensabilidade.

W. Reich, ao realizar sua critica às práticas exercidas pelos poderes instituídos, colocará em destaque o papel da família, como coadjuvante, nomeando suas práticas de mal endêmico familitis (Cf. Reich 1979, p. 20) de modo a revelar a incapacidade da família em sustentar outra configuração que não seja baseada em uma compulsão para produção do modelo opressor de organização familiar.

As ordenações realizadas à libido pela ordem familiar […] funcionariam como obturadores das potências inventivas da vida na medida em que sustentariam um olhar paralisado em um único sentido: àquele evocado pela autoridade representada na figura parental. […] Na crítica a esta forma de subjetivação Reich torna público o modo como o Estado opera visando sua permanência e expansão. Seus textos polemizam a construção social contemporânea desencadeada pela modernidade demonstrando, assim, o processo pelo qual a subjetivação se realiza através da submissão ao produzir sujeitos alienados de si. (BORGES, 2008, pp. 3-4)

Ressalta, em sua pesquisa clínica, que a constituição do caráter é a condição do homem moderno. Associa este ao homo normalis e nos oferece a percepção do massacre e sedimentação sofrida pelo homem ocidental na sua trajetória cultural. Aqui a patologia não se revela como algo estranho ao sujeito, produzindo sofrimento, justo o oposto, apresenta-se como um sujeito bem adaptado e ajustado às condições sociais vigentes, condições hostis à própria vida. O caráter é visto, então, como anti-natureza, como uma segunda natureza.

A estrutura de caráter do homem moderno, que reflete uma cultura patriarcal e autoritária de seis mil anos, é tipificada por um encouraçamento do caráter contra sua própria natureza interior e contra a miséria social que o rodeia. Essa couraça do caráter é a base do isolamento, da indigência, do desejo de autoridade, do medo à responsabilidade […]. O homem alienou-se a si mesmo a vida, e cresceu hostil a ela. Essa alienação não é de origem biológica, mas socioeconômica. Não se encontra nos estágios da história humana anteriores ao desenvolvimento do patriarcado. (REICH, 1979, p. 16)

As propostas reichianas, embora críticas ao modo fascista como se organizam as subjetividades, carregam ainda a força modeladora cientificista que se traduz na proposição de um lugar a ser atingido na saúde e que denominará de caráter genital. Esta questão problemática, tendo em vista sua crítica aos massacres totalitários, deve ser compreendida frente ao seu claro desejo em realizar o projeto freudiano de uma psicologia científica e que, posteriormente, lhe levará às pesquisas sobre a energia orgone, abandonando por completo o campo da psicologia para abraçar em definitivo a ciência.

Assim, mesmo que Deleuze e Guattari tenham reconhecido que Reich não consegue dar uma resposta fora do dualismo razão x desrazão, ainda assim, os autores apontam para a importância deste psicanalista/orgonomista que revela como o desejo é capturado pelas forças do poder através do submetimento dos corpos pela alienação das expressões singulares. São as máquinas desejantes que operadas por um social, se transformam em corpos docilizados desejosos de seu padecimento, da pacificação de suas forças intensivas.

Colocando como fio condutor de suas construções, os autores fazem ver que Reich consegue demonstrar que é através da repressão ao desejo, ancorado no corpo, que se dará a sujeição a uma norma instituída. Porém ressaltam que, para além de qualquer sentido,

Se Reich, no próprio momento em que colocava a questão mais profunda ‘por que as massas desejaram o fascismo?’ contentou-se em responder, invocando o ideológico, o subjetivo, o irracional, o negativo e o inibido foi porque permanecia prisioneiro de conceitos derivados […] que o impediram de ver como o desejo fazia parte da infraestrutura, e o encerraram na dualidade do objetivo e do subjetivo […]. A economia libidinal não é menos objetiva que a economia política, e a política não é menos subjetiva que a libidinal, embora as duas correspondam a dois modos de investimento diferentes da mesma realidade como realidade social. Há um investimento libidinal inconsciente de desejo que não coincide necessariamente com os investimentos pré-conscientes de interesse, e que explica como estes podem ser perturbados, pervertidos na mais sombria organização, sob qualquer ideologia” (DELEUZE e GUATTARI,1976, p. 438).

Foucault (1977) em seu prefácio, ainda nos diz sobre o Anti-Édipo que este é um livro que poderia se caracterizar como um tratado ético, e mesmo que, logo a seguir, peça desculpa aos autores por esta afirmação, Foucault aponta, creio, para sua leitura ética como prática de ascese, como o cuidado de si, em que tomamos como tarefa nos ocuparmos de nós mesmos, através dos pensamentos, das condutas, do corpo visando a transformação, o aprimoramento de si. Forjando resistências às identidades fixas e às universalizações, atentos aos fascismos cotidianos.

Concluindo, O Anti-Édipo, carrega em suas linhas a marca de um tempo, 1968, no qual o desejo de forçar o pensamento ao seu próprio avesso corresponde ao esgotamento de uma forma de apreensão do mundo que caminha para o esvaziamento na potência de inventar a vida. Em uma proposição ética/estética, realiza a formulação de uma clínica confrontando dogmas da psicanálise – a esquizoanálise que, em certos ambientes se transformou em mais um modelo, na medida em que, inseridos nesta trajetória histórica, terapeutas se apropriam destas proposições como verdade, capturando uma prática clínica que se deveria compor como ativa pois que se afirma na direção da criação imanente da própria vida.

Mil Platôs, a continuação deste livro, parece se aproximar mais de um pensamento poético, pois suas linhas, sem desejo de lugar nenhum, instigam o pensamento. Esta sim, creio, é a tarefa fundamental do pensar. Um pensamento encarnado que possa se produzir para além da representação e restaurar a possibilidade do que, segundo Foucault (2001), se perdeu na modernidade: a importante noção da antiguidade de que o sujeito da ação adequava o dizível ao vivível. E se perdeu porque entre o agir e pensar, entre o agir e o falar passou a existir o representar.

Podemos dizer que a partir das problematizações surgidas deste novo campo conceitual proposto por Deleuze e Guattari, se faz possível restaurar o sujeito da ação: ou seja, sustentar o combate cotidiano de adequar o que se diz ao que se é, entendendo junto à Nietzsche que o que se é, é aquilo que nos tornarmos. Paradoxo que coloca em ato a experiência de que o que se é, é o puro deslocamento em que o encontro com as coisas do mundo inaugura mundo.


NOTAS

1. Heidegger em Sein und Zeit, 1963 […] reforça que a partícula de “in” de “in-der-Welt-Sein” deriva do verbo innan que significa habitar[…] Toda análise do In-sein, no sentido estrito de “ser-no” e não de “estar-no”, à qual Merleau-Ponty se refere, é, pois uma inerência existenciária que nada tem a ver com uma simples inclusão espacial, mas que supõe, pelo contrário, este espaço de possível reencontro que é o mundo, unicamente a partir do qual o contato pode ocorrer. (NT do tradutor, Dastour, 2001)


BIBLIOGRAFIA

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FONTE

BORGES, H. M. O. C. . Por uma vida não fascista. contribuições para uma clínica ativa. Revista Polêmica, v. 10, p. 537-550, 2011.

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