Resumo: Este artigo consiste num mapeamento inicial parte de um projeto que propõe discutir possíveis contribuições da psicanálise para pensar o campo da política. O fio condutor do texto é o termo “servidão voluntária”, presente no texto Discurso sobre a servidão voluntária, de Étienne de La Boétie. Pretendemos não somente contribuir para relançar a aposta na psicanálise como teoria social e instrumento de uma clínica do social, mas também reafirmar sua potência crítica. Posteriormente, a pesquisa pretende se dedicar à atualidade da psicanálise como ferramenta possível para pensar problemáticas contemporâneas em torno da política no Brasil.
O inconsciente é a política!”. Essa frase, proferida no Seminário 14 (Lacan, 1966- 1967/2008, p. 350), é o disparador deste texto. Ele compõe os primeiros passos de uma pesquisa¹ que tem como proposta (ainda) a questão: como a psicanálise pode contribuir para pensarmos o campo da política, da esfera pública? A indagação será acompanhada pelo termo “servidão voluntária”, presente no Discurso sobre a servidão voluntária (1574/1999), de Étienne de La Boétie. A escrita percorrerá ideias de Freud e Lacan que sirvam como pistas para nossa pesquisa.
A escolha do tema consiste não somente em contribuir para relançar a aposta na psicanálise como teoria social e como instrumento de uma clínica do social, mas também em reafirmar sua potência crítica. Cabe destacar que a discussão iniciada aqui é parte de uma pesquisa que pretende, do mesmo modo, numa etapa posterior, se dedicar à atualidade da psicanálise como ferramenta possível para pensar problemáticas contemporâneas em torno da política no Brasil.
Por que mais uma vez Freud? Por que novamente a servidão voluntária? Agamben (2009) descreve a atualidade ou a contemporaneidade de algo como uma relação singular com o tempo. Nela, tem-se a clara visão de que se pertence a uma época combinada com uma discronia. O contemporâneo adere a seu tempo por uma dissociação, fixa seu olhar no presente e o fratura. Essa coragem de mergulhar nas trevas de seu próprio tempo, interpelando-o, além de transformá-lo, o dispõe numa relação com outras épocas. Nesse sentido, podemos dizer que o Discurso sobre a servidão voluntária e, sobretudo, a obra de Freud seriam atuais.
Não se trata, evidentemente, de enquadrar os conceitos e as ideias de uma obra dita atual ou contemporânea numa atemporalidade, mas de dedicar nossa atenção aos aspectos críticos que ela veicula. No caso da psicanálise, pertenceria a seu cerne uma radical tarefa crítica na medida em que ela precisa constantemente revisitar seu próprio discurso para não coincidir consigo mesma. Caso contrário, o risco de cair numa função normatizadora ou na defesa do caráter a-histórico dos conceitos psicanalíticos não parece, infelizmente, distante. Essa diferenciação de si parece depender da constante abertura da psicanálise para outros discursos. Embora esse aspecto pertença à psicanálise estruturalmente, por exemplo, na escuta como dependente de uma não redução do outro ao mesmo, essa saída de si precisaria fazer parte dela de modo programático numa visada à hibridação com outras formações discursivas. Assim ela pode dedicar-se ao que lhe é contemporâneo evitando cristalizações (Ayouch, 2019).
Um percurso de pesquisa que pretende se dedicar à psicanálise e política deve apontar para os deslocamentos que ela operou em diversos campos, às interpelações que ela operou’ em domínios a princípio pouco psicanalíticos. Escritos como Moral sexual cultural e nervosismo moderno (1908/2015) e Mal-estar na civilização (1030/2010) conjugam, sem dúvida, clínica e política, sofrimento psíquico e cultura. Na obra Psicologia das massas e análise do eu (1921/2011) encontramos a conhecida passagem sobre a inseparabilidade entre psicologia individual e psicologia social. Num diálogo com autores interessados pelo tema das massas, vistas como acéfalas, sem relação com o estado “normal” e “individual” dos sujeitos, Freud as aproxima justamente do que é comum a todos nas relações grupais. Não se obedece ao líder pela força, pelo medo ou covardia. Tampouco se trata de enganação. Seria possível ao líder manter-se como tal na medida em que há um efeito de encantamento. Ele ocupa para o grupo a posição de objeto e de ideal de eu. A ilusão de unidade que mantém o grupo ofusca a parcialidade da identificação, entendida por Freud como um tipo de identificação parcial, feita pelo traço de um objeto (Rinaldi, 2001).
Quanto à política, Paul-Laurent Assoun (1990) dirá que a psicanálise possui uma indiferença à política. Aqui, é preciso compreender o que Freud chamou de política. Para Assoun (1990), ele a associava principalmente ao campo da representação política e às políticas de Estado, os quais tendem a nos reduzir à menoridade. Nesse sentido, Freud teria reservado para a psicanálise uma ausência de identidade política, vinculando-a a uma tarefa crítica. Portanto, ela deve desconfiar dos ideais, seguindo a reiterada suspeita de Freud quanto às concepções de mundo incapazes de suportar a parcialidade e a provisoriedade do saber.
Na prática clínica, tal postura contra-hegemônica associa-se ao acolhimento das pacientes histéricas como capazes de falar em nome próprio sobre o sofrimento que as acometia. Crítico do discurso médico, domínio essencial para compreendermos as relações entre ciência e intervenções do Estado na organização das cidades (Foucault, 1975/1996), o contrato estabelecido com os pacientes retira-os do silenciamento dos hospitais, prolifera a fala e, a seu modo, trava uma batalha contra a repressão social/sexual. O próprio reconhecimento de que a neurose liga-se diretamente ao modo como a cultura europeia lidava com a sexualidade, impondo aos sujeitos um ideal sexual cujas bases são família nuclear, heterossexualidade e monogamia, é inseparável da defesa da singularidade, correlata da crítica a esses padrões como impossíveis de serem atingidos, marcando os sujeitos pelo (esperado) fracasso na cessão de seus desejos. Seria melhor se nos “fosse possível ser piores”, declara Freud (1908/2015, p. 374). A abordagem do sofrimento psíquico é inseparável de uma análise do social.
Se o campo da política aparece em Freud como inevitavelmente relacionado ao período entre guerras e ao malogro dos ideais da modernidade quanto à razão como guia para a vida social, Lacan viveu as transformações mundiais em torno do neoliberalismo. Não à toa, o Seminário 7 (1959-1960/1988) revisita Mal-estar na civilização (1930/2010) e redobra a aposta na falta de garantias “no micro e no macro cosmo” e enuncia a ética da psicanálise como não ceder de seu desejo (p. 23). O mundo vivido por Lacan é o do mercado dos bens, elemento central para problematizar as consequências, à sua época, da felicidade como problema de política, tema inaugurado na modernidade. Em face do “bem para todos” atrelado às políticas de Estado, bem como às respostas que a “pastoral analítica” oferecia aos demandantes de felicidade, faz-se fundamental evocar o inconsciente como a lição mais importante de Freud se faz fundamental. Aqui, a temática da “servidão voluntária” parece se aplicar às múltiplas promessas de felicidade pelo consumo, atrelada à chamada injunção ao gozo na cultura. Os ideais de vida social fazem apelo a um indivíduo autocentrado, empreendedor de si. A psicanálise mantém seu apelo ao múltiplo e à diferença quando busca pensar o que nos mantém no social.
Quanto ao Brasil, como poderíamos situar psicanálise e política hoje? Autores como Neusa Santos Sousa (1983) e Christian Dunker (2015) dedicaram-se às especificidades dos sintomas à brasileira. Da exposição a céu aberto do ideal branco como forma forçada e perversa de identificação disponível ao negro à denominação “lógica de condomínio” para caracterizar um modo privilegiado de gerir a vida coletiva no Brasil com muros (in) visíveis, os autores revisitam traços autoritários e excludentes em leituras psicanalíticas de nossas formações sociais. Do mesmo modo, acontecimentos recentes na história do país convidam mais uma vez a psicanálise a se pronunciar. A abertura à barbárie, numa paixão da destruição, faz apelo ao medo e ao ódio como modo de viver com a diferença, bem como uma impressionante desautorização do pensar (Arendt, 1963/1999), acompanhada por uma espécie de apologia à ignorância, constituem um desafio aos estudos interessados pelas peculiaridades da nossa história.
Impossível não convocar a atualidade da pergunta de Deleuze e Guattari (1972/2004), inspirada na observação de Espinosa: como é possível lutar pela nossa servidão como se lutássemos pela nossa liberdade? Questão que remete ao Discurso da servidão voluntária (1574/1999). Nesse texto, uma provocação (Gros, 2018, p. 50), o autor denuncia a monstruosidade do lado dos súditos, não do soberano, “um número infinito de homens” servem, como um vício, fascinados, ao um.
“E por que é que as pessoas se deixam comprar pelo rico?”, pergunta Lacan (1969- 1970/1992, p. 86) em 1970. Pierre Clastres (1976/2004) evoca o amor dos súditos pelo tirano transformado na nova lei. Cada um “estima seu próximo por sua fidelidade à lei” (p. 161). O amor à lei nos faria cúmplices do príncipe e impossibilitados de laços de amizade com os outros. Lacan aponta a crença na participação da riqueza como o que nos faz comprar do rico ou de uma “nação desenvolvida”. No “aparelho de exploração”, perdemos saber, que “o rico adquire de quebra, abaixo do mercado” (p. 86). Quem compra? Quem (se) vende?
Cabe ressaltar que o tema da política neste artigo leva em conta as considerações de Hannah Arendt sobre o tema em A condição humana (1958/2009) e em O que é política? (1950- 1959/2009). Interessa-nos a caracterização da política como uma atividade que surge entre humanos que ultrapassa a mera manutenção da vida. Desse modo, Arendt localiza no discurso aquilo que torna o homem um ser político. Para Cornelius Castoriadis (2004, p. 314), a psicanálise comporta uma “dimensão política impossível de eliminar”. A ela caberia o mesmo objeto da política, a autonomia (individual e coletiva), ou seja, a liberdade individual e coletiva em cada um poder fazer parte das decisões, formações e aplicações da lei. A psicanálise participaria disso ao fornecer aos sujeitos instrumentos para estabelecer com seu inconsciente uma outra relação. Ela nunca deixou de falar da inseparabilidade dos pacientes com seu “círculo”. Assim, quando a psicanálise trata da moral e da ética, ela não faz outra coisa senão abordar uma dimensão política, mesmo que o autor aponte uma “falha”, desde Freud, em reconhecer que ela envolve “a totalidade da rede das instituições e das significações sociais, impessoais e anônimas” (p. 314).
Uma vez esboçadas algumas considerações iniciais sobre psicanálise e política, propomos uma incursão acerca do termo servidão voluntária. Em seguida, discutiremos psicanálise, servidão e obediência e apresentaremos linhas iniciais sobre servidão voluntária no Brasil.
Sobre a servidão voluntária
Pierre Clastres, no texto Liberdade, mau encontro, Inominável (1976/1999), denomina a questão de La Boétie sobre a servidão como “trans-histórica”. Seria esse um dos motivos pelos quais podemos ainda ouvi-la. Na questão, ele descobre justamente que a servidão é histórica, não é eterna. Um novo horizonte se abre: “outra coisa é possível”. Não há impulso para cumprir uma tarefa de libertação em La Boétie. Ele acredita que a resignação e o amor à servidão resultaram de um acaso, de um mau encontro, no qual se produziu a História, a divisão da sociedade entre quem manda e quem obedece. Os modernos nomeiam esse momento de “nascimento do Estado”. Com o Estado, a obediência de todos a um é um processo, talvez irreversível, de desnaturação do humano, de renúncia a ser livre como sua natureza fundamental.
Ao voltar-se à ficção operatória estabelecida por La Boétie ao descrever a natureza humana, Clastres fala numa distinção lógica radical: há sociedades de liberdade, conformes à natureza do humano, e sociedades sem liberdade, da obediência. Aliás, Sociedade contra o Estado, de Clastres, fala dessa marca distintiva para diferenciar as sociedades. As ditas sociedades primitivas não somente sabiam da possibilidade do Estado, como a evitavam ativamente. De todo modo, para Clastres (1976/1999), há servidão, segundo La Boétie, desde que haja sociedade dividida. Se La Boétie não diferencia o mau tirano do príncipe bom, ele admite uma hierarquia do pior entre as sociedades com Estado. O totalitarismo nos lembra que “por mais profunda que seja a perda da liberdade, nunca está perdida o bastante, nunca se acaba de perdê-la” (Clastres, 1976/1999, p. 114). Se o texto não responde à pergunta sobre como a desnaturação, marca da oposição lógica entre sociedades, ocorreu, a obra tenta fornecer uma explicação para a renúncia à liberdade tornar-se durável.
O homem, na sociedade dividida, é inominável. Nem animal, já que não obedecem por medo, nem “além do humano” (Clastres, 1976/1999, p. 114). Esse novo homem é desnaturado, mas ainda livre, já que escolheria sua alienação na vontade de servir. Não são forçados ou constrangidos, obedecem de modo voluntário. Séculos mais tarde, Wilhelm Reich, em Psicologia de massas do fascismo (1933/1988), parte de uma chave de leitura semelhante ao buscar as condições de possibilidade do nazismo. Não se tratou de manipulação, de submissão ao terror, mas do desejo de servir em jogo. Desejo atrelado às marcas de uma educação para a docilidade, que impede de exercer a potência crítica do pensamento. Nesse sentido, Reich atentou para o papel da classe média na ascensão desse regime de governo. Ocupante de uma posição intermediária, pensa participar do poder da autoridade, a quem deve obediência, ao impor seu poder aos que estão abaixo dela socialmente. Para Reich, há uma clivagem entre a situação econômica das diferentes camadas da classe média e sua ideologia. O traço que teriam em comum, que permitiria perdurar a estrutura clivada, seria a persistência de velhas instituições organizadoras do social, como a família. A situação econômica, que distanciaria essa classe da elite, não basta para permitir uma identificação com a situação dos mais pobres.
Frédéric Gros (2018) explora outros aspectos do fio condutor da resposta de La Boétie ao problema da persistência da servidão. Para o autor, La Boétie nos permite pensar a manutenção do poder político como dependente de um excesso. Daí a importância de diferenciarmos obedecer e servir. Servir é dar garantias, “antecipar desejos, obedecer o melhor possível”, uma superobediência (p. 59). Trata-se do engajamento em nossa submissão, com energia e desejo. O encantamento dos súditos diante do tirano viria do desejo de “se sentir alguém, através e a partir da adoração do que me domina” (Gros, 2018, p. 61, grifo do autor).
La Boétie não fala de uma sociedade que, assustada, é obrigada a dispensar a liberdade pela segurança, ele fala de uma obediência fascinada, “fazemos comunidade para adorar, e não para odiar” (Gros, 2018, p. 62). O tirano encarna uma adoração comum do corpo social a si mesmo, como um bode expiatório invertido. Nesse sentido, a desnaturação se manifesta não somente no amor ao tirano ou ao déspota, ela se desdobra na amizade impossível entre os súditos, unidos apenas pela adoração comum. O medo da liberdade e o amor à lei (deve-se amar o tirano) são complementares.
Psicanálise e política – desobedecer?
Se Moral sexual cultural (1908/2015) evoca traços de um Freud esperançoso quanto à possibilidade de uma reforma na cultura, avisada dos males provocados pelos ideais hegemônicos da civilização, O mal-estar na civilização (1930/2010) radicaliza a postura contra-hegemônica freudiana. Nesse texto, publicado em 1930, a distância entre os ideais da cultura ocidental moderna e os insucessos do sujeito da razão é intransponível. No caminho para a satisfação da muda e incansável pulsão de morte a vida é segunda, sem garantias. Cabe- nos fazer da vida um trabalho infinito de gestão da morte (Birman, 2010). No entanto, uma outra característica da pulsão nos permite positivar a postura freudiana: ela é também plasticidade. Sempre revisitada pela morte como destruição, ela aponta, do mesmo modo, para a abertura do criar.
Publicado quase uma década antes do Mal-estar, o texto Psicologia das massas e análise do eu (1921/2011) contrapõe-se à ideia de uma mera obediência na formação das massas, seja por imposição seja por alguma animalidade. Na luta contra a destruição e a hostilidade que marca a convivência com os outros, o sentimento social é descrito por Freud como uma tarefa na qual há “inversão de um sentimento hostil em um laço de tom positivo, da natureza de uma identificação” (p. 83). Um laço afetuoso comum une a massa numa exigência de igualdade entre os seus, a exceção é o líder. Ele ocupa o lugar de ideal de eu e de objeto, daí o feito de encantamento, hipnótico, nas pessoas da massa (Rinaldi, 2001, p. 17). O desejo de se sentir alguém, destacado por Gros (2018), é, numa possível leitura lacaniana, uma tentativa de participar do Um exceção.
Falamos acima da compra/venda ao rico questionada por Lacan como retrato desse jogo de participação. Kant com Sade (1966/1998) nos ajuda a pensar nas consequências nefastas da colagem ao Um. Distante da identificação com o traço que permite a singularidade, o sujeito, na obediência ao Outro (posicionado como Um), agiria sem pathos, como queriam Kant e Sade, não reconhece e não quer saber do outro, o que autoriza a tirania de um contra um.
Cabe ressaltar que interessa à psicanálise também aquilo que resta sem adesão ao Um. Ora, “o inconsciente é a política” justamente porque ele guarda os restos não elaborados, não ditos e interditos, recalcados, que se transmitem, produzindo efeitos na cultura, dos quais continuamos a ter notícias depois, dos quais participamos a nossa revelia, sem saber o que fazemos (Kehl, 2016). Terrível, “besta”, como assinalou Lacan (1969-1970/1992, p. 95), e atuante.
Jacques-Alain Miller (2011, p. 227) recorre a Paul Valéry e sua caracterização do Surrealismo como “salvação pelos dejetos” para defender o estatuto do resto para a psicanálise. Pode-se dizer que Freud descobriu os dejetos da vida psíquica (sonhos, lapsos, atos falhos, sintomas) e a importância de prestarmos atenção neles. Miller pensou os dejetos como aquilo que é rejeitado “(…) numa operação onde só se retém o ouro, a substância preciosa a que ela leva” (p. 228). O dejeto é então aquilo que tomba avulso. Nesses termos, o Surrealismo como arte dos dejetos nos leva a uma definição da própria arte como um processo de estetização/idealização dos dejetos. Assim, as operações que dão dignidade, que encobrem e submetem a crueza do gozo, são secundárias. No entanto, elas tornam possível socializar o dejeto e o gozo, os pondo nos laços sociais. Nesse sentido, chamamos atenção para a potência crítica do resto e para o gozo como conceito político (Safatle, 2018).
Tudo se passa como se o capitalismo não reconhecesse a pulsão de morte. Longe de haver uma renúncia ao gozo, ele o espolia e inscreve o excesso (Safatle, 2018). Expropriados da singularidade de seus modos de gozo, a integração social do gozo o inscreve, por exemplo, no ideal empresarial de si mesmo, bem como no registro das relações baseadas no investimento, no custo-benefício (Safatle, 2018). Sennett (1999) destaca também a proliferação do registro do homem motivado, inscrito em laços baseados na competição e na competência. O outro é concorrente, e não apenas no mundo do trabalho.
Dentre as diversas acepções que Lacan formulou sobre o gozo, destacamos o gozo como não-relação. Como disjunção significante-significado, homem-mulher, gozo fálico-gozo não- todo ordenado pela linguagem (Lacan, 1972-1973/1985). Enfim, o gozo como força disruptiva, capaz de perturbar a ordem vigente. Assim se explicaria aquilo que dos laços sociais torna-se o Outro social (Miller, 2011). As instâncias legais e todo o aparato para que o Outro social ganhe corpo são fabricadas apropriando-se do gozo transcrito, por exemplo, no ideal de bem para todos e na injunção atual a gozar. É nesse contexto que Miller refere-se ao que seria o papel do psicanalista nas instituições. Ele deveria ser capaz de dar dignidade aos dejetos e sustentar uma prática a partir deles. Ao mesmo tempo, ele deveria tentar permanecer numa postura ilegal ou clandestina. Talvez Miller (2011) não exagere quando afirma que se os psicanalistas levassem a sério a inserção e o reconhecimento social da psicanálise ela desapareceria. Seria preciso fazer semblante desse reconhecimento para poder ocupar o papel de representante daquilo que é insocializável no gozo.
Para Gros (2018, p. 56), a liberdade seria emancipar-se do desejo de obedecer, “estancar em si a paixão da docilidade”, parar de antecipar o que nos esmaga. Se toda sociedade dividida está, portanto, fadada a durar, a submissão só pode ser vista como uma relação de forças que dificulta ao máximo desobedecer, tornar a tarefa impossível, dispendiosa. Nesse sentido, desobedecer é esvaziar a superobediência. Quanto ao que ou quem submete, “não se deve tirar- lhe coisa alguma e sim nada lhe dar” (La Boétie, 1574/1999, p. 14). Parar de fornecer, estancar o furor de dar até mais além daquilo que se pede. Uma das saídas, quando desobedecer completamente ou o confronto direto são impossíveis, seria fabricar uma obediência de má vontade, no limite da sabotagem, vagarosa. Depurar para eliminar nossa adesão.
No texto A república do silêncio, Sartre (1944) fala sobre a resistência cotidiana durante a ocupação alemã na França. Para Sartre, os franceses nunca foram tão livres quanto durante esse período. Ele fala da resistência cotidiana quando todos estão ameaçados, chefes e trabalhadores. Cada gesto, palavra, cada pensamento de resistência à morte era precioso e levava, de algum modo, cada um a ter de se haver com seu papel histórico na solidão do interrogatório, da acusação, na prisão:
Porque o veneno nazista se infiltrava até no nosso pensamento, cada pensamento justo era uma conquista; porque uma polícia todo-poderosa tentava nos constranger ao silêncio, cada palavra se tornava preciosa como uma declaração de princípios; porque estávamos encurralados, cada um de nossos gestos tinha o peso de um engajamento (p. 1).
Desobedecer, dizer não. Sozinhos eram os outros, todos os outros. Sartre chama essa resistência de democracia verdadeira, constituída de uma República afirmada no instante, “sem instituições, sem exército e sem polícia” (p. 2).
Pode uma sociedade se unir sem designar algo que a encarne ou sem a denominação de um infame que ela abomine? A amizade surge no texto de Gros como “máquina de guerra contra as comunidades de obediência”. Isso porque ela é sempre de um para um. Nela se discute, se fala. E o falar, por ser claudicante (ato coxo, vacilante, incerto), é “remédio contra os poderes” (p. 62). Ela seria a base da definição das sociedades sem Estado, da recusa à obediência. Há fala, “substância comum aos divinos e aos humanos”, e sua presença nos diz que somos igualmente eleitos por sermos todos uns (Clatres, 1999, p. 122-123).
Servidão voluntária no Brasil?
A fim de nos voltarmos à servidão voluntária no Brasil, bem como às possíveis contribuições da psicanálise para pensar nossas especificidades, são fundamentais leituras de textos que busquem investigar nossos traços autoritários e nossas desigualdades sociais. Propomos, dentro dos limites deste artigo, percorrer a temática tomando de empréstimo um estudo proposto por Roberto DaMatta (1997) sobre uma sentença conhecida dos brasileiros, você sabe com quem esta falando?.
DaMatta localiza a expressão como rito autoritário, traço de uma separação social. Pelo reconhecimento e presença intensiva e extensiva da sentença na pesquisa de campo realizada pelo autor, ela parece realmente implantada, ao lado de outros ritos, como o carnaval e o futebol. Fato demonstrado pela clareza com que todos os informantes do inquérito feito para a coleta de dados se referiam à sentença com múltiplos exemplos de usos. Um detalhe que chamou a atenção do autor foi a enorme coerência entre as falas, marcadas por uma grande preocupação com o social.
Característica curiosa desse rito: distintamente do samba e do futebol, a sentença é vista como recurso escuso e, portanto, não é exibida com orgulho para crianças e estrangeiros. Tampouco foi levada a sério no quadro de reflexões eruditas ou do senso comum. Ela seria parte do “mundo da rua”, merecendo distância do lar e de nossos pensamentos sobre nosso universo social. Longe de ser vista como parte de valores estruturais brasileiros, ela é tomada pelos participantes do inquérito como traço pessoal indesejável.
Outro aspecto importante da sentença é que ela indica uma situação de conflito. DaMatta (1997) ressalta: “como toda sociedade dependente, colonial e periférica, a nossa tem alto nível de conflitos e crises”. No entanto, que a crise esteja presente não indica que se reconheça sua existência e, para o autor, a sociedade brasileira parece contrária ao conflito, já que é fundamental para ela a preocupação com manter o lugar de cada um. Como o conflito indicaria para nós fraqueza, “presságios do fim do mundo” (p. 183), teríamos dificuldade em assimilá-lo como parte da nossa história, Quando a obediência a uma engrenagem de hierarquias e autoridade é rompida, o movimento segue corrigindo as irregularidades para as quais o conflito aponta. Para o autor, o conflito é então tomado como revolta, localizado e resolvido pessoalmente. Com isso, em todos os níveis, o foco na pessoalidade mantém o sistema de exploração.
Da coleta de dados para o estudo o autor concluiu que há a regra que nega e impede o uso da sentença, mas há uma prática que estimula seu uso. Isso evidenciaria outras duas tendências que se apresentam nesse rito social brasileiro: a separação entre regra e prática e a presença de duas concepções do contexto nacional. Uma delas é a integração e a cordialidade (face que queremos visível), a outra é feita de categorias exclusivas, vistas, por exemplo, nas deferências (que esconderíamos).
Interessante notar que o uso do você sabe com quem está falando? não se limita a um grupo ou segmento social específico. De modo semelhante à clivagem delimitada por Reich, se a base econômica determina um padrão de vida, ela não define as relações morais. A sentença serviria como identificação por projeção social quando se trata de grupos inferiorizados socialmente assumindo a posição de um patrão ou chefe diante de um « igual ». Esse detalhe se refere a nossa sociabilidade baseada na intimidade e em valores morais como a consideração e o favor, o que possibilitaria “uma hierarquização contínua e múltipla de todas as posições do sistema” (p. 192), compensando diferenças sociais conflituosas por meio de classificações morais que mascaram a base econômica: há patrões bons e maus, que consideram ou não seus empregados. Do mesmo modo, o esqueleto hierárquico é ainda reforçado pela diferenciação entre iguais, conforme demonstra seu uso difundido entre sujeitos do mesmo segmento social.
Para o autor, seria permitido a todos o uso da sentença e sempre haverá alguém pronto a usar e a receber o você sabe com quem esta falando?. Esse instrumento é marca de uma sociedade baseada nas relações pessoais, que penetram espaços não preenchidos pelo Estado e pela economia. Constitui-se também como herança do “problema infernal do igualitarismo jurídico entre negros e brancos, senhores e escravos, apresentado pela Abolição” (p. 199). Se até hoje na prática essa igualdade não se apresenta, a questão incrementou o uso da sentença organizadora dos lugares de cada um. Quando uma lei geral e impessoal pretende instaurar um campo de igualdade sem levar em conta a segregação cotidiana, ao passo em que foraclui ser ela mesma uma invenção associada à dominação europeia, ela parece logo entrar em segundo plano para dar lugar a contra-hábitos hierarquizantes a fim de manter as diferenças.
Pensar sobre a servidão voluntária no Brasil é impossível sem tratar de nossas raízes coloniais e das marcas indeléveis da escravidão, as quais constituíram uma sociabilidade baseada na desumanização do outro. O estudo do uso do você sabe com quem está falando? visita pela via do cotidiano e do « desimportante », ao gosto da psicanálise, as bases violentas de nossas relações, referidas, sem dúvida, à colonização e à escravidão.
Proponho pensar a servidão a partir das misturas, ambiguidades, paradoxos. O uso do sabe com quem está falando?, por exemplo, tem inúmeras nuances, fala da importação de valores modernos ocidentais como indivíduo, liberdade, igualdade, unidos à pessoalidade, o que pode fazer a lei “ impessoal” ser aplicada somente ao outro que não reconheço como meu semelhante. Nesse sentido, nos dedicaremos ao nosso tema de pesquisa levando em conta a lição freudiana da hibridez, presente na sua matéria-prima, o inconsciente, e em seus conceitos (Ayouch, 2019). A identificação como conjunto de traços é um exemplo da busca por conceitos que apreendam a complexidade daquilo que se estuda.
Talvez isso possibilite pensar como essa sociedade, caracterizada como avessa ao conflito, se entregou recentemente à agressividade pouco velada. Temos a impressão de que pouco restou da violência condensada em uma sentença cuja forma interrogativa parece sinalizar um rastro de incômodo. Circula a ideia de que, recentemente, algo se rompeu nos nossos acordos sociais em seu trabalho de tentar mascarar conflitos. Dissemos acima que uso do você sabe com quem está falando? pode ser reação a um sinal de ruptura, a um embaralho dos códigos de obediência à hierarquia. Surge quando aquele que se toma por superior entende estar diante de uma revolta. É preciso tentar compreender o que constituiu para nós atualmente essa revolta, o que não se pôde mais recalcar, sem esquecer das reações às contenções rompidas hoje.
Considerações finais
Numa perspectiva lacaniana, o acesso à palavra, possibilidade de circular a fala, é capaz de distanciar o gozo de sua dimensão mortífera (Kehl, 2002). Falar pressupõe um interlocutor, portanto circulação da fala, potência de desarticulação do Um, possibilidade de destinos outros. A partir das colocações expostas neste texto, pensamos ser possível tentar tirar múltiplas consequências da seguinte passagem da Psicologia de massas e análise do eu (Freud, 1921/2011): “o homem é animal de horda, não de rebanho” (p. 83). Lembremos, com ela, que o ato mítico inaugural da humanidade, na horda primeva, comporta a destituição de um poder absoluto, tirânico.
É preciso descolar ainda mais essas análises, nascidas no contexto europeu, a fim de pensar como elas poderiam ajudar a pensar nossa atualidade. O que mantém para nós superobediências? E quanto às resistências às tiranias cotidianas e à tentação autoritária que nos assombra e constitui historicamente uma importante base dos laços sociais no Brasil, facilitando identificações com o Um e dificultando horizontalidades?
Se nossos acordos que pretendiam apaziguar (claro, sem fazer desaparecer) conflitos deram lugar, para muitos, a um encontro com o real da violência cotidiana, resta nos perguntar por quais meios fazemos frente à possibilidade de destruição coletiva. Poderemos um a um desobedecer?
NOTA
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Projeto de pós-doutorado Psychanalyse et politique: la servitude volontaire au Brésil, orientado pelo Prof. Dr. Thamy Ayouch (Université de Paris) durante o ano de 2020.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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FONTE
WENDLING, Michelle Menezes. Psicanálise e política: sobre a servidão voluntária. CLÍNICA & CULTURA , v. 7, p. 46-60, 2020.