PSICANÁLISE PÚBLICA: FREUD E O DESPERTAR SOCIAL

Ferenczi, falecido em 1933, acreditava que os psicanalistas que desconsiderassem “as reais condições das várias camadas da sociedade” estariam abandonando as pessoas para quem a vida cotidiana é especialmente dolorosa. Em muitos sentidos, a Viena do início do século se deparou com uma teoria e terapia psicanalíticas menos controversas do que são hoje. Mas desde sua criação e certamente desde sua chegada aos Estados Unidos, clichês contra a clínica cercaram a psicanálise a partir de todo o espectro político. Alguns críticos sugeriam que a investigação psicológica individual impedia a consideração de fatores ambientais e que os estudos psicanalíticos removiam o indivíduo da cultura. Outros fizeram suas carreiras desqualificando a psicanálise como não-científica e puramente ideológica. Os próprios psicanalistas já alegaram que a objetividade clínica demanda distância de políticas e pensamentos sociais. Como observado por Wilhelm Reich, um dos teóricos mais afiados do campo, ‘o conflito no interior da psicanálise a respeito de sua função social era enorme, muito antes de qualquer um poder percebê-lo.’ Mas Ferenczi e Freud reconheciam esse conflito e, por volta de 1910, iniciaram uma estratégia corretiva de longo alcance. Entre as mudanças radicais provocadas pela Primeira Guerra Mundial, posições políticas anteriormente depreciadas se tornaram repentinamente dominantes dentro do movimento psicanalítico como em outros lugares, enquanto as primeiras repúblicas austríaca e alemã seguiram um caminho rochoso para se tornarem estados constitucionais. Em 1918, Freud poderia simplesmente reafirmar os princípios de 1913 que sistematizaram sua abordagem anterior à guerra a respeito do pagamento dos pacientes, mas ele previu que a história da teoria psicanalítica repousaria, em última instância, na história de sua prática. As novas democracias exigiriam do trabalho dos psicanalistas, como de outros profissionais, maior envolvimento e engajamento público. Assim, Freud defendeu uma visão alternativa e não-tradicional (mesmo para aquela época) das obrigações sociais coletivas da psicanálise. O discurso de Budapeste* sobre ‘a consciência da sociedade’ refletiu o despertar pessoal de Freud para a realidade de um novo contrato social, um novo paradigma cultural e político (…)”
 
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Trecho de Freud’s free clinics: psychoanalysis and social justice 1918-1938, de Elizabeth Ann Danto.
Tradução livre – Clínica Pública de Psicanálise, SP.
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* Excerto de Caminhos da terapia psicanalítica, de Freud, 1919 [Obras completas, volume 14, Companhia das Letras]

 
Por fim, quero abordar uma situação que pertence ao futuro, que para muitos dos senhores parecerá fantástica, mas que, a meu ver, merece que tenhamos o pensamento preparado para ela. Os senhores bem sabem que nossa ação terapêutica não é muito extensa. Somos apenas um punhado de pessoas, e cada um de nós, mesmo trabalhando esforçadamente, pode se dedicar apenas a um número escasso de doentes. Na abundância da miséria neurótica que há no mundo, e que talvez não precise haver, o que logramos abolir é qualitativamente insignificante. Além disso, as condições de nossa existência nos limitam às camadas superiores da sociedade, que escolhem à vontade seus próprios médicos, e nessa escolha são afastadas da psicanálise por todo gênero de preconceitos. Para as amplas camadas populares, que tanto sofrem com as neuroses, nada podemos fazer atualmente.
 
Agora suponhamos que alguma organização nos permitisse aumentar nosso número de forma tal que bastássemos para o tratamento de grandes quantidades de pessoas. Pode-se prever que em algum momento a consciência da sociedade despertará, advertindo-a de que o pobre tem tanto direito a auxílio psíquico quanto hoje em dia já tem a cirurgias vitais. E que as neuroses não afetam menos a saúde do povo do que a tuberculose, e assim como esta não podem ser deixadas ao impotente cuidado do indivíduo. Então serão construídos sanatórios ou consultórios que empregarão médicos de formação psicanalítica (…) Esses tratamentos serão gratuitos. Talvez demore muito até que o Estado sinta como urgente esses deveres. As circunstâncias presentes podem adiar mais ainda esse momento. Talvez a beneficência privada venha a criar institutos assim; mas um dia isso terá de ocorrer.
 
Mas, como quer que se configure essa psicoterapia para o povo, quaisquer que sejam os elementos que a componham, suas partes mais eficientes e mais importantes continuarão a ser aquelas tomadas da psicanálise rigorosa e não tendenciosa.”

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