Uma política da loucura para (re)atualizar e renovar a agenda da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial

Uma política da loucura, organizado por Anderson Santos, marca o início da correção de uma injustiça, ou o início de uma reparação política, ética e epistemológica, no contexto não apenas da reforma psiquiátrica brasileira, mas também de outras experiências internacionais no campo da psiquiatria e afins. Isso porque François Tosquelles, personagem central deste livro, foi, sem dúvida alguma, um dos protagonistas de um processo de transformação inovador e radical no campo da psiquiatria e, embora tenha se tornado referência e fonte de inspiração em muitos outros processos, não teve o reconhecimento que merecia.

A experiência que viria a ser internacionalmente conhecida e reverenciada como psicoterapia institucional nasceu e foi batizada por seu mentor como coletivo terapêutico, denominação similar à comunidade terapêutica de Maxwell Jones. Os elementos comuns a ambas, que vão além da simples denominação, forneceram algumas das bases para o processo de reforma psiquiátrica no Brasil. E não é demais ressaltar que as atuais “comunidades terapêuticas” religiosas que encontramos hoje no país, em grande parte de cunho manicomial, fundamentalista, conservador e repressor, em suma, antidemocráticas e antilibertárias, com uso problemático de substâncias, não têm nenhuma similaridade com essas a que nos referimos aqui. Pelo contrário, podem ser consideras opostas e revelam uma fraude ideológica, ética e política flagrante!

Este livro nos possibilita conhecer em detalhes o pensamento, o trabalho e a ação política de François Tosquelles, médico catalão que se refugiou no sul da França em decorrência da Guerra Civil Espanhola e acabou produzindo uma rica transformação das instituições psiquiátricas manicomiais e construindo uma nova visão sobre a loucura e o sofrimento humano. Um dos méritos que devemos reconhecer a Tosquelles foi promover o protagonismo dos internos no enfrentamento e na gestão de suas próprias condições, envolvendo-os tanto nas questões político-institucionais quanto nas questões clínicas de seu tratamento.

Admirador do psiquiatra alemão Hermann Simon, Tosquelles considerava necessário cuidar não apenas dos pacientes, mas também da instituição. Esse princípio se tornaria referência central de sua experiência e teria motivado o psiquiatra Georges Daumezon e o interno Philippe Koechlin a propor, em artigo publicado em 1952 em uma revista portuguesa, a noção de psicoterapia institucional, denominação que consagraria historicamente os ideais de Tosquelles.

Na prática, além da utilização da psicanálise para pensar sobre os mecanismos e os conflitos institucionais que se manifestam em práticas perversas, impessoais, burocráticas e estereotipadas, ou para propriamente (re)inventá-la e ressignificá-la, o ponto estratégico seria a possibilidade de reforçar o protagonismo dos sujeitos envolvidos na instituição. Não apenas tratar os sujeitos como pacientes, como objetos da ação psiquiátrica, mas tratá-los também como protagonistas, como sujeitos de direitos de sua própria história.

A formação crítica e a prática de inspiração marxista de Tosquelles ajuda-nos a compreender suas atitudes revolucionárias. Militante da União Socialista da Catalunha, do Bloco Operário e Camponês e do Partido Operário de Unificação Marxista (POUM), além de tantas outras ações e envolvimentos políticos, Tosquelles transportou para sua prática na instituição psiquiátrica os princípios libertários e democráticos pelos quais lutava no campo da luta política em geral.

No hospital de Saint-Alban, Tosquelles iniciou um trabalho de resgate do potencial terapêutico que acreditava estar na base dos primeiros hospitais psiquiátricos, tais como propostos por Philippe Pinel e Jean-Étienne Esquirol, enquanto lugares de tratamento e cura. Esses hospitais teriam sido desviados de seus objetivos pela precariedade, especialmente em tempos de guerra e domínio capitalista, e pela falta de novas propostas terapêuticas.

A “terapêutica ativa” de Hermann Simon, aliada à psicanálise, viria a apontar o percurso por onde seguir a partir da análise da própria instituição e do envolvimento real dos internos enquanto sujeitos. Simon esteve na base tanto da psicoterapia institucional como da comunidade terapêutica, que são mais ou menos contemporâneas. No Brasil, ele influenciou o pensamento e o trabalho de Nise da Silveira, desde a fundação, em 1946, do Serviço de Terapia Ocupacional e Reabilitação (STOR), no Centro Psiquiátrico Pedro II – que pouco depois viria a se tornar o Museu de Imagens do Inconsciente. Tosquelles adotou com garra o princípio da terapêutica ativa de Simon, que lhe serviu como uma espécie de passaporte para que sua experiência ganhasse reconhecimento internacional. O trabalho de Tosquelles mostrou que era possível uma transformação profunda do campo psiquiátrico a partir da ressignificação das relações entre as pessoas, independentemente de sua inserção na instituição, e da própria instituição, entendida como um conjunto de práticas, saberes, concepções e dispositivos que produzem e reproduzem formas de ver e agir.

Os resultados positivos e alentadores da experiência da psicoterapia institucional permitiram a antecipação de um debate bastante crucial, que se mantém vivo e talvez esteja mais fortalecido do que nunca, dado o crescimento assombroso da indústria farmacêutica e sua ascendência, ou mesmo dominação, sobre as instituições psiquiátricas de formação, pesquisa, produção de conhecimento e práticas assistenciais.

Um dos mitos inventados pela aliança entre a big pharma e a psiquiatria é que as políticas de reabilitação, ressocialização, desospitalização, etc., só foram possíveis graças ao advento dos neurolépticos. Como se sabe, o primeiro neuroléptico utilizado foi a clorpromazina, “descoberta” em 1952. Mais recentemente, a psiquiatria abandonou o termo “neuroléptico” (que significa, grosso modo, “aquilo que controla os nervos” e denuncia uma suposta relação etiológica das doenças mentais como doenças dos nervos) e passou a utilizar, como estratégia de marketing, o termo antipsicótico (em analogia com os antibióticos, anti-inflamatórios etc., que possuem atuação efetiva na causa ou origem da doença).

O resultado positivo do trabalho de Tosquelles em Saint-Alban vem desmontar o mito propalado pela psiquiatria convencional de que os processos de reforma psiquiátrica só teriam sido possíveis por força dos psicofármacos. Não custa observar que a psicoterapia institucional nasceu na década de 1940 (assim como a comunidade terapêutica), anos antes da introdução do primeiro neuroléptico na psiquiatria, e que a mera descoberta do medicamento não significou produção industrial imediata e utilização em massa, ainda mais em uma época em que existiam poucas farmácias e parcela significativa delas era de manipulação.

Mas por que minha insistência nesse debate? Porque os bons resultados obtidos em Saint-Alban, a partir do envolvimento dos internos nos assuntos da instituição, da criação de espaços de participação, da construção coletiva de iniciativas (como o clube criado por Paul Balvet) etc., provaram que o fundamental não seria a medicação, não seria o combate ao sintoma como algo indesejável a ser extirpado – e foram muitas as tentativas bárbaras de extirpação dos sintomas pela psiquiatria, como a lobotomia, a malarioterapia, os choques insulínicos, a eletroconvulsoterapia… O fundamental é a reconstrução dos processos de vida, das relações sociais, das práticas de cooperação, ajuda mútua, reconhecimento, solidariedade, pertencimento, etc.

Devemos a Tosquelles muitas das práticas e propostas que saíram da experiência da psicoterapia institucional e contribuíram para a “psiquiatria de setor”, desdobramento crítico da psicoterapia institucional que foi conduzido inicialmente por Lucien Bonnafé, um dos médicos de Saint-Alban, e viria a se tornar base da política nacional de saúde mental na França. Da psicoterapia institucional vieram muitas das propostas de transformação das práticas de cuidado, escuta, protagonismo e participação social que se tornariam referência para as experiências italiana, espanhola e brasileira e abririam muitas outras possibilidades em vários lugares do mundo.

Por sua démarche política, ética e filosófica, Tosquelles atraiu muitos militantes de várias áreas, de vários campos de luta política, artística e científica. Por Saint-Alban passaram Salvador Dalí, George Canguilhem, Paul Éluard, Jacques Lacan, Lucien Bonnafé, Jean Oury, Frantz Fanon, Félix Guattari e muitos outros que ajudaram a mudar o mundo.

No mais, deixo leitoras e leitores com o belíssimo e contundente texto de Uma política da loucura para que possam desfrutar do próprio François Tosquelles, bem como dos comentários e notas de Anderson Santos.

Desejo-lhes boa leitura, bom proveito e boa utilização nos processos de transformação do campo da saúde mental, reforma psiquiátrica e luta antimanicomial.


Paulo Amarante,

Médico Psiquiatra

Mestre em Medicina Social e Doutor em Saúde Pública, Pós Doutor em Saúde Mental,

Professor e Pesquisador Sênior do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz) e do Centro de Estudos Estratégicos (CEE/Fiocruz)

Presidente de Honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme).


Prefácio de Paulo Amarante, publicado no livro Uma Política da Loucura e outros textos – François Tosquelles, organizado por Anderson Santos, 2024, eds Ubu e Sobinfluencia.

ADQUIRA O LIVRO AQUI

 

UMA POLÍTICA DA LOUCURA, François Tosquelles

ADQUIRA O LIVRO AQUI

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima