REPETIR E INVENTAR SEGUNDO DELEUZE E SEGUNDO FREUD – por Monique David-Ménard

Resumo: Neste artigo, trata-se, por um lado, de compreender até que ponto a existência humana e o pensamento, naquilo que eles têm de inventivo, são feitos de sínteses disjuntivas. E qual tipo de repetição entre os elementos, ligados de maneira não casual, mas não sistemática, supõe esta síntese tão importante no pensamento de Gilles Deleuze. Por outro lado, trata-se de saber se esse conceito de repetição converge com aquele que reclama a psicanálise.

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Se há uma expressão que pode resumir, na filosofia de Gilles Deleuze, o que permite à vida e ao pensamento se inventarem, esta expressão é “síntese disjuntiva”. Síntese disjuntiva é uma ligação de elementos que são aproximados e colocados juntos de uma maneira que inaugura um pensamento ou uma forma nova de existência, pois esses elementos não são homogêneos: eles não podem ser levados à identidade de uma medida comum. Um dos elementos mais simples dessas dessemelhanças inventivas pertence à criação pictórica: quando Van Gogh pinta seu auto-retrato, seu rosto é um girassol que não se parece com ele, um pavor antes nunca visto se inventa por esse “tornar-se girassol” do rosto.

Tal aproximação, que não tem modelo e nem esquema a priori, não é puramente momentânea: essa ligação produz efeitos relativamente duráveis, pois aí um espaço de vida ou um trajeto de pensamento se desenha de maneira inédita. Nem toda disjunção é uma síntese disjuntiva: em certas experiências delirantes, as imagens e os significantes colocados juntos fracassam ao produzir uma síntese, ou seja, um território de ligação que não existia antes de sua presença e relação.

Mas para que uma síntese seja inventiva, para que ela produza um território novo de existência ou de pensamento, é preciso que os termos ligados sejam heterogêneos – eis o sentido da palavra síntese desde Hume e Kant – e que a fórmula de sua ligação seja contemporânea da própria ligação. Tal é o plano de imanência ou de consistência que caracteriza a invenção conceitual na obra de Deleuze. Os conceitos não são a priori como as categorias e os esquemas kantianos – eles inauguram problemáticas. A ideia de Deleuze é que os pensamentos inventivos, como o são as grandes filosofias, juntam os elementos heterogêneos que são ligados por aquilo que ele chama, em Qu’est-ce que la philosophie, de uma “razão contingente”: Kant “junta” uma crítica do Cogito cartesiano; uma teoria do tempo e do espaço; a personagem conceitual, ou seja, o juiz em função indispensável para que a filosofia seja redefinida como crítica; e uma concepção do conhecimento como julgamentos capazes de formular o que faz a experimentação nas ciências. Uma problemática filosófica liga esses componentes que em nada se destinam a serem reagrupados. Eis o motivo pelo qual a razão é aqui contingente; mas trata-se ainda assim de uma razão, ou seja, de componentes cuja ligação se organiza pelo viés de repetições de relações discursivas que a obra produz. O pensamento conceitual se forma por “variações inseparáveis”.

Entendamos o seguinte: os elementos se tornam inseparáveis por variações que a filosofia efetua, e que caracterizam sua problemática. Para variar as relações entre os elementos do pensamento, é preciso repetir, repetir ligações sem modelo definido a priori, tal é a razão contingente.

Esse termo se opõe, segundo Deleuze, àquilo que define a ciência: ligar variáveis independentes por meio de uma razão necessária, ou seja, por funções que determinam a homogeneidade de elementos escolhidos como variáveis. As funções determinam, então, estados-de-coisas; a ciência preocupa-se com a referência desses enunciados, enquanto as problemáticas da filosofia visam à consistência, ligando eventos que são incorpóreos.

No entanto, meu propósito não é o de retomar essa confrontação entre a filosofia e a ciência. Procuro, de um lado, compreender até que ponto a existência humana e o pensamento, naquilo que eles têm de inventivo, são feitos de sínteses disjuntivas. E qual tipo de repetição entre os elementos, ligados de maneira não casual, mas não sistemática, supõe essa síntese: até que ponto a ligação de termos heterogêneos, e que permanecem em uma disjunção, produz um pensamento novo quando se trata de conceitos, e uma nova forma de existência, mais intensa, quando se trata de desejos ou ainda de “devires”, segundo a expressão de Mille-Plateaux?

De outro lado, trata-se de saber se esse conceito de repetição converge com aquele que reclama a psicanálise. Poderíamos descrever o processo de uma análise como a produção, tanto na palavra do analisando quanto nos destinos e transformações de suas pulsões, de sínteses disjuntivas? Poderíamos sustentar que a regressão, em psicanálise, é uma repetição que produz uma ligação típica entre experiências de sofrimento e de gozo que formaram tal sujeito de desejo.

O objetivo de uma cura, com efeito, não é nunca o de simplesmente encontrar a fórmula dessas repetições, mas o de encontrar arranjos inéditos, menos custosos em sintomas, entre os componentes pulsionais e significantes que desenharam o plano de imanência sobre o qual se desenrola uma existência. A vertente positiva da repetição em psicanálise é uma síntese disjuntiva?

As repetições em Deleuze

No estado acabado de seu pensamento – tomemos como referência 1995, o ano de Qu’est-ce que la philosophie? –, Deleuze faz menos referência à psicanálise do que quando ele formava seus conceitos: em 1963, Présentation de Sacher Masoch desvendava os elos arbitrários que unem duas formações de desejo distintos. E em 1968, Différence et répétition dava as grandes linhas de uma filosofia do tempo e do pensamento como potência diferenciante.

No entanto, como uma síntese é uma ligação, e como uma síntese disjuntiva é uma ligação que valoriza em vez de anular a disparidade dos termos que ela junta, há uma notável continuidade, em Deleuze, entre o período de seu debate com Freud, Lacan, Melanie Klein e o seguimento de sua obra, francamente polêmica, contra a psicanálise, ou a ela fazendo referência de maneira mais discreta.

Descrevamos esse encontro em forma de debate freqüentemente violento com Freud: toda vida, todo desejo, todo pensamento, segundo Deleuze, abre seu caminho – ele dirá mais tarde ‘traça seu plano de imanência” – graças a três repetições que são modos de ligações de nosso corpo, de nossos afetos, de nossos pensamentos: a primeira ligação é a do hábito. Viver, desejar, pensar, é tornar presentes ao mesmo tempo elementos que formam o que o filósofo chama de “presente vivo”. O hábito é uma síntese passiva que efetua junções para um “sujeito larvário”: 

Todo organismo está em seus elementos receptivos e perceptivos, mas também em suas vísceras, uma soma de contradições, de retenções e de esperas. No âmbito desta sensibilidade vital primária o presente vivido já constitui no tempo um passado e um futuro. Esse futuro aparece na necessidade como forma orgânica da espera, o passado da retenção aparece na hereditariedade celular. (Deleuze 1, p.100)

O encontro com Freud já se marca aqui pela dimensão de prazer alucinatório que acompanha necessariamente essa primeira repetição do hábito:

Nós não nos contemplamos a nós mesmos, mas nós não existimos senão contemplando, ou seja, contraindo aquilo de que procedemos. A questão de saber se o prazer é ele mesmo uma contração, uma tensão, ou se ele está sempre ligado a um processo de relaxamento, não está bem colocada[…] O prazer é um princípio, enquanto excitação de uma contemplação preenchedora, que contrai nela mesma os casos de relaxamento e de contração. Há uma beatitude da síntese passiva e somos todos Narciso pelo prazer que nós experimentamos contemplando, ainda que contemplemos outra coisa que não nós mesmos. Nós somos sempre Actéon pelo que nós contemplamos, ainda que nós sejamos Narciso pelo prazer que nós daí tiramos. Contemplar é subtrair. (Deleuze 1, p.102)

O presente vivo extorque uma diferença da repetição de casos, que, sem esse sujeito larvário do hábito, continuariam somente exteriores uns aos outros. O encontro com Freud consiste em inscrever o prazer no hábito. A crítica de Freud, em compensação, consiste em mostrar que não se compreende, em psicanálise, até que ponto o prazer é um princípio para a individuação biopsíquica. Desde a Présentation de Sacher Masoch, Deleuze mostra que a importância desse romancista para a nossa cultura está no fato de que ele manifesta que o importante, no desejo, não é a procura do prazer. Definir o desejo pela procura do prazer é, por um lado, ter uma concepção muito pobre do prazer como descarga e, por outro, subjugar o desejo a um termo transcendente, o objeto, que é aquilo pelo qual, segundo Freud, o objetivo do prazer se realiza; é, enfim, não compreender que o prazer, ao em vez de ser um puro fato, é um princípio para a vida da alma, como sustenta Freud. E para captar essa função do “princípio” de prazer, é preciso pensar o tempo repetitivo do hábito, primeira síntese disjuntiva.

Mas a linha do tempo assim constituída acorrenta apenas presentes. Ora, nós somos memória: a segunda síntese do tempo, que é também um segundo encontro com Freud, consiste em explorar os elos de Mnémosyne, deusa da memória, e de Eros. Bergson mostrou filosoficamente, em Matéria e memória, de 1900, que a lembrança pura, aquela que constitui nossa singularidade, não é um passado que embranqueceu. Tudo o que nós vivemos comporta, já à primeira vista, uma dimensão de passado sem atualidade, mas que colore nossos presentes a vir quando nossa memória se contrai e investe certos presentes. O que Bergson não disse, mas que Proust, de um lado, e Freud, de outro, destacaram, é que a memória é erótica. A série dos objetos que forma nossos desejos se imagina por repetições que projetam em um tempo mítico, ancestral e edipiano – Freud dizia filogenético e ontogenético, Lacan dirá mítico e estrutural – as figuras dos personagens e dos enredos dos quais somos tributários. Mas aqui ainda, Deleuze está muito próximo de Freud e ao mesmo tempo opera uma crítica da psicanálise. Poderíamos dizer que ele é mais estruturalista que o próprio Lacan, pois coloca que é somente por uma ilusão necessária, um certo efeito de ótica, que o passado da infância é primeiro. Na síntese da memória

Não há termo último, nossos amores não remetem à mãe; simplesmente a mãe ocupa, na série constitutiva de nosso presente, um certo lugar com relação ao objeto virtual, que é necessariamente preenchido por uma outra personagem na série que constitui o presente de uma outra subjetividade, considerando-se sempre deslocamentos deste objeto = x. Um pouco como o herói da Recherche, que, amando sua mãe, já repete o amor de Swann por Odette.(Deleuze 1, p.140)

É então uma ilusão colocar como um princípio que a estrutura de nossos desejos se forma no passado. No entanto, essa síntese erótica da memória tem uma função decisiva na vida de nossos desejos e de nosso pensamento. Nessa procura ilusória de uma origem de nossos amores, desenha-se a estrutura de nossos pensamentos: pensamentos banais, pensamentos de nossos sonhos ou de nossas experiências, mas também estrutura das problemáticas pelas quais se agenciam nossos conceitos. A memória é a arte das questões como o hábito era a arte das esperas:

As questões e os problemas não são atos especulativos que, a este título, permaneceriam totalmente provisórios e marcariam a ignorância momentânea de um sujeito empírico. São atos vivos, investindo as objetividades especiais do inconsciente, destinados a sobreviver ao estado provisório e parcial que afeta, ao contrário, as respostas e as soluções[…]. Mesmo os conflitos de Édipo dependem antes da questão do Sphinx. O nascimento e a morte, a diferença dos sexos, são os temas complexos de problemas antes de ser os termos simples de oposição. Antes da oposição dos sexos, determinada pela posse e pela privação do pênis, há a “questão” do phalus que determina em cada série a posição diferencial das personagens sexuadas. (Deleuze 1, p.141)

Nossa segunda questão será a de nos perguntarmos se a prática da psicanálise pode fazer do passado da sexualidade infantil um mito, como sugere Deleuze desde 1968. Que a pulsão do saber forma em nós a arte das questões, e que toda cura analítica se desenvolve nesse elemento, é incontestável. Seria preciso avançar e dizer que a ideia de separar o passado do presente pela repetição transferencial é um puro mito? E a noção de virtualidade dos objetos de desejo substitui a exigência do trabalho de historiador que um analisando faz? Eis o ponto do debate. Mas antes de colocar os termos de confronto entre a clínica e as teses deleuzianas, convém falar da terceira síntese do tempo segundo Deleuze, que faz também o terceiro encontro com Freud, sem duvida o mais fundamental, e que concerne à pulsão de morte (que Deleuze prefere chamar de Instinto de morte).

Não se compreende bem a relação do amor sexuado com a memória senão quando se atenta para a maneira com que uma potência de morte obriga a vida a se ultrapassar, abandonando a busca das origens: o Instinto de morte, lido na perspectiva do eterno retorno de Nietzsche, é essa capacidade de renunciar, por uma criação, à busca erótica de nossas origens. Deleuze que, aí ainda, lê Freud à sua maneira, está atento a um tema decisivo de Além do princípio de prazer: nas neuroses traumáticas, mas também nas formações do inconsciente nas quais a violência de um evento fez voar pelos ares a organização prévia da psique, há, diz Freud, uma tarefa prévia à procura do prazer. Trata-se de um trabalho de ligação dos elementos de uma experiência quando ela não é mais adquirida. A ameaça do caos, segundo o termo de Deleuze, ou do desligamento, segundo a expressão de Freud, é, por uma de suas faces, um questionamento do princípio de prazer, se este último consiste em encontrar circuitos pulsionais relativamente estáveis que tornem possíveis satisfações parciais. Mas o próprio Freud diz que ao mesmo tempo há, paradoxalmente, uma atração pela destruição de toda organização na própria pulsão. Essa atração é, para Freud, também a condição de toda renovação da vida da alma. Porém, se compararmos as formulações de Freud com as de Deleuze, chocamo-nos pelo fato de que Deleuze é mais unilateral na atenção dada à aproximação do caos. O fato de a síntese ser disjuntiva, o fato de os termos ligados a uma obra ou a uma existência serem heterogêneos e o permanecerem, garantiria o fato de a repetição ser inventiva, em vez de ser prisioneira das potências do idêntico. Freud insiste mais na ambiguidade da repetição, tanto em suas formulações mais especulativas quanto em seus textos clínicos. Trata-se de compreender por que a prática da psicanálise não pode se reclamar unicamente uma concepção criadora da repetição. Poderia-se dizer também: o que produz uma cura é uma sublimação?

Ambiguidade da repetição em psicanálise

Antes de voltar à confrontação dos textos, precisemos com um exemplo como se apresenta na clínica a repetição, segundo sua vertente destruidora e segundo sua vertente inventiva.

A prática da psicanálise consiste em dar, de diversas maneiras, um espaço de transformação aos circuitos de desejos diferentes uns dos outros, mas que um devir ligou e que se cristalizaram em sintomas. Esse rearranjo não é uma unificação, é antes invenção de uma outra relação entre estas séries: séries de representações, ou séries de significantes, na linguagem de Lacan.

Tomemos o exemplo: uma garota jovem, bonita, elegante, muito inteligente e saturada dela mesma, fala muito de sua recente anorexia; sua análise lhe serve para poder voltar ao que se passou com ela nessa experiência extrema, suficientemente grave para que ela seja hospitalizada um certo tempo, e que acompanhou o início de sua análise. No momento em que eu escolho expor, ela passa por estados de angústia ligados ao seu trabalho de pesquisa, estados de angústia análogos àqueles que ela havia atravessado logo antes de parar de comer.

Ela veio dizer que se ela não conseguisse mais trabalhar ela não teria mais existência, e o desafio que a fazia trabalhar até o momento como uma pessoa jovem, da qual seus próximos poderiam se orgulhar, havia se transformado em um outro desafio: o de não ceder à fome que a importunava, e de mostrar aos seus próximos que ela era capaz de transformar seu corpo.

Seu corpo havia então se transformado no teatro de uma louca transformação, é verdade, mas da qual ela não pôde dizer seu excesso senão depois do ocorrido. Ela havia parado de comer depois da morte de uma avó importante na sua vida, pois somente a existência de Mathilde – chamaremos aqui esta garota de Mathilde – havia sido capaz de reunir sua mãe e sua avó, que não se viam havia muitos anos. Ela trabalhava para reuni-las, e sua súbita incapacidade de trabalhar a fazia cair numa experiência de inexistência que ela retomava pegando para si um outro desafio, desta vez alimentar. Ela havia, no momento em que eu relato, declinado sua atração pela doçura dos casacos de pele de sua avó, nos quais ela se roçava freqüentemente depois da morte desta última. Se sua mãe e sua avó esperavam dela que ela fosse o que se chama de “uma boa aluna”, é também porque elas comungavam um rigor extremo que havia marcado todos os anos da existência de Mathilde.

Mathilde, em seu nascimento, adoecia com freqüência, o que exasperava sua mãe, decepcionava seu narcisismo e requisitava repetidas intervenções médicas e cirúrgicas.

No presente momento ela estava bem, mas guardava ainda a exigência de não renegar essa experiência extrema que ela espantava-se de ter completado. O que a angustiava ainda em sua vida era, por um lado, ter dificuldades em superar o desgosto pelo sexo do homem com o qual ela vivia e, de outro lado, o fato de que ela se interrogava sobre a saída, desta vez, das angústias em seu trabalho.

Ela sonhou com esta situação: “Eu estava no hospital, e uma enfermeira, que era também relojoeira, me dava um medicamento, doliprane”. No hospital, comenta ela, “durante a anorexia, não tínhamos direito a medicamentos. Curiosamente, o meu relógio havia parado durante minha estadia no hospital. Quem havia me dado o relógio era o meu avô, logo após a morte de minha avó, que havia acontecido praticamente no dia de meu aniversário. Eu havia retornado recentemente com meu avô à relojoaria onde ele comprara o relógio, pois desta vez ele estava funcionando, mas um dos ponteiros estava quebrado. Eu tive esse sonho após a última sessão, na qual eu falei sobre a maneira pela qual as minhas angústias pelos meus estudos entravam no lugar da angústia de estar doente e de estar nas mãos de médicos, pois em minha casa, tínhamos o direito de nos angustiarmos pelos estudos, mas não pelo resto. Minha mãe estava muito decepcionada por ter uma filha doente. Ora, o que era importante para mim era o medo de estar nas mãos de médicos. Eu me lembro da angústia da anestesia, de quando me colocavam uma máscara de clorofórmio e eu desmaiava. Era este momento que me aterrorizava: a perda da consciência”. Ela acrescenta, sem transição: “é como quando o esperma escorre entre minhas pernas e eu nada posso fazer para impedir. Um desmaio”

A significante série doença–estudos–julgamento da mãe e da avó, que foi por muito tempo a única maneira de existir sob o modo de um desafio, se colocava subitamente em relação com a sua vida de mulher: gozar do sexo de um outro que lhe deixa escorrer esperma é impossível. A experiência da doença se colocava em relação inédita com o sexo por essa criação que aproxima o que não é semelhante: estar adormecida para uma operação e passear com o esperma escorrendo entre as pernas. O mesmo “nada posso fazer” insuportável. O mesmo e contudo não-mesmo, logo, ligação de experiências heterogêneas e que a permanecerão, forjando a cor da vida sexual de Mathilde. O fato de ter podido sentir o que, para ela, era o mesmo receio – o de ser anestesiada e o de gozar pelo sexo de um outro – libertava-a de repente da angústia de não poder trabalhar, criando uma ligação inédita de experiências dessemelhantes – ligação impossível de inventar enquanto o trabalho remetia à doença e a doença ao trabalho. Ora, se isso lhe permitia rir ao invés de levá-la ao desafio de parar de comer, era porque ela jogava com esse non-sense, com essa disjunção do sentido, que aproximava para ela o desmaio da anestesia e o abandono do orgasmo. Ao escutar um analisando, não unificamos nunca o que está ligado, e é o caráter disjuntivo das séries ligadas que faz toda a surpresa e a utilidade dessas metamorfoses ou desses devires do sintoma. Ela liberava sua relação com um homem de sua relação com os médicos, e isso modificava a sua angústia ao mesmo tempo em que a libertava da empresa de sua história: não se tratava mais nem de sua avó nem de sua mãe nesses devires do sintoma, mas de sua maneira de viver as peripécias do sexo sem modelo exterior e prévio.

Acontece que, nessa análise, a síntese disjuntiva que inventa a maneira pela qual se determina a sexuação para um sujeito não é suficiente para dar conta do processo mesmo da cura. Há um duplo aspecto da repetição, e a invenção não é evidente. A potência da invenção pode se destacar das forças destrutivas que se intensificavam nesse período da cura de Mathilde. A partir da junção de uma feminilidade até aí inviável e impensável, ela voltou, com efeito, ao que a havia prendido aos ideais da linhagem maternal. Isso somente é possível graças à transferência, no que ela tem de radical e de arriscado: depois de ter se aproveitado de seu sonho e de associações que lhe permitiam abordar sua vida sexual, ela retornou ao que a impedia até então de ir nessa direção. Ela tinha a impressão de que eu exigia dela na análise aquilo que exigiam na escola, ou seja, que ela viesse a ter sempre um bom desempenho, e que todo momento de fraqueza ou de depressão iria me decepcionar. Ela tinha uma obrigação de resultados e se sentia eternamente abaixo dos ideais exigidos. Aliás, se ela tinha parado de comer no período que seguiu o início de sua análise, era tão somente porque ela repetia a experiência de falhar para com a sua mãe. Quando da morte de sua avó, sua mãe havia deixado o hospital por algumas horas para levar Mathilde até sua casa.

Parar de comer era oferecer uma reparação à sua mãe. Ela a tinha impedido de assistir aos últimos momentos de sua própria mãe, e agora ela acabava de lhe dar um cadáver no lugar daquilo do qual ela a havia privado. Pronunciando essas frases, que lhe faziam reviver o período de sua anorexia, não se pode dizer que ela simplesmente inventava sua existência. O momento da invenção, quando ela começava a fazer junções inéditas entre sua história e sua vida de mulher, não tinha por si só o poder de colocar um termo a essa tentação da mortificação como único meio de existir. E, sobretudo, os momentos de invenção são decisivos somente pelo fato de destacarem-se tendo como pano de fundo o risco da repetição no que ela tem de mortífera. Mathilde tinha parado de frequentar suas sessões de análise durante o período de seu espantoso emagrecimento. Ela retomou contato ao vir me mostrar seu corpo esquelético. Não que ela tenha simplesmente me tomado como sua mãe em uma repetição que Lacan chamaria de imaginária, e que ela teria simplesmente substituído uma figura por outra como duas cópias da mesma imago. Ela tinha antes, nesse desafio que colocava em jogo um risco de destruição dela mesma, um agravante na transferência da destrutividade de seu desejo. Eis a face obscura da repetição, aquela que Freud chamava de pulsão de morte – não para dizer que ela coloca forçosamente em jogo a morte biológica, mas antes porque ela desencadeia esse tipo de ato no qual um sujeito somente consegue manifestar alguma coisa de si mesmo por seus atos paradoxais e marcados pelo excesso, e que arriscam tornar vão seu objetivo de se reconhecer por um ou pelos outros.

O interesse – mas também o perigo – de uma análise é colocar em obra esse aspecto da repetição, circunscrevendo-o no espaço da cura, ou seja, dando a possibilidade, como nos espetáculos de tragédia, de transformar em jogo o reconhecimento da lógica, normalmente não percebida, dos eventos humanos. A cura provoca e contém ao mesmo tempo essa face obscura da repetição, e é nessa condição que as invenções significantes podem se destacar da destrutividade, emprestando desta última certos materiais significantes. As sínteses disjuntivas não se efetuam em quaisquer condições; a repetição transferencial as torna impossíveis, mas elas não são uma propriedade do conceito.

Captamos aqui por que a psicanálise não pode fazer “simplesmente” uma filosofia das sínteses disjuntivas e criadoras, como Deleuze: Freud, em Au delá du principe de plaïsir, constrói seu conceito de repetição aproximando quatro fenômenos que são ambíguos, e não puramente criadores. O primeiro são as neuroses de guerra, nas quais os soldados da guerra de 1914-1918 haviam perdido a inventividade de sua vida de vigília e tinham todas as noites o mesmo pesadelo, que repetia, sem modificação imaginária, a catástrofe real que havia cristalizado sua capacidade em desconhecer suas fragilidades internas. O segundo fenômeno é o jogo bem conhecido das crianças que repetem, brincando, por exemplo, de médico, o que as horroriza, tirando daí um prazer paradoxal. (Poderíamos dizer que a minha analisanda Mathilde foi impedida, pelo seu lugar na genealogia, de brincar de médico.) O terceiro exemplo é o prazer que os adultos têm nos espetáculos trágicos, graças aos quais os seres humanos são capazes, como dizia Aristóteles na Poética, de reconhecer a lógica dos eventos humanos que eles desconheciam em sua vida habitual. Por fim, o fenômeno que permite aproximar os três primeiros é a “reação terapêutica negativa”, ou seja, a maneira pela qual a destrutividade se radicaliza na transferência, sem que estejamos previamente seguros que ela termine em uma recriação da existência. Poderíamos dizer que o dispositivo da cura seleciona essa ambiguidade da repetição. E quando Freud se lança em seguida, em seu texto, sobre o que ele chama de especulação biológica, afirmando que as pulsões, em um período antigo da evolução, caminhavam para a morte pelo caminho mais curto, ele projeta de fato a ambiguidade da repetição  em uma suposta unidade dos processos de desejos sexuais e das leis da vida biológica. Mas essa síntese, que não é seguramente disjuntiva, mas antes metafórica, permite conceber que as pulsões ditas “de morte” – efetuando um trabalho de ligação que ainda não é sexual, como vemos no pesadelo das neuroses de guerra – são, no entanto, pulsões: as sínteses são disjuntivas porque os materiais da sexualidade são emprestados das cenas traumáticas. O sexual empresta do traumático e mascara o desligamento.

Se me parece importante sublinhar a vizinhança entre a destrutividade do desejo na repetição e as reorganizações inventivas que a transferência permite em uma cura, não é simplesmente para defender a especificidade da prática clínica na sua diferença para com o exercício conceitual da filosofia, que decidiria rápido demais, de algum modo, que passamos para o lado da criação. É também para introduzir um elemento de crítica conceitual no pensamento de Deleuze, que está, aliás, apesar da violência dos ataques, tão próximo da psicanálise. Critico o seguinte ponto: Deleuze qualifica de infinita a maneira pela qual os conceitos da filosofia ou os objetos da percepção da arte circulam no caos de partida do qual eles se destacam. Donde a importância de variações inseparáveis que o exercício do conceito coloca e que se desenham, na proximidade do caos, à determinação de uma problemática 

Define-se o caos menos pela sua desordem do que pela rapidez infinita pela qual se dissipa toda forma que aí se esboça. É um vazio, que não é um nada, mas um virtual contendo todas as partículas possíveis, e tirando todas as partículas possíveis, que surgem para tão logo desaparecerem, sem consistência nem referência.. O caos é uma rapidez infinita de nascimento e desaparecimento. (Deleuze 2, pp 111-2)

Encontramos nesse curto texto a alusão à diferença entre ciência e filosofia, já que a primeira se afasta do caos: construindo uma referência para seus enunciados e a segunda o faz desdenhando planos de consistência do pensamento. Duas maneiras diferentes de se reportar ao caos, a ciência desacelera a velocidade pela qual o pensamento aí circula, graças à escolha engenhosa de variáveis independentes ligadas por funções, enquanto a filosofia permanece mais próxima do caos graças a essa rapidez infinita que assinala a disjunção nas sínteses disjuntivas.

Contudo essa noção de infinito, em Deleuze, não considera somente a ciência e a filosofia. Cabe também à arte colocar em jogo esse infinito pelas aproximações inéditas que ela inventa. Trabalhar a dessemelhança é, com efeito, mostrar em pintura como as formas produzem devires com a condição de se aproximar do vazio do caos:

A casa de Manet se encontra ininterruptamente tragada pelas forças vegetais de um impetuoso jardim operado por um infinito monocromo, e a porta-janela, em Matisse, não se abre senão sobre um fundo negro… a figura não mais é o habitante do lugar, da casa, mas o habitante de um universo que sustenta a casa. É como uma passagem do finito ao infinito, mas também do território à desterritorialização (Deleuze 2, p.171)

Em uma criação da arte, não se trata mais de um sujeito, mas de blocos de objetos da percepção, justamente porque o que é colocado junto na síntese é extraído da disjunção do caos. Mas por que chamar de infinito aquilo para o qual a disjunção remete?

Poderíamos responder que Deleuze é leibniziano, que seu infinito é aquele do cálculo infinitesimal, e das diferenças de percepção. Haveria passagem do finito ao infinito, pois a distinção das formas, dos volumes das cores, em uma tela de Matisse, coloca em jogo o fundo, a abolição das formas, das cores, dos volumes. Mas trata-se sempre do mesmo infinito nos três casos considerados (a arte, a filosofia e a ciência).

Se nos referimos ao campo da transferência em psicanálise, não diremos que as sínteses disjuntivas que reorganizam os destinos pulsionais e a organização significante de uma história passam pelo infinito. Insistir sobre a face negativa da repetição, em vez de tomar partido da invenção que circularia “em uma rapidez infinita” no caos, é abordar a destruição interna dos desejos por um dispositivo que confere ao negativo do desejo um caráter lúdico e não metafísico.

A polêmica de Deleuze contra a ideia freudiana e lacaniana do desejo como falta de seu objeto desconhece que o importante, no papel do objeto, é permitir o aparecimento das pulsões de morte: o masoquismo, segundo Freud, consiste menos em ignorar o objeto e a satisfação pelo prazer do que em inventar um exterior no qual as pulsões podem atribuir a própria violência. É porque o dispositivo da transferência é assim limitado que a repetição pode convocar as forças de desligamento sem aí se estragar. A disjunção em uma síntese disjuntiva não faz necessariamente referência a um infinito que unificaria, sob a potência metafísica do Mesmo, a arte, a ciência e a filosofia. Inventar sua existência, mas talvez também pensar conceitualmente, é uma maneira de se desfazer da ilusão do infinito.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DELEUZE, Gilles. Différence e répétition. Paris, PUF, 1968.
_______. Qu’est-ce que la philosophie?. Paris. Minuit. 1995.
_______. Présentation de Sacher-Masoch. Paris. Minuit.1963.
FREUD, Sigmund. Au delá du principe de plaisir. Paris. Payot, 1996.

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Publicado na Revista Discurso (USP), n. 36, Dossiê Filosofia e Psicanálise, 2007.

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