Alguns dias depois da vinda de Jean-Claude Polack ao Brasil, estive conversando com uma colega, ainda jovem no ofício de terapeuta. Ela me deteve por um instante precisando, com urgência, falar de sua aflição. Contou-me a situação inusitada que ela tem vivido atendendo um rapaz que até mesmo os antipsiquiatras não duvidariam em classificar como esquizofrênico. Ao longo de dois anos acompanhando intensamente este paciente, minha colega se familiarizou com a fala delirante do rapaz e tanto o delírio quanto os neologismos se tornaram uma língua que ela pode entender profundamente. Para ela é cristalina a compreensão de que se trata de certificar-se da continuidade do tratamento quando, em determinado momento, o rapaz pergunta se ela pode ajudá-lo a renovar o passe – a carteira que lhe dá direito ao ônibus grátis, uma das primeiras atividades que eles fizeram juntos, logo no início do acompanhamento terapêutico – nos próximos anos.
A angústia de minha colega vem aumentando porque o ano de 2014 se aproxima veloz! E ao longo deste último ano seu paciente veio dizendo, esporadicamente, que em 2014 ele se internará no São João de Deus, o mesmo hospital psiquiátrico onde já esteve anos atrás.
Embora nestes dois anos de acompanhamento terapêutico ele esteja muito melhor psiquicamente do que quando começou (quando o trabalho de minha colega foi indicado, buscava-se uma alternativa à internação que parecia inevitável), ela sabe que o pensamento de internar-se no hospital psiquiátrico em 2014 perdura imutável no interior do rapaz. Concomitante, ao longo deste último ano foi cada vez mais se rachando a certeza antimanicomial de minha colega.
Todo entendimento fornecido pelos fundamentos da Reforma Psiquiátrica, inclusive a justa condenação dos manicômios, que ela compartilha, foi sendo confrontado pela vontade, delicada e firme, de internação demandada por seu paciente. A sensação de descansar da vida-penúria, da família desagregada, do parente crackeiro, redefiniu e fez surgir um inesperado hospital psiquiátrico. Isso, porém, retorceu em minha colega toda sua sólida convicção a respeito dos conhecidos malefícios do hospital psiquiátrico.
A percepção de que o hospital psiquiátrico traria para este rapaz um intervalo no “viver é perigoso” – porque para ele viver pode se tornar MUITO perigoso – foi fazendo que ela se decidisse contra as recomendações teórico-clínicas nas quais sempre se amparou e pelas quais organizou suas concepções e suas condutas. A angústia de minha colega era o resultado de – contra natura – privilegiar sobretudo (ou apenas) a fagulha desejante que seu paciente lampejava. Este rapaz encontra um pouco de ar na atmosfera sufocante do hospício (e não iremos detalhar o conforto que ele diz sentir se está entre outros mendigos como ele, ao invés de se sentir visto todo o tempo pelos pares de tênis daquela gente do CAPS).
Afastada de tudo que poderia servir de referência para minha colega, agora ela se sente sozinha, na solidão típica dos que traçam um caminho não existente, só reconhecível à medida que se executa cada passada. Minha colega sente-se só porque se aventura na novidade de seguir a voz de um sujeito sem fala, seu paciente, à revelia das convenções oficiais, “científicas”.
E, tendo realizado seu retorcimento interior, tendo aberto em si um lugar para a invenção desparametrada de seu paciente, e tendo aceitado o risco da “heresia”, de repente, minha colega se sente completamente perdida: angustiada, ela percebe que se colocou à contracorrente da grande maioria de seus parceiros, outros terapeutas da instituição em que trabalha. Precisa sustentar sua conduta, tecida com o fio do que lhe disse o paciente, mas que contradiz boa parte do que julgamos melhor para tratar as psicoses. Louca? Traidora da causa? Má profissional? Erro clínico?
Por isto, minha colega me deteve querendo conversar a respeito da situação de sentir-se desprotegida diante dos defensores da verdade do tratamento ou de eventuais embaixadores da ideologia reformista que ela relegou a um plano segundo. Ela teme não ser absolvida por seus parceiros, mesmo que ela carregue consigo, como salvo conduto, a garantia de que esta estadia no hospital psiquiátrico desejada pelo rapaz durará, segundo seu paciente, “três meses e quinze dias”…
Este episódio ilustra com perfeição o espírito que envolveu as falas de Jean-Claude Polack durante os três dias em que esteve em São Paulo, no final de junho, para participar do lançamento de seu livro A Íntima Utopia, escrito junto com Danielle Sivadon e publicado pela N-1 Edições.
Jean-Claude Polack recordou a importância de abrir mão do mais caro conceito, o mais arraigado, o mais certo, quando ele se tornou preconceito, porque um outro, nosso paciente, tomando-o para si, alterou-lhe o sentido e a significação. É aí que encontramos o outro e nossa alteridade. Esta posição, para mim, tem o nome de coragem; e de rigor, radicalidade, honestidade, integridade. As mesmas qualidades que Solange, minha colega, revelou ao se manter ao lado de seu paciente, pronta para ir ao hospital psiquiátrico, arriscando-se inclusive na sua segregação institucional. O mesmo espírito que fez Freud fazer a psicanálise.
Jean-Claude Polack é um psiquiatra e psicanalista que transita pelo que se convencionou chamar de psicanálise, de psicoterapia institucional e de esquizoanálise. Acredito que este trânsito nasceu do encontro de Polack com Felix Guattari no início dos anos 1960, quando ambos apoiaram os anticolonialistas algerianos em luta contra o domínio francês. A convite de Guattari, Polack foi a La Borde, onde viveu e trabalhou por 12 anos, desde 1964, e depois continuou sua atividade clínica em Paris – no consultório tanto quanto em parcerias com associações de pacientes.
Jean-Claude Polack faz operar a experiência institucional de La Borde ao pô-la em funcionamento no canteiro em obras da relação a dois, própria da situação analítica. Inspirado pelos vetores da esquizoanálise, o trabalho analítico de Polack é um adensamento e uma intensificação dos processos psicóticos na medida em que é elaborado no âmbito de sua experiência transferencial com cada paciente e seu processo terapêutico singular.
A particularidade da clínica de Jean-Claude Polack é acolher a produção própria do regime psicótico e pensar a partir deste regime, extraindo suas consequências ao máximo. A escuta da língua psicótica, ele a faz como num filme vivo, imagem-movimento que narra e usina mundos improváveis.
Utiliza o arsenal da esquizoanálise para transversalizar as noções de Inconsciente e de Transferência (emprestadas da psicanálise), e as noções em torno do Coletivo (mapeadas pela psicoterapia institucional). Isso resulta em um pensamento atento aos processos mais do que às causas, às linhas mais do que à memória, atento aos odores, aos ruídos, às manchas, à pele, mais do que ao significado; às afetações mais do que às representações; aos corpos-monstros mais do que aos organismos; às comun-idades mais do que às famílias edípicas.
Mais do que reconhecimento do que já é, Polack anuncia uma sensibilidade atenta à latência de um futuro anterior sempre por irromper.
Para onde pode ir o que vem? É mais descoberta e efetuação do que constatação e interpretação; agir tanto quanto escutar. Ele chamaria isso de clínica pragmática: uma inclinação à fabricação no mundo daquilo que é imaginado na sessão, uma tendência a dar forma exteriorizada (Gestaltung) à força pulsional e à energia libidinal. Segundo Polack é exatamente aqui que aprofundamos e alargamos o que Freud começou a pensar como Desejo: começo de toda psicologia individual que é simultaneamente psicologia social, vértice do sujeito e do mundo, ponto de emergência das coisas.
FONTE
Publicado em Boletim Online (JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS) do Instituto Sedes São Paulo, em setembro de 2013.
Maurício Porto é Psicanalista e acompanhante terapêutico. Participante do Curso de Introdução e do Estágio Assistido em Acompanhamento Terapêutico, professor do curso de especialização em Psicopatologia e Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da USP.
Gratidão a Maurício Porto por ser testemunho e traduzir tudo àquilo em palavras.