Sobre a psicanálise em geral, e Lacan em particular – por Vladimir Safatle

Aula 1 do Curso Integral Introdução à Jacques Lacan, realizado na Universidade de São Paulo (USP) em 2009.


Um curso sobre Jacques Lacan no interior de uma disciplina intitulada “Epistemologia das ciências humanas” merece algumas explicações introdutórias. Pois não foram poucos aqueles que insistiram ser a psicanálise uma espécie de “pseudo-ciência” marcada por hibridismos textuais a tentativas de explicações totalizantes que visavam dar conta não apenas dos modos de cura das ditas “afecções psíquicas”, mas (e isto de maneira claramente ilegítima) do sentido de fatos da cultura, das artes, entre outros. No caso de Jacques Lacan, a acusação era ainda redobrada devido ao fato de seu estilo elíptico e recheado de empréstimos vindos da filosofia, da etnologia, da literatura esconder pretensamente a ausência de reflexões diretas sistemáticas de casos e situações clínicas.

Sobre a psicanálise em geral, todos nós conhecemos o cenário atual de sua recepção enquanto prática clínica. Sabemos como, a partir dos anos oitenta e principalmente depois da década de noventa, parecia consensual a noção de que a psicanálise entrara em “crise”. Ultrapassada pelo avanço de novas gerações de anti-depressivos, ansiolíticos, neurolépticos e afins, a prática psicanalítica foi vista por muitos como uma prática terapêutica longa, cara, com resultados duvidosos e sem fundamentação epistemológica clara. Muitas vezes psicanalistas foram descritos como irresponsáveis por não compreenderem, por exemplo, que patologias como ansiedade e depressão seriam resultados de distúrbios orgânicos e nada teriam a ver com noções “fluídas” como “posição subjetiva frente ao desejo”. Por sua vez, a insistência em continuar operando com grandes estruturas nosográficas como histeria, neurose, perversão, melancolia parecia resultado de um autismo conceitual que impedia a psicanálise de compreender os avanços do DSM III na catalogação científica das ditas afecções mentais com suas “síndromes” e “transtornos” relacionados a órgãos ou funções mentais específicos.

Neste contexto, a noção de cura de afecções e patologias mentais parecia enfim encontrar um solo seguro. O desenvolvimento das ciências cognitivas, em especial das neurociências, teria permitido uma certa redução materialista capaz de demonstrar como todo estado mental (crenças, desejos, sentimentos etc.) seria apenas uma maneira fluida, metafórica de descrever estados cerebrais (configurações neuronais) cuja realidade é física. Com isto, estavam abertas as portas para que a própria noção de doença mental pudesse ser tratada como distúrbio fisiologicamente localizável, ou seja, como aquilo que se submete diretamente à medicalização. A clínica, por ter sua racionalidade submetida a uma fisiologia elaborada, poderia, a partir de então, aparecer como o setor aplicado de uma farmacologia.

Mas uma perspectiva epistemológica rigorosa deve se perguntar sobre a natureza dos padrões de normalidade e de patologia que esta redução materialista dos fatos mentais (ou, se quisermos, redução neuronal dos fatos mentais) pressupõe. Esta não é a primeira vez na história do pensamento que reduções desta natureza procuram se impor como se fossem imediatamente evidentes, a despeito inclusive de sua real eficácia clínica (vide, por exemplo, o recente caso do efeito limitado de anti-depressivos de última geração como o Prozac). Esta não é a primeira vez que uma certa noção de patologia como variação quantitativamente identificável em funções e orgãos isolados, como lesão claramente identificável procura se impor. Devemos nos perguntar sobre o que está em jogo nesta retomada de perspectivas que pareciam, há algumas décadas, claramente ultrapassadas. Insistamos um pouco mais neste ponto porque talvez ele nos forneça uma perspectiva privilegiada para compreendermos tanto a importância epistêmica da psicanálise quanto a posição central de Lacan.

Estamos acostumados a pensar que a configuração do nosso saber sobre a doença é resultado direto da eficácia em combater o sofrimento e em re-instaurar a saúde. Um pouco como se a eficácia terapêutica em relação a uma categoria fenomênica extremamente normativa como o “sofrimento” fosse condição suficiente para assegurar a validade de dispositivos clínicos.

Lembremos, no entanto, o que tal perspectiva tem de ideológica. Pois é ideológico todo sistema de saber e de orientação da praxis que procura naturalizar seus dispositivos de justificação, como se estivéssemos diante de “fatos que falam por si mesmo”. Neste sentido, podemos perguntar: afinal, o sofrimento é um “fato que fala por si mesmo” ou é um fenômeno que é levado a falar no interior de contextos sócio-históricos determinados? Podemos, por exemplo, tirar as consequências de afirmações como esta, de Foucault: “Desde o século XVIII, a medicina tem tendência a narrar sua própria história como se o leito dos doentes tivesse sido sempre um lugar de experiências constante e estável, em oposição às teorias e sistemas que teriam estado em permanente mudança e mascarado, sob sua especulação, a pureza da evidência clínica”. Na verdade, tudo se passaria como se : “Na aurora da Humanidade, antes de toda crença vã, antes de todo sistema, a medicina residisse em uma relação imediata do sofrimento com aquilo que alivia”[1]. Tal pressuposição de imediaticidade, no entanto, esquece como “o que nos faz sofrer” muda constantemente de configuração. Pois o “sofrimento” enquanto fato que deva ser submetido a um cuidado clínico depende de disposições normativas variáveis de acordo com contextos sócio-históricos.

Poderíamos tentar dizer que a experiência da dor é algo que ancora o sofrimento em um solo inquestionável e indiferente a contextos. Mas, novamente, não seria difícil lembrar como não há nenhuma relação imediata entre a dor física e o desprazer de um sofrimento vivenciado como doença que leva sujeitos a se submeterem à clínica. Há dores que certos sujeitos procuram como quem procura a manifestação de uma espécie de auto-violência criadora. Basta lembrar aqui das palavras de um “psicólogo”, Nietzsche: “Só a grande dor, esta longa e lenta dor na qual queimamos como madeira verde nos obriga, a nós filósofos, a descer em nossas profundezas e a nos desfazer de toda confiança (…) Duvido que tal dor nos deixe melhor, mas eu sei que ela nos aprofunda”[2].

Se aceitarmos estas posições, temos diante de nós questões que guardam toda sua atualidade. Pois devemos sempre perguntar: o que está pressuposto em afirmações como “alguém sofre de Transtorno Obsessivo-Compulsivo”, “alguém sofre de Transtorno de Déficit de atenção e de Comportamento Disruptivo”, “alguém sofre de Transtorno do Desejo Sexual”? Dentre várias coisas, vale sempre a pena perceber como a doença é compreendida, nestes casos, como um fenômeno de funções órgãos tomados de maneira isolada. Por trás da constituição de patologias que permitem a constituição de diagnósticos e intervenções que privilegiam estruturas sindrômicas (e não propriamente nosográficas), há a crença fundamental de que a doença nada mais é do que alguma forma de distúrbio, transtorno, déficit ou excesso que acontece no nível de funções e órgãos. Isto legitima uma prática que compreende a diferença entre normal e patológico como uma mera diferença quantitativa, como se os fenômenos patológicos fossem, no organismo vivo, apenas variações quantitativas de base fisiológica, o que o vocabulário do déficit expõe de maneira tão clara.

Esta perspectiva, por sua vez, possibilita tanto uma clínica submetida à fisiologia quanto uma terapêutica que se submete de maneira praticamente sem limites à medicalização, já que ela é o caminho mais curto para a regulação de variações quantitativas de base fisiológica.. Pois, a doença aqui nada mais é do que um sub-valor derivado do normal. É a definição do normal como estrutura valorativa positiva que define o campo da clínica.  Esta experiência clínica exige que o normal esteja assentado em um campo mensurável acessível à observação. Tal campo privilegiado é a fisiologia que aparece assim como fundamento para uma clínica que irá se orientar a partir dos postulados de uma anatomia patológica, ou seja, de uma anatomia fascinada pela procura da lesão de órgãos e tecidos como causa explicativa para o desvio da conduta. Neste contexto: “As técnicas de intervenção terapêutica só podem ser secundárias em relação à ciência fisiológica, isto na medida em que o patológico só tem realidade provisória por declinação do normal”[3]. O que nos deixa como uma questão maior: o que deve acontecer a experiência de si mesmo para que a fisiologia possa aparecer como campo de determinação da normatividade da vida, campo de identificação daquilo que deve valer para a clínica como norma?

Estas são questões que podem fornecer uma boa porta de entrada para a reflexão sobre a experiência intelectual de Jacques Lacan. De fato, desde sua tese de doutorado em psiquiatria, de 1932, Lacan insistia na inadequação de perspectivas fundadas nestas reduções materialistas dos fenômenos mentais. É a consciência desta inadequação que o levará a assumir a carreira de psicanalista. É tal consciência que o levará a tentar reconstruir os padrões fundamentais de racionalidade das práticas clínicas através da defesa de um conceito de sujeito não redutível a qualquer forma de materialismo neuronal. Ou seja, quando Lacan decide-se pela psicanálise, logo após a defesa de sua tese em psiquiatria, ele já tem um problema armado que guiará sua experiência intelectual a partir de então. Um problema que guarda uma estranha atualidade, isto se levarmos em conta os desenvolvimentos posteriores da psiquiatria em direção a uma reconstituição de suas práticas a partir da farmacologia.

Neste sentido, sua clínica é resultado de uma discussão cerrada a respeito do verdadeiro paralelismo que expõe a dinâmica e o processo causal das afecções mentais. Não se trata operar simplesmente a partir de um paralelismo estrito e reducionista entre o mental e um corpo reduzido à condição de suporte de determinações fisiológicas, ou ainda, entre o mental e o neuronal. Trata-se de afirmar, desde o início que o verdadeiro paralelismo capaz de determinar a conduta humana é entre o mental e o social. Como dirá Lacan desde seus primeiros textos:

Observamos a conduta de um organismo vivo: e este organismo é o ser humano. Enquanto organismo, apresenta reações vitais totais, que, sejam quais forem seus mecanismos íntimos, têm um caráter orientado para a harmonia do conjunto; enquanto ser humano, uma proporção considerável dessas reações ganha seu sentido em função do meio social que desempenha no desenvolvimento do animal-homem um papel primordial[4].

Ou seja, muito mais do que a natureza imediata, o meio especificamente humano que funciona como determinador causal das suas reações é o meio social: “a ‘natureza’ do homem é a sua relação com o homem”[5]. O que justifica a inclusão das reflexões sobre a clínica dos fatos mentais em um campo amplo de interseções com outras áreas das ditas ciências humanas. Um pouco como se conceitos clínicos fossem construídos não apenas a partir da escuta dos doentes, mas também através da absorção de elaborações que, muitas vezes, são diretamente exteriores a preocupações clínicas, pois vindas da tematização demorada de problemas ligados ao campo da reflexão sobre a cultura, a teoria social e, por que não, a filosofia. Gostaria de mostrar como a experiência intelectual de Jacques Lacan nos demonstra claramente algo desta natureza. O que nos leva a dizer que não há clínica cujos conceitos não sejam forjados através do impacto da experiência sócio-histórica de uma época no interior da nossa definição de normalidade e patologia.

ESTRUTURA DO CURSO

No meu ponto de vista, só é possível dar cabo da maneira com que Lacan elabora sua metapsicologia e pensa sua experiência clínica através de um movimento duplo. Trata-se, primeiro de seguir a trajetória da formação dos conceitos lacanianos centrais. Trajetória complexa, marcada por múltiplos abandonos de rota e retomadas posteriores. Mas trata-se de seguir tal trajetória de formação levando em conta a maneira com que esta elaboração conceitual insere-se no interior do debate francês de sua época. Isto significa reconstruir os debates internos e os processos de importação entre Lacan e os cenários intelectuais dos quais ele participou. Estratégia que acabará mostrando, contrariamente ao que ainda tende-se a aceitar nos meios lacanianos, a relativa autonomia do pensamento lacaniano em relação às elaborações próprias à psicanálise freudiana.

Como vocês perceberam, eu falei aqui de cenários intelectuais no plural. Este é um ponto relevante quando o assunto é a trajetória intelectual de Jacques Lacan. Sua produção estende-se por cinquenta anos, de 1932 até 1980. Nestes cinquenta anos, a França viu, primeiramente, a consolidação de uma fenomenologia receptiva às articulações entre Heidegger e um certo Hegel muito particular, processo capitaneado por Alexandre Kojève e que, de uma certa forma chegou até Merleau-Ponty e Jean Paul Sartre. Ele viu, a partir dos anos 50, o advento do estruturalismo com a antropologia de Lévi-Strauss, a recuperação de Saussure através da linguística de Jakobson, o marxismo de Althusser e a arqueologia filosófica do primeiro Foucault. Por fim, a partir do final dos anos sessenta o cenário intelectual francês abriu-se para aquilo que convencionamos chamar atualmente de ‘pós-estruturalismo’ e cujos nomes mais relevantes são Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Jean-François Lyotard e o segundo Foucault. Pensadores absolutamente singulares entre si mas que teriam em comum uma certa recuperação de temas nietzscheanos e heideggerianos de crítica à modernidade com suas categorias filosóficas e seus critérios de verdade.

A peculiaridade de Lacan vem do fato dele ter sido personagem importante dos três cenários intelectuais. Isto fez com que certos comentadores falassem, por exemplo, de um Lacan I, de um Lacan II e de um Lacan III quase como se eles fossem pensadores independentes. Como se Lacan tivesse começado como hegeliano e fenomenólogo, após tivesse se convertido em estruturalista para finalmente se encontrar em um certo elogio da multiplicidade irreflexiva. Tal leitura parte do pressuposto de que compreender Lacan só seria possível através da identificação de uma série de cortes epistemológicos no interior de sua obra.

A meu ver, trata-se de um erro maior que há muito vem bloqueando um desenvolvimento mais frutífero da leitura de Lacan. Na verdade, é inegável a existência de modificações profundas de cartografia conceitual na trajetória lacaniana. O que nos coloca a questão de saber como ler a obra de alguém cuja trajetória é marcada por uma produção plástica de conceitos na qual alguns conceitos chegam mesmo a ser rapidamente abandonados (como, por exemplo, o conceito de Coisa – das Ding). Talvez, só seja possível ler Lacan se soubermos escutar o ritmo das formações de seus conceitos, o que nos exige estar atentos à pulsação invariante de suas questões centrais. Quer dizer, para além das rupturas, faz-se necessário saber compreender o sentido dos múltiplos retornos de Lacan a motivos que pareciam ultrapassados[6].

É bem provável que o caso Lacan seja um dos mais indicados para nos explicar o sentido da noção de ‘ruptura’ no interior de uma experiência intelectual determinada. Pois a trajetória lacaniana demonstra como uma ruptura deve sempre ser compreendida através de uma perspectiva dupla na qual o ato de ‘recomeço’ só é legível à luz de uma certa ‘permanência’. Não há rupturas absolutas, já que uma ruptura é sempre sintoma de uma situação anterior. No caso lacaniano, tal perspectiva de  análise tem o mérito de mostrar como a peculiaridade de seu pensamento vem da sua capacidade em articular temáticas e quadro conceituais da fenomenologia, do estruturalismo e do pós-estruturalismo. Isto explica, por exemplo, como Lacan foi capaz de articular temáticas aparentemente extemporâneas como ser do sujeito e estrutura, resistência do objeto e primado de uma Lei simbólica com aspirações transcendentais, experiência do real e irredutibilidade do fantasma fundamental.

É a fim de compreender a peculiaridade desta costura que proponho um curso marcado por uma dinâmica historiográfica. Ele será dividido em quatro módulos. Cada módulo será marcado pela leitura de um texto lacaniano e pelo comentário de um conjunto limitado de textos que visam fornecer o quadro do debate intelectual que serviu a Lacan de referência. Os textos escolhidos não são necessariamente os mais significativos de Lacan mas, a meu ver, eles, além de serem extremamente relevantes, oferecem dificuldades menores de leitura se o compararmos a outros.

Nosso primeiro módulo será dedicado à leitura da tese de doutorado Da psicose paranóica em sua relação com a personalidade. Trata-se de um texto injustamente muito pouco lido inclusive por aqueles que se interessam por Lacan. No entanto, ele estabelece um campo claro de problemas e referências que nortearão o desenvolvimento da clínica de Jacques Lacan. Orientada pelo psiquiatra Henri Claude, chefe de clínica do Hospital parisiense de Saint-Anne, a tese não deixava de trazer algumas marcas de seu orientador: era aberta a uma tentativa de articulação entre psiquiatria e psicanálise e insistia na autonomia da causalidade dos distúrbios psíquicos em relação aos fenômenos orgânicos, isto ao menos no caso da análise da psicose paranóica.

A tese de Lacan procurava defender uma perspectiva à época chamada de “psicogênica” e que consistia em afirmar que: “na ausência de qualquer déficit detectável pelas provas de capacidade (de memória, de motricidade, de percepção, de orientação e de discurso), e na ausência de qualquer lesão orgânica apenas provável, existem distúrbios mentais que relacionados, segundo as doutrinas, à ‘afetividade’, ao ‘juízo’, à ‘conduta’, são todos eles distúrbios específicos da síntese psíquica”[7]. Pois: “um delírio não é um objeto da mesma natureza que uma lesão física, que um ponto doloroso ou um distúrbio motor. Ele traduz um distúrbio eletivo das condutas as mais elevadas do doente, suas atitudes mentais, seus julgamentos, seu comportamento social”[8]. Ou seja, tratava-se de uma perspectiva que insistia na irredutibilidade de um certo quadro de distúrbios mentais a toda e qualquer explicação causal de natureza orgânica ou funcional. Quadro no qual encontraríamos, de maneira privilegiada, o que a psicanálise ainda hoje compreende por psicose paranoica.

A fim de analisar o que Lacan compreendia à época por “paranoia” a tese de doutorado mobiliza conceitos maiores que serão desenvolvidos no decorrer do trajeto intelectual lacaniano: gênese da personalidade a partir de processos de identificação, reconsideração das relações entre normal e patológico, sujeito como centro global de condutas, paralelismo entre mental e social. Veremos como este quadro de reflexão fornecerá a base para os desdobramentos futuros do pensamento lacaniano.

A fim de esclarecer os debates que perpassam a tese, eu pediria ainda a leitura da Introdução e do primeiro capítulo de Crítica dos fundamentos da psicologia, de Georges Politzer, do texto “Sobre alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e na homossexualidade”, de Freud e um capítulo da “Psicopatologia geral”, de Karl Jasper, intitulado “As conexões compreensíveis da vida psíquica”.

O segundo módulo será dedicado à leitura de O estádio do espelho como formador da função do eu. Trata-se de um texto fundador da experiência intelectual lacaniana, proferido em 1936, mas cuja versão escrita que se encontra nos Escritos é de 1949. Há três temáticas maiores que indicam  importância deste texto. Da mesma forma, é importante a leitura das sessões do Seminário I copiladas sob o título de “A tópica do imaginário”.

Primeiro, Lacan desenvolve uma teoria dos processos de constituição do Eu, resultante de importações das reflexões da etologia animal sobre o papel formador da imagem, das experiências psicológicas de Henri Wallon e da leitura kojèveana da dialética do Senhor e do Escravo. Tal teoria fornece subsídios à crítica ao Eu como unidade sintética de apercepções ou como sede do sistema percepção-consciência. Esta crítica não visa apenas a concepção freudiana do Eu (que já havia sido objeto de discussão por Lacan na sua tese de doutorado, de 1932), mas fundamentalmente : “toda filosofia diretamente oriunda do cogito”[9]. Ou Daí a necessidade de acompanharmos a leitura deste texto com o comentário de outro: A guisa de introdução, de Alexandre Kojève. Ele servirá também para compreendermos a proximidade entre as concepções de desejo em Lacan e um certo Hegel.

Segundo, Lacan desenvolve uma reflexão fundamental sobre a relação entre experiência de si e imagem do corpo próprio. É através da constituição da imagem do corpo próprio que o sujeito desenvolve uma  instância de auto-referência (o eu). Daí porque Lacan poderá afirmar que: “a imagem especular parece ser o solo do mundo visível”[10]. Neste ponto, faz-se necessário mostrar o debate que Lacan e Henri Wallon desenvolvem a respeito do esquema mental do corpo próprio. Por isto, sugiro também a leitura do capítulo “Consciência e individuação do corpo próprio” do As origens do caráter na criança.

Por fim, tais reflexões sobre o processo de constituição do eu é desdobrada em suas consequências epistêmicas. Lacan deriva da gênese do eu uma teoria do conhecimento onde a função da imagem, a submissão da percepção às projeções narcísicas, assim como a compreensão do objeto como polo de projeções narcísicas são elementos fundamentais. Isto vai nos permitir compreender os conceitos lacanianos de Imaginário e de estrutura paranoica do conhecimento.

No terceiro módulo, leremos um dos textos clássicos de Lacan, A instância da letra ou a razão após Freud, de 1957, assim como as sessões 13,14 e 15 de Seminário II. Este texto marca aquilo que poderíamos chamar de ‘guinada estruturalista’ de Lacan e nele se anuncia algumas operações centrais do pensamento lacaniano, como a definição de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, a releitura do cogito cartesiano, a teoria da linguagem como conjunto fechado de significantes e a noção de cura como abertura à estrutura simbólica de determinação do desejo do sujeito através da dissolução das fixações imaginárias. A compreensão deste texto pede o comentário de alguns escritos-chaves do estruturalismo francês. Eu selecionei dois textos de Lévi-Strauss ; A eficácia simbólica e Introdução à obra de Marcel Mauss, alguns trechos do Curso de linguística geral, de Saussure, dedicados ao problema dos processos de determinação do valor do signo linguístico e o texto clássico de Jakobson “Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia”.

Este período da obra lacaniana é o mais conhecido e ele é o responsável pela imagem, até hoje aceita, de Lacan como responsável pela construção de uma psicanálise estruturalista. Pretendo mostrar como esta imagem é absolutamente parcial e que, desde o início, o estruturalismo lacaniano foi ‘impossível’ devido às determinações contraditórias que ele suportava. Na verdade, pretendo mostrar como Lacan nos forneceu algumas das críticas mais perspicazes do estruturalismo. Este ponto, Lacan como crítico do estruturalismo, será o eixo do quarto módulo. Um bom exemplo de interpretação clínica construída a partir de chave tipicamente estruturalista pode ser encontrada no texto “O sonho do Licorne”, presente no livro “Psicanalisar” do então discípulo de Serge Leclaire.

No entanto, é certo que a partir deste momento, Lacan tem as condições para sintetizar os dois operadores centrais que irão estruturar os processos de simbolização do desejo no interior da clínica, a saber, o Nome-do-Pai e o Falo. Boa parte deste módulo será dedicado à explicação do sentido e natureza destes dois operadores, assim como as questões por eles suscitadas. Para tanto, leremos a intepretação feita por Lacan do caso freudiano do pequeno Hanns, tal como aparece no seminário IV, As relações de objeto. Para tanto, uma leitura do texto freudiano, Análise da fobia de um garoto de cinco anos, se faz necessária.


NOTAS

  1. FOUCAULT, O nascimento da clínica, pp. 59-60
  2. NIETZSCHE, A gaia ciência – introdução
  3. CANGUILHEM, O normal e o patológico, idem, p. 42
  4. LACAN, Jacques; Da psicose paranóica, pag. 247.
  5. LACAN, Jacques; Au-delá du ‘principe de réalité’, pag. 88. Esta perspectiva intersubjetiva será complexificada quando Lacan introduzir a noção de Outro simbólico, conceito distinto do outro  imaginário. Ver, principalmente, o texto: Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano.
  6. Il y en a plusieurs exemples de ces retours. Ainsi, par exemple, la figure de la parole pleine revient dans la séance du 10/03/71. De la même façon, la notion de ‘personnalité’ est reconfigurée en 1974, à l’occasion d’une conférence à Rome (Le discours analytique)
  7. LACAN,Jacques; Da psicose paranóica em sua relação com a personalidade, pag. 1. Décadas mais tarde, Lacan se afastará de sua postura psicogênica de juventude, como podemos ver nas primeiras páginas do Seminário III. Mas, neste caso, não se tratava de a noção de uma causalidade não redutível a processos fisiológicos. Tratava-se, na verdade, de tomar distância da noção de relação de compreensão, tal como desenvolvida pelo psiquiatra e filósofo Karl Jasper. Noção fundamental para a constituição da perspectiva psicogênica à época.
  8. LACAN, idem, p. 105
  9. LACAN, Escritos, p. 96
  10. idem, p. 98

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