A SOBREVIVÊNCIA DA PSICANÁLISE – Mesa redonda com Armando Suarez, Félix Guattari, Robert Castel, Chaim Katz e Betty Milan

Mesa redonda realizada em 1978 no SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE, GRUPOS E INSTITUIÇÕES, Rio de Janeiro/RJ. Com a participação de Armando Suarez, Félix Guattari, Robert Castel, Chaim Katz, Betty Milan (Participa como plateia)


Chaim Katz: A mesa redonda de hoje diz respeito ao tema de hoje: “A Sobrevivência da Psicanálise”. Se vocês notaram, as quatro pessoas que vão falar têm posições bastante distintas entre si. Não se trata de estabelecer um confronto gratuito ao modo de um espetáculo, mas apenas de colocar posições, umas diante de outras. Eu queria dizer porque nós talvez tenhamos alguns conflitos que poderão aparecer, mas os conflitos fazem parte da ciência, apesar de alguns epistemólogos acreditarem que não. Não obstante, Nietzsche ensinava que a verdade era uma faísca que surgia do choque entre duas espadas. O primeiro a falar será Armando Suarez, depois Guattari, em seguida Castel e depois eu. O público poderá intervir quando terminarmos. Nós gostaríamos que se fizesse uso do microfone que está à disposição. Pediríamos que, por uma questão de ordem, as pessoas se levantassem e se expressassem imediatamente. Se quiserem interromper um dos oradores, se acharem que é muito importante, também poderão fazê-lo. Com a palavra Armando Suarez. 

Armando Suarez: Boa tarde, caberá a mim abrir este diálogo que poderá derivar, não necessariamente degenerar, em um debate. Vou tratar de ser breve e clarificar, em primeiro lugar, a mim mesmo e depois a vocês e com vocês, a problemática que subjaz ou designa o título da sessão de hoje. O título poderia ser quase uma adivinhação, poderia ser um convite, se não, uma tentação à profecia. E, se aceitarmos delinear alguns dos aspectos maiores do problema, talvez possamos evitar esse impasse. O futuro da psicanálise, invertendo a ordem dos termos, poder-se-ia pensar que se entende por psicanálise, já que se trata de seu futuro. E o que é psicanálise? É a primeira questão de delimitação extremamente difícil. Segundo Freud, que tinha alguma razão em saber do que falava, já que fundou a psicanálise, dá-se o nome de psicanálise, primeiro, aos métodos para descobrir, tornar inteligíveis, certos fenômenos mentais, psíquicos, dificilmente acessíveis por outro caminho. Em segundo lugar, uma técnica terapêutica para o tratamento de determinadas afecções mentais, transtornos psíquicos. E, em terceiro lugar, uma doutrina elaborada, uma teoria construída a partir dos dados obtidos pela aplicação do método, privilegiadamente no campo clínico de sua aplicação terapêutica. Supondo que essa definição, que já dá três sentidos cujas articulações entre si são questionáveis, esteja omitindo uma quarta definição da psicanálise que é tão importante quanto – se não, mais do que – as outras três, que é a dimensão da psicanálise em prática social, prática social essa desenvolvida por agentes sociais que têm um lugar na sociedade, que são produzidos como tais agentes executores dessa prática, produzidos mediante métodos de treinamento, de habilitação, de consagração, inclusive, e que estão em certas instituições que, por sua vez, estão relacionadas a outras instituições em uma rede das mesmas. Instituições que pertencem a uma ou várias formações sociais articuladas de alguma forma e que necessariamente, inevitavelmente, têm uma imanência com a estrutura sócio-político-econômica da sociedade. Depois, pelo menos essas quatro dimensões da psicanálise deverão ser consideradas para questionar o futuro da psicanálise, porque este porvir poderia ser o da teoria, do método, ou a técnica, ou o das suas aplicações terapêuticas. De qualquer forma, a quarta dimensão entra necessariamente nas outras três, já que as práticas teóricas, metodológicas e terapêutico-clínicas, se dão em um espaço social, institucional, em relações de poder. Qual é o futuro das quatro dimensões e de cada uma delas? Bem, o problema da antecipação do futuro é assunto dos profetas, no mau sentido, habituados à palavra, quer dizer, aqueles que predizem e determinam o que ocorrerá no tempo, a respeito de um processo, de um acontecimento, ou de uma estrutura. Pode-se pensar em curto, médio e longo prazo. O futuro, desde que se trata de uma prática social, está inegavelmente ligado ao futuro da sociedade onde essa prática se dá. Creio que não podemos pensar no futuro da psicanálise em longo prazo, a menos que nos dediquemos à especulação do futurismo. Falo de longo prazo, pelo menos além de minha morte (que não está muito longe, não me dou mais de vinte anos de vida, mais será ganância), porque tudo depende do futuro do mundo. Evidentemente, se houver uma conflagração atômica, regressaremos todos à barbárie, tudo o que é psicanálise, uma porção de coisas não sobreviverão. O problema do futuro da psicanálise seria então algo que, em médio prazo, 20, 30, 50 anos, seria considerado indissoluvelmente ligado ao que será a evolução do mundo. Refiro-me ao mundo dos homens, do nosso planeta, se vamos para o socialismo ou ao ultracapitalismo, se vamos regressar à barbárie ou continuar na luta por uma civilização democrática. Mas creio que o problema assim delimitado pode ser explorado em um prazo médio e curto, só se tendo em conta essas quatro dimensões. E os psicanalistas, levando em conta essa quarta dimensão, estão incumbidos de ter o método, a terapia e a teoria psicanalítica como algo viável e que possa sobreviver às mudanças históricas que a psicanálise não vai certamente produzir e fará bastante se não as obstaculizar. Sua ingerência segundo creio, ainda que não desdenhável, não é portadora de nenhuma revolução social, embora alguns psicanalistas se arroguem esse papel, que diz mais acerca de sua megalomania que dos títulos que a psicanálise possa reivindicar para si mesma. Então, há necessariamente que realizar um trabalho, e para isso estamos aqui, dialogando com vocês, representantes de posições divergentes a respeito da psicanálise, tendo definido formalmente, como fazia Freud, que a psicanálise, as teorias psicanalíticas, os métodos, as terapêuticas psicanalíticas, também são múltiplas. A esse respeito, o estatuto da psicanálise, com todas as instâncias que se há de conservar e enfatizar, pode-se dizer que tem certas analogias com a sorte do materialismo histórico, que pretende ser um método inteligível da história, que afirma também ser um instrumento de transformação, que elabora uma teoria das metamorfoses sociais, mas que dá lugar historicamente a uma série de movimentos não idênticos, cada um dos quais reclama para si o título de representar a verdade do marxismo e que dá lugar a práxis sociais diferentes que estão em curso, sem que nenhuma vez tenham chegado à conclusão, nem nos países em que aparentemente têm triunfado. Desde o momento em que algumas correntes propugnam uma sociedade democrática direta, até os que interpretam essa doutrina e esse método como uma indicação para tomar o poder do Estado, dentro de cada formação social capitalista, para transformar, desde aí, as estruturas da sociedade. Creio que por agora a tentativa de delimitação que tentei do problema, que segundo espero, merecerá que os outros participantes a questionem, a completem ou a matizem, é uma primeira contribuição que eu pude fazer, talvez a menos provocadora possível de polêmicas frontais e estéreis. 

Félix Guattari: Se vocês querem notícias da psicanálise, posso dar as dos Estados Unidos da América do Norte e da França, mas não as da América Latina. Enquanto mistificação, como doutrina e prática de recuperação, a psicanálise vai muito bem. Entretanto, é preciso dizer que há problemas que concernem à análise do inconsciente, análise do inconsciente no campo social, e essa análise vai muito mal, ela está balbuciando, mesmo se todos os habitantes do mundo estamos confrontados a problemas seriamente importantes. A psicanálise, que nas suas origens, trouxe formulações para compreender o fenômeno do desejo, o surgimento da singularidade, das perturbações ligadas a todas as espécies de situações de impasse e de repressão, pouco a pouco se devorou a si mesma, se fagocitou. Ela se deixou recuperar ao serviço do controle social na medida em que se desenvolvia. É a primeira vez que uma doutrina, que fazia uma grande promessa do ponto de vista revolucionário, foi completamente desviada de seus objetivos. Foi sempre muito delicado falar de problemas de um continente a outro, pois eu poderia falar de devastações da psicanálise, da psiquiatria de inspiração psicanalítica na França; é penoso falar de pessoas que são formadas pela psicanálise, especialmente psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, trabalhadores da saúde mental, e cada vez mais pessoas que trabalham em toda espécie de domínio, que creem realmente que a psicanálise lhes vai dar meios de intervenção e que caem em um impasse teórico e prático. É muito delicado falar disso aqui, pois vocês poderiam objetar que ainda há muitos perigos muito maiores, que se chamam behaviorismo, comportamentalismo, técnicas carcerárias de aprisionamento, e que ainda há hospitais psiquiátricos no Brasil. O que quer dizer criticar a psicanálise aqui? Vocês vão dizer que é um progresso, que é uma coisa muito diferente que se procura oferecer às pessoas, outra prática. Por isso eu insisto no fato de que as críticas que faço correspondem só ao território que eu conheço. É provável que aqui, pessoas que se inspirem no freudismo, procurem ter outra prática filo-psicanalítica, e mesmo que ela contribua para mudar a situação penosa em que se encontram, podem até mesmo tirar proveito observando e avaliando em que se tornou a psicanálise em países como França, Reino Unido e outros. Podemos observar, em primeiro lugar, que a psicanálise se tornou cada vez menos uma prática com pretensão terapêutica e cada vez mais algo que procura introduzir um acesso a um inconsciente que permitiria entrar num mundo inteiramente diferente dos outros, uma espécie de iniciação a um mundo secreto e abstruso que daria um poder particular. Ainda com risco de ser categórico demais, preciso dizer as coisas de maneira simples, falar sobre as pessoas que conheço, sobre a circunvizinhança. Segundo venho constatando, a psicanálise é uma mistificação completa, pois o que a cura psicanalítica consegue é que seus usuários cheguem, pouco a pouco a se voltar para si mesmos, para a sua própria subjetividade. Especialmente, na concepção estruturalista da psicanálise na França, trata-se de uma sofisticada versão do autocentrismo. Esses analisandos pagam muito caro para se deitar no divã prestigioso e falar durante anos para alguém que nunca lhes responde, ou que só intervém com monossílabos. A interpretação quase sempre é um único jogo de palavras, e depois… o silêncio. E cabe enfatizar que, apesar de sua sobriedade, é uma intervenção extremamente violenta. Ela é um troco quase que sardônico para o dinheiro e as expectativas que o analisando bota nela. Em resposta de qualquer coisa que a pessoa possa dizer, há uma anulação permanente de todo o explícito e o miúdo urgente que ela traz. Trata-se de uma tentativa de eclipse da realidade de alguém para abordar uma relação pura com a linguagem, uma relação destilada com outro sintático de um modo suposto inteiramente diferente do que aquele que encontramos no resto dos membros de uma sociedade. Essa pura escuta introduz uma espécie de distância invisível em relação a todas as significações e a todos os engajamentos práticos sociais e políticos. É uma espécie de investimento religioso, em um sentido muito particular e muito moderno, que pretende conferir uma espécie de inviolabilidade sectária àquele que dela se beneficia. Vou tomar como exemplo, algo paradoxal que me parece muito significativo: os psicanalistas que trabalham em instituições para crianças, pelo fato do trabalho analítico que fazem com crianças não poder ser puro, porque tem que intervir na vida concreta do estabelecimento, as tratam com tendências educacionais muito discutíveis; por outra parte, se sentem superiores e pretendem controlar os educadores do estabelecimento por vezes com uma violência e grosseria incríveis. Então a psicanálise saiu do divã. Nós a encontramos não somente nos hospitais psiquiátricos, no setor de equipamentos extra-hospitalares, mas também como ideologia de referência em numerosos lugares, em algumas empresas e, sobretudo na França, na mídia de massa. Os psicanalistas estão todas as manhãs dando conselhos às mães de família para tentar quase que ditar o que devem ser as ações das mães em relação às suas crianças, ou com respeito às relações dos casais. Os psicanalistas são devotos de uma teoria que funciona hieraticamente na sua prática individual específica, e se torna uma baboseira moralista nas suas práticas “aplicadas”. Estamos diante de uma espécie de dogma defendido por uma Igreja bastante poderosa, por muitas sucursais. É muito característico que todas as cisões, todos os conflitos havidos no seio dessas igrejas psicanalíticas se devam, sobretudo, a problemas de formação dos analistas. Pois, o que é muito importante: o controle das pessoas que estão investidas como psicanalistas para assegurar-se de que sua formação e seu comportamento institucional e social assegurem a identidade e os privilégios de uma casta de psicanalistas. É preciso não haver misturas, que nem qualquer pessoa, agente, profissão ou especialidade se misturem com a psicanálise. Alguém uma vez me tratou de “psicanalista selvagem” porque eu tentei trazer uma abordagem diferente das que são habituais aos critérios psicanalíticos. É preciso que vocês saibam que é muito perigoso ser “analista selvagem”, porque se trata de alguém que se mistura com poderes secretos e pode fazer devastações terríveis. É como se alguém nessa sala se declarasse cirurgião e começasse a operar o inconsciente. Isso também é uma mistificação extraordinária que implica a definição de inconsciente, numa prática de acesso ao inconsciente que está pura e simplesmente a um peculiar serviço do controle social. Mas as psicanálises ortodoxas se tornam verdadeiramente perigosas quando, por razões prevalentemente mercadológicas, se estendem pelas redes do “aplicado”. Assim, seus prolongamentos teóricos e práticos podem ser infinitos. A psicanálise tem uma teoria reacionária da sexualidade feminina, uma teoria reacionária da sexualidade infantil, uma teoria reacionária da homossexualidade, uma teoria reacionária das identificações no campo social, uma teoria reacionária das relações entre certa concepção da biologia, da linguagem e da cultura. Ela reduz tudo a uma espécie de mecanismo essencial do inconsciente, a um complexo puro e duro, que não apodrece nunca, que atravessa toda a sociedade, toda a história, que pode responder aos problemas de toda natureza; eles lhe chamam narcisismo, complexo da mãe, complexo do pai, complexo de castração, em suma, complexo de Édipo. É claro que essa versão mitológica trágica do Édipo já está demasiado vulgarizada. Tiveram que criar formulações de novo estilo abstrato bastante complicado, toda uma lógica matemática do inconsciente que traduz o Édipo a um formalismo esotérico que ao final leva aos mesmos resultados adestradores. Às vezes é bom rir dessas superstições. Podemos brincar com tudo isso, mas na verdade não é nada engraçado. Não é divertido para as pessoas que têm toda uma esperança no encontro com o psicanalista, que gastam toda sua energia, todo seu dinheiro, para fazer uma cura que geralmente não leva a nada. Isso não é uma objeção que se deva fazer ao analista, porque há uma espécie de regra implícita entre os psicanalistas que, quando as expectativas não se realizam e nada se passa, é prova de que acontece alguma coisa. Quanto menos a coisa acontece, mais a coisa acontece. Então, eles dizem que é uma fase do inconsciente, isto prova que toda essa paralisia é muito importante. Não é nada engraçado, porque também esteriliza as pessoas que querem encontrar um meio de entendimento e de intervenção sobre seus problemas. Então, não somente o psicanalista faz um mau trabalho no domínio prático, como também impede que haja um verdadeiro trabalho de renovação teórico-conceitual sobre esses problemas do inconsciente. Estou convencido, não de que os psicanalistas deveriam ter uma teoria social para fazer uma revolução e mudar o mundo. Mas estou persuadido de que eles estão errados e monopolizando um território cognoscitivo em que os problemas teóricos são bastante importantes para outros domínios. É muito necessário que uma teoria do inconsciente possa ajudar pessoas que querem trabalhar com crianças emburricadas nas escolas, com trabalhadores explorados, com mulheres vítimas de violência, com exilados e com tantas outras. São indispensáveis teorias do inconsciente que possam instrumentar os que trabalham em todos os diversos níveis do campo social, para saber montar o que meus companheiros e eu chamamos de agenciamentos coletivos de enunciação e maquínicos de corpos. Mas para mim é muito importante a definição do desejo como força libertadora, da vida inconsciente como produtiva, do cotidiano como lugar para as microrrevoluções, para que venha a enfrentar toda uma crise que encontramos no meio social. O que assistimos agora? Certos marxistas abrem os braços e saúdam os psicanalistas, e os psicanalistas fazem a mesma coisa com teorias marxistas mais dogmáticas. Por exemplo, haverá em breve um congresso de psicanálise na URSS. O dogmatismo faz referência a outro dogmatismo, e vice-versa. Entretanto, existem problemas essenciais que estão abertos no campo do marxismo e no campo da psicanálise que implicam o questionamento profundo dos fundamentos de ambos. Não digo somente que essas questões pertençam aos especialistas de um e de outro campo, mas essas questões pertencem a todo mundo. E é por isso que estou escandalizado contra as pessoas do poder psicanalítico, contra os burocratas da psicanálise e também contra aqueles que querem burocratizar a teoria marxista, a teoria revolucionária. Trata-se de formações de poder que são cúmplices, e que devem ser destruídas, se possível for, para que possamos, na medida do possível, progredir.

Robert Castel: O que se diz depende bastante da ordem em que se diz. Guattari acaba de dizer coisas sobre e contra a psicanálise. Várias coisas que eu diria, foram ditas. O que não quer dizer que eu teria dito a mesma coisa. Mas eu não quero continuar de modo unicamente polêmico, porque no fundo trata-se aqui de um debate e eu suponho que, em lugar de se falar de sobrevivência da psicanálise, seria melhor falar da fascinação pela psicanálise. E, efetivamente, eu creio que as pessoas que aplaudem o discurso antianalítico são as mesmas que aplaudem o discurso analítico e reciprocamente. Isso depende muito do momento histórico, de qual é o discurso que primeiro se apresenta. Reitero que acho que devemos refletir sobre essa fascinação. Cada um deve fazê-lo e analisar as razões pelas quais está nascendo no Brasil essa espécie de ambivalência. Reencontro aqui uma situação que há cinco anos vivemos na França. Suponho que fui convidado a participar deste debate porque há muito tempo escrevi um livro que foi motivado por essa fascinação (O psicanalismo). Era a época da hegemonia da psicanálise na França, e nós podemos garantir que verdadeiramente a psicanálise na França calou muita gente. O que é paradoxal para um discurso que pretende libertar a palavra. Mas estou no Brasil, e cinco anos depois e, portanto, não desejo pura e simplesmente exportar uma análise que pode ter sentido num outro contexto. Não creio ser obcecado pela antipsicanálise. O que me interessa é a crítica a certo número de mecanismos. Eu acho que a psicanálise se integra perfeitamente nesses mecanismos, e tem uma função outra, diferente da função meramente psicanalítica. Eu não penso que se possa ver, como disse Armando Suarez, que exista uma quarta dimensão que seja uma dimensão social, ainda que seja necessário compreender a psicanálise como um mecanismo produtor e executor de poder, quer dizer, que gera imediatamente efeitos sociais. Na sociedade brasileira há vários mecanismos de poder para militarizar o campo da medicina mental. Existem certas técnicas que disputam o mesmo mercado e algumas dessas técnicas são tão inquietantes quanto a psicanálise; penso no condicionamento de comportamento que não é nada engraçado. Há uma situação que é preciso analisar conjuntamente e vocês talvez estejam em situação privilegiada com relação a esse domínio da medicina mental. Parece-me que existe algo de interessante, quer dizer, a chegada de muitas coisas simultaneamente e coisas que na Europa chegaram em ordens diferentes. Por exemplo, eu não digo que a psicanálise está chegando, mas sim que a psicanálise está explodindo, chegando a um limiar de expansão, e chega também certa crítica à psicanálise. Seria importante discutirmos juntos sobre isso e talvez de uma maneira diferente daquela sobre o fascínio ou o antifascínio. A questão que mais me interessa é entender a situação histórica que induz a fascinação e a antifascinação. Por isso eu desejaria somente que a gente continuasse o debate. 

Chaim Katz: E queria dizer que enquanto Guattari falava fiquei com vergonha. Sou psicanalista e tive medo de engolir vocês todos. Porque ele colocou mais ou menos a psicanálise como produtora de monstros e os psicanalistas como monstros produzidos por essa produtora. É claro, as palmas são muitas. É o único jeito de nos vingarmos do alto preço das sessões, no mínimo. Eu não quero ser analista de ninguém, mas pelo menos não nisso de imposições hierárquicas, de ser obrigado a me sujeitar ao silêncio intolerante das organizações psicanalíticas brasileiras, do silêncio que impõe a teoria oficial, dos livros que inexistem, do debate calado desde sempre. Então a gente bate palmas, e depois, amanhã, temos sessão. A questão é: a psicanálise é tão importante? Ela pode tanto? Eu queria dizer em primeiro lugar, e já que nós prometemos, como bons heraclitianos, ter um bom debate, vamos levá-lo à prática. A guerra sustenta todas as coisas, dizia Heráclito. Então a primeira questão é: O que impede outras teorias de produzirem o inconsciente na vida social? De terem um determinado tipo de resposta para as questões da vida social? Quem sabe, no campo que nós estamos explorando, pensa-se que Freud foi o primeiro a falar do inconsciente. Mas é mentira, muito antes dele, Nietzsche já falava com um brilho extraordinário do inconsciente dentro da vida social, com uma inteligência incrível, que não sei se Freud conseguiu alcançar. Certa aliança histórica atravessa o sucesso da psicanálise. É a aliança com certo marxismo que sempre viu Nietzsche como um nazista, o pai do super-homem. É a leitura de orelha de livro. Nesse caso, a psicanálise, ao mesmo tempo em que ficou a salvo de certos ataques, se tornou alvo dos mesmos ataques. Daí as palmas e o divã de pessoas que batem palmas. Há motivos históricos. Quando se fala do poder da psicanálise, eu gostaria de tomar a coisa ao nível do que sabemos hoje em dia sobre o que é o poder. Há algum saber sem poder? Destruir o poder da psicanálise como tal, destruir o seu saber específico, significa exatamente o quê? Eu gostaria de considerar estas perguntas indagando: existe algum saber sem poder? Existe alguma teoria que não reduz a um plano inferior os seus agentes selvagens? A sociologia tem os seus sociólogos selvagens, a economia tem seus economistas selvagens. Aqueles que, ao passar de determinados limiares estabelecidos por normas colocadas dentro de seu campo científico que, ao serem ultrapassados, são considerados à margem, fora, e por isso são selvagens, sempre. O problema do poder e da sobrevivência do saber é algo que se inscreve em qualquer formação teórica. Não é nada específico da psicanálise. Se estivéssemos aqui falando de qualquer outro saber, teríamos que enfrentar o mesmo problema. Eu só não entendo o porquê desse tom tão agressivo com relação ao poder da psicanálise. Eu perguntaria: existe alguma relação sem poder? Eu não conheço, e sigo nosso mestre Foucault que nos ensinou isso enfaticamente. Os burocratas da psicanálise, os burocratas do marxismo. A URSS na opinião de alguns, é o anti-marxismo; para outros, é o mar-xismo. Vai se pegar todo o saber marxista e jogar fora porque a União Soviética é uma burocracia, é um capitalismo de Estado? Vamos tomar todas as conquistas da psicanálise, abertura para o questionamento do inconsciente na vida social, do desejo na vida social, somente porque queremos ver a psicanálise de uma maneira única, como uma teoria que, juntamente com outras teorias, a partir especialmente da Primeira Guerra Mundial, entra em um processo de conservadorismo, de reação, um processo de se fechar em sociedades cada vez mais rígidas e com saber cada vez mais fechado? É isso que é a psicanálise? Ou é também este Simpósio aqui? Se este Simpósio é também psicanálise, a psicanálise sobrevive. Queria agora contar outra história. A partir de 1968, no Brasil, por motivos que ainda não foram estudados, mas que são objeto de uma tese que está sendo desenvolvida por certos colegas, começa-se a praticar aquilo que eu chamaria de psicologização da vida teórica e da vida social, ao mesmo tempo em que se impõe mecanismos daquilo que se denominaria a despolitização da vida teórica. Assim, é um exame – eu gostaria de dizer que é uma tese, que esteve em minhas mãos e que, infelizmente, não pude continuar a trabalhá-la, de modo que não tenho muitos dados – mas gostaria de dar a ideia geral, mesmo superficial, do número de faculdades existentes na chamada área das ciências humanas e sociais, que nos mostra que estas diminuíram. Os cursos de política praticamente foram extintos no Brasil, os cursos de sociologia diminuíram e hoje se quer juntar quatro ou cinco divisões e se fazer uma salada sociológica delas. O curso de história se tornou quantitativo, descritivo, num nível empírico burro, ao mesmo tempo em que aumentaram violentamente em todo o país os cursos de: psicologia, criados oficialmente, antes na Universidade de Brasília (1966, 1967) e depois no Rio de Janeiro e em São Paulo (1967 e 1968); de comunicação; de assistência social. Quem se der ao trabalho de examinar, como eu e outros colegas pudemos fazer, os currículos da faculdade de medicina, verão que os temas tradicionais da medicina foram substituídos. Quer dizer, Anatomia, Fisiologia, Patologia, são paulatinamente substituídos por temas que diziam respeito a uma psicossomática. Não sei bem o que é isso, porque nem os professores sabem. Mas entra ecologia, a situação do corpo na vida cotidiana, higiene mental etc. Politicamente o que isso significa? Significa que há cada vez menos, na formação teórica do estudante brasileiro, elementos para pensar a situação política de nosso país seriamente elaborados. O operário do metrô dorme mal, arrebenta os alojamentos, não porque ganha mal e trabalha muito, faz dois turnos, mas porque ele está com saudades da mãe, está com problemas edipianos, está desajustado. As crianças reagem mal, estão irritadas, não porque os apartamentos têm menos espaço, cada vez seus pais as veem menos, cada vez mais colocam elementos que servem de intermediários, substituindo a comunicação entre eles, como a televisão e companhia limitada. Não é isso, as crianças estão com problemas edipianos, nostalgia do útero materno, do pênis paterno, e é isso que deve ser tratado. Isso aparece no jornal diariamente, a televisão diariamente nos informa exatamente nesse mesmo vocabulário. Ora, essa psicologização da vida social, eu queria apenas falar dessa faceta, e desse aumento desses agentes produtores desses saberes que precisavam, necessariamente, de uma determinada aplicação, porque não se pode formar psicólogos no vácuo. É preciso dar-lhes trabalho, é preciso que os assistentes sociais ampliem seu campo de ocupação. E assim criaram-se novas categorias. Patologizou-se um determinado nível da produção social. Criança com problema não precisa mais falar com o pai e com a mãe, vai para o analista. O casal que tem problemas não precisa mais discutir, não fica bem porque as paredes são finas, cada vez mais se vai à terapia de casal, e assim por diante. Teoricamente, criaram-se novas modalidades de corpo, novas modalidades de relações sociais, todas elas sob a égide da psicologia. Nesse exato lugar, a psicanálise ocupa o cume, o privilégio entre todos os saberes psicológicos. Porque é indiscutível que com o seu surgimento, atende a uma determinada força de trabalho especializada, não aquela força de trabalho, por exemplo, para a qual se dirigia a medicina do trabalho, criada entre 1948 e 1950, mas a uma determinada força de trabalho que custa caro, que significa um investimento de muitos anos de estudo, de muito dinheiro, de muito poder social, de muita posse dos meios de produção social. A psicanálise veio também para poder tratar essas pessoas. Então ela se torna o modelo por essa faceta. Não estou ainda discutindo sua faceta teórica. Ela se torna o modelo para os outros saberes psicológicos, e assim, ela é elevada a um grau de dignidade tão grande que ninguém chega lá. Os psicólogos, meus colegas, falam mal de todas as sociedades psicanalíticas, então, uma vez, em uma reunião com vinte psicólogos perguntei: quem é seu psicanalista? A resposta foi: “Ah, o meu psicanalista é membro da Sociedade Internacional, mas eu sou eu, eu tenho meus problemas”. Quem é seu supervisor? “Também é da Internacional, porque eu não vou aprender besteira”. O psicanalista é atacado, batem-se palmas contra ele, mas se vai exatamente a ele. Esse é o lugar dele. Esse lugar não é produzido pela consciência intencional. Trata-se de uma produção política, de uma produção social que está sujeita a determinadas leis e que se nós analisarmos esse acontecimento fora de suas determinações históricas, o máximo que vamos fazer é uma piada, que é sempre de bom agrado para aqueles que no momento manipulam para si a maior parte do poder social. Desse esse ponto de vista, eu queria dizer que a tendência da psicanálise no Brasil é sobreviver. Ela vai sobreviver porque a psicologização da vida social é cada vez maior e o lugar da psicanálise como um poder é cada vez maior, mais separado, e a reação das pessoas não é adequada às condições históricas, não é passada por um crivo de uma análise social mínima, a não ser aplausos ou vaias. Infelizmente, na nossa área, falta-nos um instrumento com o qual pudéssemos pensar o significado da psicanálise e com isso poder colocá-la em outro campo de conhecimento. Eu queria agora terminar e dizer que o que Guattari fez foi psicanálise. Pode-se trocar o nome e dizer: é preciso pensar a questão dos investimentos na vida sexual. Eu não sei por que pensar isso fora da psicanálise. Se for por ojeriza do nome psicanálise, creio que seria melhor transformar a psicanálise, elevar-se até esse lugar que eu queria dizer que não é só dele. É nosso também, acredito que de toda a mesa. Acho que Castel colocou bastante bem a questão. É preciso pensar que o homem não é apenas o animal do trabalho, como geralmente se pensa. Ele é também o animal do desejo, do sofrimento, da alegria. De modo que há sempre um lugar. Se se quiser trocar o nome é preciso saber que não basta trocar o nome para que se mude a coisa. Não basta chamar o cardeal de papa para que ele se modifique. É preciso que nós possamos trabalhar essa realidade da psicanálise, para que ela não seja apenas uma sobrevivência com relação a uma necessidade de despolitização da vida social. E por isso é preciso politizar a psicanálise e não ter medo de seu nome. Essa é a minha proposta. Obrigado. 

Betty Milan: Face à questão que o Chaim deixou: Existe um saber sem poder? Eu gostaria de colocar o seguinte: Se é verdade que o poder é o pressuposto possível do saber, se ele é o pressuposto atuante nas sociedades psicanalíticas, não é verdade que o pressuposto do saber analítico, na prática analítica, seja o poder. Isso quer dizer o seguinte: o analista está em posição de exercer o poder, mas quando ele o exerce, ele abusa de sua posição. Eu gostaria por isso de estabelecer uma diferença aqui entre o que Lacan chama discurso do mestre, o discurso do poder, que é o discurso próprio das sociedades psicanalíticas, o discurso analítico. Essa questão me parece ter sido largamente tematizada no discurso lacaniano. O segundo ponto que eu gostaria de discutir aqui é o da sobrevivência da psicanálise pela psicologização da vida cotidiana. Não, a psicanálise não subsiste pela psicologização da vida cotidiana, muito pelo contrário. A psicanálise só subsiste, na medida em que cada analista puder reinventá-la, isto é, não sendo integralmente transmissível, ela só subsiste na medida em que exista a possibilidade de teorizar a prática da psicanálise. Terceiro ponto, a politização da psicanálise. Não sei se aqui se trata da politização da psicanálise ou da antipolitização da psicanálise. Em todo caso, a politização da psicanálise é precisamente a postura das sociedades psicanalíticas. É porque, de certa forma, ao nível de sua organização estrutural, essas sociedades não puderam fazer vingar o que se chama de discurso do analista, mas precisaram se valer do discurso do mestre, que as sociedades psicanalíticas são politizadas, isto é, que elas se fundam numa hierarquia exclusiva. Era o que eu tinha a dizer. 

Interlocutor não identificado: Primeira questão. Eu gostaria de pensar alto com o que eu ouvi nesta mesa e na anterior, psicanálise e antropologia. Chaim Katz apontou o aumento do psicologismo a partir de 1968. Eu estava me lembrando do aumento da procura por religiões nessa mesma época. Então, muitas pessoas, conhecidas minhas, pessoas da classe média, partiram para buscar o espiritismo. Nós fomos buscando as várias psicoterapias, mesmo a psicanálise. O povão, não sei, não tenho suficiente contato. O que eu queria saber é se não se trata, aqui nesta mesa, sobre a sobrevivência da vida mental, na medida em que tivemos uma época aí, me parece, que impôs a separação do indivíduo biológico enquanto fato empírico (como se falava na mesa anterior), da possibilidade do indivíduo simbólico-político. Encontrou-se nesses lugares o espaço para a sobrevivência da vida mental. Segunda questão: eu gostaria de saber se existe psicanálise sem Édipo

Chaim Katz: Acho que o Guattari gastou 600 páginas de seu livro para mostrar que sim. A mesa, até quando tem boa vontade, não é sempre capaz de dar algumas das respostas que seriam muito difíceis de serem resumidas aqui. Por exemplo, a questão da psicanálise com ou sem Édipo, eu acredito que a gente poderia se cingir mais ao tema sobrevivência da psicanálise, apesar de entender a curiosidade e o interesse. 

Félix Guattari: Penso efetivamente que certa prática da análise não apenas encontra o Édipo, mas quando não o encontra põe o Édipo lá dentro. Isso é muito sensível, em especial, na antropologia. Psicanalistas que foram a Dakar, e trabalharam em um grande hospital, estavam muito surpresos de não terem encontrado o conflito edípico nas pessoas que eles trataram. E pensavam que eles mentiam, que escondiam alguma coisa. Certo, há sempre o Édipo e há por toda parte. Mas como vocês querem controlar o desenvolvimento das crianças, se elas não assumem, não só a autoridade do pai, e é mais sutil, se elas não interiorizam o valor simbólico, o valor do poder, do qual os pais não são senão, os delegados e suportes. Isso não se dá só nas famílias, mas em toda parte. Existe, portanto, uma forma de edipianização que é essencial ao controle social. Mas desse ponto de vista os psicanalistas são apenas crianças de colo. Quando se pensa no trabalho das mídias de massa para fazer com que nossos respectivos presidentes da república se tornem pais da nação e, finalmente, sejam os árbitros de tudo o que se passa nesse país, vê-se que esse problema da edipianização é considerável. Em toda parte, vê-se personalizar problemas que, de modo algum, vêm ou dependem da ordem do indivíduo. A cada vez que se diz que alguém é o porta-voz de alguma coisa, de certo modo se encontra sempre um mecanismo de edipianização. De outro modo, a forma mais geral do Édipo é a que consiste na imposição de mediadores entre os indivíduos, há problemas que escapam completamente a esse tipo de mediação. Eu penso que a psicanálise, tal como se estruturou na sociedade, não poderá funcionar sem o Édipo e seu confrade, o complexo de castração. Tudo o que se deve perguntar é se possível fazer um trabalho do inconsciente que faça o trabalho contrário, que desedipianiza, que recusa essa confiança que se faz na imagem do outro, que não aceite formações de poder que caiam sobre você cegamente, que não aceite o poder enquanto mediatizado por outros meios. E por que não meios democráticos, ou meios de autogestão da vida cotidiana? Por que o primado do falo, primado do pai como entrada no simbólico? Será que outros meios de análise não puderam ver outros meios de vida familiar senão esses? Uma vez mais eu repito, os ataques que faço contra a psicanálise visam essencialmente aos psicanalistas, suas sociedades e sua hegemonia. Mas eu o faço em nome de uma verdadeira análise do inconsciente que, a meu ver, deve ser constantemente levada a todos os divãs da sociedade. 

Interlocutor não identificado: Gostaríamos que explicasse melhor, com mais detalhes objetivos, o que é o questionamento do desejo do homem na vida social. 

Chaim Katz: Nós atravessamos uma grande época, e hoje, especialmente, estamos em plena revolução tecnológica, e fala-se de produção sempre ao nível do trabalho. Eu acredito que a psicanálise, o que ela pode trazer de novo, e o questionamento que Guattari fez agora, é dizer que o investimento do homem não é só ao nível do trabalho. Qualquer investimento é sempre, e também necessariamente, ao nível do desejo. Por isso, questionar o desejo é questionar a sociedade, deste modo como estamos colocando. Pensar a questão apenas em termos de investimento no trabalho, de luta de classe e divisão social e deixar de lado toda a questão do desejo, me parece amputar o homem, pensá-lo à maneira da IBM. Eu acredito que tudo o que nós pudemos dizer, por mais divergências que tivéssemos, é que para nós é uma questão de pensar o desejo na vida social. 

Interlocutor não identificado: Fiquei na dúvida, a psicanálise funciona como um agente atenuador de conflitos provenientes da realidade social, ou é uma fonte de renda para um grupo ou uma categoria profissional? 

Chaim Katz: Uma coisa não elimina a outra. 

Robert Castel: Eu queria responder à questão, mesmo que não fosse essa. A questão, tal como eu a compreendo é: quando a psicanálise age como atenuadora de conflitos, será que a própria psicanálise está em questão? Qual é a responsabilidade de um grupo ou de uma categoria especial de psicanalistas? Acredito que entre as pretensões psicanalíticas, entre as quais é essencial criticar, é que há uma natureza diferente entre as diferentes escolas de psicanálise. Devo dizer isso porque ouvi agora há pouco um discurso, que soava lacaniano, sobre os perigos da exportação dos produtos ocidentais. Acredito que devemos desconfiar, principalmente da pretensão lacaniana. Primeiro, porque é uma mistificação extraordinária. Os lacanianos na França impuseram sua hegemonia em nome de um discurso que se pretendia totalmente sem história. Eles levaram por toda parte seus interesses em nome dos interesses inconscientes. Isso é o exemplo do mais belo sucesso da mistificação intelectual desde há muito tempo. Porque esses lacanianos puros e duros são os mesmos que encontramos em todos os lugares, em todas as instituições onde queremos denunciar o caráter repressivo dos instrumentos que eles chamam de captura ou de recuperação da psicanálise. Para avaliar a psicanálise é preciso realmente tomá-la como um todo. Não é preciso dizer, ou é preciso especialmente não dizer, que há usos puros e usos recuperadores da psicanálise. Existe um contínuo de práticas inspiradas na psicanálise e por cujo contínuo a psicanálise é responsável. Essa formação da psicanálise ocupa um peso na vida social. Na França esse peso pairou e é esmagador. No momento, ele não é tão pesado na sociedade brasileira, mas ele vai crescer, e acredito que a apreciação da psicanálise na sociedade brasileira deve ser feita de acordo com a produção de outros tipos de efeitos concorrentes. Eu falei do tratamento do behaviorismo, mas, sobretudo, não se trata de tentar pensar o problema sempre religiosamente, porque um homem que se chama Freud, ou Lacan, ou qualquer outro, traz ao Brasil ou a qualquer outro lugar, certa verdade relativa a essa questão. 

Interlocutor não identificado: Gostaria que se discutisse o problema colocado: a sobrevivência da vida mental em um período histórico de repressão e morte do pensamento e das práticas políticas. Estamos discutindo a sobrevivência da psicanálise como produto gerado por uma determinada categoria social. 

Betty Milan: Gostaria de retomar dois pontos do discurso de Castel. Em primeiro lugar, quando eu estabeleci a diferença do discurso do analista e do discurso do mestre, foi precisamente para dizer que, em todas as escolas psicanalíticas vigora o discurso do mestre, ou seja, o discurso do poder. Em segundo lugar, dizer que importar lacanismos é uma forma de mistificação, é não dizer nada, não fosse o fato que é igualmente mistificador importar essa forma de questionamento, na medida em que aqui nós importamos quase tudo. Como dizia Corbisier, nós importamos o ser e exportamos o não ser. Obviamente, a questão que se coloca para a psicanálise no Brasil é a de reinterpretar os fatos da nossa realidade com significantes que ela põe à nossa disposição, sejam eles vienenses, ingleses, franceses, ou quaisquer que sejam. Agora, privilegiar a crítica à importação do lacanismo é igualmente mistificador. Claro que o problema com o qual nos defrontamos é o da importação da cultura.


FONTE

Texto publicado em UM ENCONTRO INESQUECÍVEL. PRIMEIRO SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE, GRUPOS E INSTITUIÇÕES. Rio de Janeiro, Brasil, outubro de 1978. Editora: Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais (CRP-MG); Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições (IBRAPSI) – Belo Horizonte: CRP-MG, 2023, 650p. Org. Gregorio Baremblitt.


A SOBREVIVÊNCIA DA PSICANÁLISE - Mesa redonda com Armando Suarez, Félix Guattari, Robert Castel, Chaim Katz e Betty Milan
“The unconscious dreams according to Sigmund Freud”, de Maxim Fomenko

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