Solidão feliz - por Françoise Dolto
Esses momentos de graça do fenômeno humano — que somos também para nós mesmos –, todos conhecemos desde a infância, quando a solidão não é sentida como amarga rejeição de nosso desejo pelo desejo dos outros, mas quando, cansados de nos exercitarmos até que seja dada a nossa melhor expressão, na vigília, num trabalho, ou em nossos contatos com os outros, até o limite de nosso desejo e de nosso poder; mergulhamos deliciosamente no sono reparador. Pois o homem, depois dos jogos do desejo, deve voltar para seu corpo numa solidão recuperadora de seu ser no mundo, no ritmo de sua respiração, no esquecimento de seus pensamentos, de seus gestos, de seus sentimentos, de si mesmo e dos seres que lhe sejam caros ou inimigos, no mergulho em seu anonimato reassumido.
Nele se regenera, em seu dormir, com forças que, nas orlas de seu inconsciente, reanimam a fé arcaica em um viver que se ignora criatura individuada, no eclipse ritmado de seu ‘eu’ que sempre deseja, confiando-o ao repouso que o faz ignorar-se até o despertar. Aí, surpreendido às vezes pela estranheza que em sonhos o visitou, a levar seus pensamentos por caminhos que sua vigília ignora, reencontra suas necessidades de comunicação e de consumação que o devolvem então a seu corpo atento e, pela retomada de seus desejos, aprestam-no de novo a perseguir seus desígnios.
Existem também lugares da natureza onde — desta vez despertos — os homens saboreiam todos os seus sentidos receptivos, a graça de uma solidão feliz. Lugares de beleza, de serenidade, de doçura, de maternância impalpável, lugares de paz e de alegria tênue para o coração, de repouso para o corpo que ali, em atividade, se sente leve; lugares onde, ainda que solitários, os homens podem encontrar por certo o olvido de seu destino apartado, num silêncio de palavras humanas povoado pelo murmurinho tranquilizador e vibrante de uma natureza que com a sua se afina, onde tudo é linguagem de presença espiritual, onde, sem código aprendido, sem gramática conhecida, toda a natureza parece dar ao homem fé em si mesmo e falar-lhe de amor.
Benditos sejam esses lugares e benditos sejam os céus, o ar, a terra e as águas que neles há. Benditas as criaturas vegetais, árvores, flores, frutos, sítios amigos, no sopro do vento que nos traz, leves e familiares, os odores da vida e os sons distantes ou próximos que, sem nos alertarem os ouvidos, nos confirmam em nosso ser pela existência amada dos outros. Nesses lugares nossas angústias perdem agudeza, devolvidas a proporções que nossa imaginação não enfuna mais, encontramos a comunhão com o mundo e com a alacridade de nosso coração. Esses lugares de ordenação natural e perfeita, afinados com nossos sentidos, são lugares onde o tempo parece parar num instante de graça.
Cada ser humano — criança, adulto ou velho — encontrou lugares assim, onde o eco de uma arcaica paz de seu ser ressoou em si, paz de antes do tempo das aparências, conivência com o sangue e com o respiro nos limites da pele, diante do espelho, ó Narciso, sorriso de todo o ser de antes de existir rosto, solidão que, longe de pesar no coração e no espírito, embriaga-o de serenidade.
Cada um de nós, quando estreitado pelo sentimento de não ser compreendido, de ter um sentimento impossível de comunicar, sentimento doloroso que faz o corpo estar mal em meio aos outros, em família, em sociedade, num grupo, na multidão, cada um de nós sente a solidão amarga que traduzimos por tédio, angústia, tristeza, melancolia, desespero, ou por palavras populares ainda inadequadas porém mais próximas do mal-estar: ‘fossa’, ‘chateação’. Fugindo do estado obsessivo que nos torna prisioneiros, aspiramos então ao retorno, se não na realidade pelo menos em imaginação, a um desses lugares onde a solidão é paz, a um desses lugares do planeta onde a natureza um dia nos soube devolver vida confiante, esperança em nossa dor de mal-amado mal-amante, lugares de felicidade encontrada.
Então a solidão se nos mostra doce, apesar da impossível comunicação com os seres queridos, com os companheiros de trabalho, apesar dos rostos encontrados sem troca de olhares, das bocas falantes sem palavras que nos toquem, dos corpos móveis e estranhos, com gestos de fantoche, sem braços fraternos sobre nossos ombros e sem mão tranquilizante.
Benditos sejam esses lugares terrestres de regeneração, onde a natureza sabe ser-nos fraternalmente gêmea, a nós, solitários e sedentos de amizade; lugares que só de sonhar, de encontrar uma foto, um desenho evocador, devolvem-nos um sorriso, uma alegria humanizada. De abatidos que estávamos, sentimo-nos de novo com coragem, desamarrotados pela natureza, desafogados daquilo que de incomunicável havia em nossa provação e devolvidos à linguagem do dia que retoma seu curso.
Benditos sejam os animais cuja espécie, amiga dos homens há milênios, é presença tranquilizadora, auxiliares nossos tanto no fardo do trabalho quanto nas coisas mais sutis que tornam pesada a solidão humana.
Quantos sofrimentos solitários do corpo e do coração eles ajudaram e ajudam ainda a suportar todos os dias, quantas penas e angústias secretas deixam que digam a seus ouvidos discretos donos e donas, jovens e velhos sem amigos outros, mendigos e milionários. Quantas vezes esses animais, que chamamos de domésticos, domaram a selvageria despertada no coração dos homens, abandonados pelo companheiro traidor ou pelo amigo desaparecido. Esses viventes de outra espécie, que não humana, fiéis, afetuosos, pacientes, que sabem ouvir, entender e dividir no dia-a-dia as tristezas e as mágoas dos homens.
Benditos sejam, consolo do nosso tédio, aceitação de nossa ingratidão, nossas bestas de carga, nossas bestas de tiro, nossos animais domésticos, humildes presenças mudas e companhia asserenante em nosso monótono e frustrante cotidiano nas horas de cansaço, insônia, preocupação e solidão.
_____________________ FONTE DOLTO, F. In: Solidão. Ed. Martins Fontes.