Kafka escreve em seu diário que sua vida se aparenta a um sonho. Isto não significa de modo nenhum que ele vivia “na lua”, que vagasse num mundo de aproximação e de flou artístico. Se vivia como em sonho, também sonhava como escrevia, de sorte que uma aliança literária enleava continuamente suas realidades cotidianas e seu imaginário artístico (o que, aliás, não acontecia sem dificuldade!). Seja como for, ele tinha os seus sonhos na mais alta conta, como o atesta o fato de que, apesar das perdas e destruições que sua obra conheceu, dispomos hoje de mais de 60 deles, distribuídos ao longo do Diário e da Correspondência, de 1910 a 1924, ano de sua morte. Sua transcrição com certeza devia constituir para ele mais do que uma fonte de inspiração: um instrumento de escritura, um método de elaboração de seus objetos literários.
Nessa época, a Traumdeutung [A Interpretação dos Sonhos, ed. Imago] de Freud, que tinha passado totalmente despercebida por dez anos desde sua aparição, começava a ganhar o renome mundial que se conhece. E não se pode duvidar de que Kafka tivesse conhecimento dela. Porém ele sempre foi muito reticente em relação às interpretações psicanalíticas. No primeiro momento, as obras psicanalíticas – escreve ele a Max Brod, em 1917- “vos saciam de maneira surpreendente, mas imediatamente depois nos reencontramos com a mesma antiga fome”. Ele recusa, pois, entregar-se passivamente aos acasos do processo primário, tal como Freud estimava tê-los descoberto. Sua concepção do trabalho do sonho requer algo inteiramente distinto de uma “atenção flutuante”; ele mobiliza, ao contrário, uma vigilância especial, uma inteligência e uma sensibilidade exacerbadas.
Recorde-se que, para Freud, a cena do sonho era inapta para qualquer criação efetiva: ela não era senão uma superfície de registro dos metabolismos profundos do inconsciente. O sonho opera por “colagem”, por “cut up” (como se dirá mais tarde, na época da Beat Generation), as novas sínteses que ele constitui são soldadas em “aglomerados”, por uma espécie de “cimento solidificado”. E o que confere consistência a tais aglomerados, sua chave simbólica – para tomar de empréstimo desta vez aos estruturalistas -, lhes escapa por definição. Por isso os “complexos” se mantêm sempre passivos: sua apreensão depende de reconstruções feitas a partir de instâncias conscientes que lhes permanecem exteriores, e o domínio sobre seus sentidos pertence aos psicanalistas capazes – ao menos têm eles essa pretensão – de decifrá-los e desatá-los a partir da marca transferencial que deles recebem.
Inteiramente outra é a abordagem kafkaísta. Trata-se essencialmente, nesse caso, de fazer trabalhar seus pontos de singularidade. Ali onde a interpretação freudiana parava – diante do que Freud designava por “umbigo do sonho” -, tudo começa para Kafka. Evitando submeter os pontos de não-sentido ao jugo de qualquer hermenêutica, ele os deixará proliferar, amplificar-se, a fim de engendrar outras formações imaginárias, outras ideias, outros personagens, outras coordenadas mentais, sem sobrecodificação estrutural de nenhum tipo. Instaura-se assim o reino de processos criadores, antagonistas à ordem estabelecida das significações. Processos de produção de uma subjetividade mutante, portadora de potencialidades passíveis de indefinidos enriquecimentos. Examinemos agora algumas características dessa “pragmática” kafkaísta do sonho.
Sonho, vigília, sono
A experiência do sonho deve ser considerada como distinta tanto da experiência da vigília quanto da do sono (Kafka não pára de queixar-se do cansaço que lhe provocam seus sonhos: suas noites são “desperdiçadas em sonhos malucos”; “por volta das cinco horas, consumi até o último vestígio de sono; já não faço senão sonhar, o que é mais extenuante do que permanecer acordado”).
Contar um sonho não consiste apenas em produzir um discurso fechado sobre si, que teria como objetivo único transmitir uma dada quantidade de informações a respeito de um acontecimento onírico. É também um ato de enunciação que vale por si e que pode desempenhar uma função particular no interior de uma estratégia intersubjetiva, especialmente no contexto de uma correspondência amorosa.
Assim, quase a metade dos sonhos que se podem coletar em Kafka provém de cartas endereçadas a pessoas próximas (Grete Bloch, Max Brod, Felix Weltsch, sua irmã Ottla), sobretudo a sua primeira noiva, Felícia Bauer, e ulteriormente a Milena Jesenska. Ao que parece, Kafka esperava que em troca lhe endereçassem outros sonhos. Ele faz um pedido explícito nesse sentido a Ottla (“Escreva-me em detalhe sobre o que lhe concerne, fale-me sobretudo de suas preocupações, igualmente de seus sonhos, se o desejar, mesmo à distância isso tem uma significação”). A propósito de uma interpretação que ele sugere para um sonho de Felícia, chega a falar de um “sonho coletivo” que ela teria tido por ambos [37: “Em contrapartida quero interpretar seu sonho… Não é diferente para mim: é um sonho coletivo que você teve por nós dois”]. (1)
Três indícios
Se as cartas falam muito dos sonhos, os sonhos também falam muito das cartas. Três indícios encontram-se neles frequentemente associados: um fluxo de cartas; a evocação de uma máquina; uma ou várias moças.
A) Um fluxo de cartas. Na fase de “loucura epistolar”, que marcou o início de seu amor por Felícia, Kafka tem um sonho em que recebe dela uma verdadeira torrente de cartas [18: “Um carteiro me trazia duas cartas suas registradas, uma em cada mão… Senhor, eram cartas encantadas! Eu podia puxar dos envelopes tantas folhas escritas quantas quisesse, nunca eles se esvaziavam. Encontrava-me no meio de uma escada e, se quisesse retirar dos envelopes tudo o que neles restava, eu devia… jogar nos degraus aquelas que eu já tinha lido. A escada inteira estava coberta de alto a baixo por uma camada espessa dessas páginas já lidas…”].
Em outra parte, tratam-no de “glutão”, referindo-se à quantidade de cartas e cartões recebidos dela ou a caminho [19: “Só direi uma coisa, é que fui repreendido por minha impaciência de uma maneira encantadora, que me deixava feliz. Chamavam-me de “glutão” e enumeravam as cartas e os cartões que eu tinha recebido nos últimos tempos ou que estavam a caminho”].
Quando suas relações com Felícia se turvam, é uma massa de folhas finas, escritas por uma mão que num primeiro momento lhe parece desconhecida, que sai de um mesmo envelope [30: “Penso que esta carta não pode ser aquela que eu espero, ela é fininha, escrita por uma mão desconhecida em caracteres delgados e pouco firmes. Porém eu a abro e dela sai uma massa de folhas finas inteiramente escritas, todas aliás pela mão desconhecida”]. Anos depois, numa carta a Milena, ele evocará ainda outros fluxos de carta, associados a “flores, bondade e consolação” [58: “Mas duas horas depois chegavam cartas e flores, bondade e consolação”].
B) Uma máquina. Antes de tornar-se um horrível instrumento de tortura em “Na Colônia Penal”, a máquina de cartas é sonhada primeiramente sob a forma de um personagem mágico: um carteiro sacudindo os braços “como as bielas de uma máquina a vapor” e que lhe entrega duas cartas, que por sua vez engendram um fluxo ininterrupto de folhas escritas por Felícia [18]. Depois é uma máquina telegráfica, que, ao ser acionada, faz correr uma longa fita de mensagens transmitidas por Felícia e que dá lugar a uma verdadeira carta dela [19 “… eu tinha medo daquele telégrafo. Mas eu precisava telegrafar-lhe… O aparelho era construído de tal maneira que bastava pressionar um botão, e no mesmo instante a resposta de Berlim aparecia numa fita de papel… Depois disso vinha uma carta de verdade que eu conseguia ler bastante bem…”]. Numa noite menos fasta, é sua chegada em automóvel que precede a vinda de uma carta, que não é aquela que ele espera [30], ou ainda uma enorme máquina administrativa, que ele desafia a fim de impor o encaminhamento de uma carta a Milena, cujo endereço estranhamente ele perdeu [57: “… eu tinha esquecido seu endereço, não somente a rua, mas também a cidade, tudo, só havia o nome de Schreiber que sobrenadava… Eu escrevia num envelope: Milena, e abaixo: “Favor fazer chegar esta carta, sob pena de infligir um prejuízo formidável à Administração das Finanças”. Eu esperava que essa ameaça obrigasse a mobilizar todos os meios ao alcance do Estado a fim de localizá-la”].
C) Uma ou várias moças. Ottla, sua irmã caçula, é a primeira moça apropriada à transmissão das cartas vindas de Felícia (É ela que aciona a máquina telegráfica mencionada anteriormente) [19: “… aconteceu de minha irmã caçula chegar ali imediatamente e ela começava a telegrafar em meu lugar”]. Em seguida aparece uma criada -“moça delicada cujo andar é muito leve ou talvez hesitante e que traja um vestido cor de folhas mortas”- que lhe estende uma carta da irmã, igualmente caçula, de Felícia (A cena acaba bastante mal porque Kafka se opõe vivamente a que uma criança olhe esta carta por cima de seu braço) [30: “… quando vejo uma das criadas se aproximar e descer ao jardim, é uma moça delicada cujo andar é muito leve ou talvez hesitante e que traja um vestido cor de folhas mortas… Começo a ler com avidez, quando meu vizinho da direita, não sei se é um homem ou uma mulher, provavelmente uma criança, lança um olhar sobre a carta por cima de meu braço. Eu grito: “Não!'”.]
Encontraremos moças, desta vez aos milhares, num sonho em que se aborda uma carta de Felix Weltsch [48: “… muitas moças e mulheres vinham às suas aulas… uma moça qualquer jogava bola… sentada sobre o estrado havia uma moça grande de olhos negros… eu comparava minha ignorância com os imensos conhecimentos dessa moça… havia muitas senhoras. Num banco da segunda fileira à minha frente (coisa estranha, essas senhoras estavam sentadas de costas para o estrado)… havia também uma ligeira semelhança com a moça que fazia a leitura…”]. E é ainda uma moça que o acompanhará quando um atraso de correio complicar um encontro com Milena [58: “… eu não estava só; algumas pessoas me acompanhavam, entre elas uma moça, creio eu…””.
Por último, é num sonho relatado a Ottla que descobriremos a conjunção mais perfeita: carta-moça-máquina-aqui, a máquina de imprensa – pois, para sua grande surpresa, ele se verá lendo um artigo em quatro colunas, escrito por sua irmã, intitulado “Uma Carta” e publicado num seminário sionista de Praga [64: “Esses dias li num sonho um artigo seu na “Selbstwehr”. Era intitulado “Uma Carta”, quatro longas colunas, linguagem muito vigorosa. Era uma carta endereçada a Marta Löwy, que devia consolá-la da doença de Max Löwy. Eu não entendia muito bem por que ela estava no “Selbstwehr”, mesmo assim alegrava-me muito com ela”].
Traços de singularidade
Os traços de singularidade dos sonhos encontram-se em grande número nas novelas, romances (e também nos fragmentos, esboços, variantes…). Destaquemos, a título de ilustração:
A) O que consiste em inclinar para a frente a cabeça ou o corpo.
A menina que aparece com o dorso coberto de círculos vermelhos [3] está com a cabeça dependurada no vazio. No sonho do teatro, onde se representa uma peça de Schnitzler, os espectadores são obrigados a baixar a cabeça e apoiar o queixo contra o espaldar da frente, em razão da disposição do palco [8: “O palco está um pouco abaixo da sala, olha-se para ele baixando a cabeça, o queixo contra o espaldar…”]. No sonho que se passa em Berlim em companhia do pai, Kafka, com o rosto inclinado, olha os excrementos humanos que cobrem seu peito [13]. No da criada e do prato de molho, é o desejo por Felícia que o leva a pousar a cabeça sobre a mesa [21: “O desejo por você me impelia a pousar a cabeça sobre a mesa e a espreitar o que acontecia do seu lado”]. No do “homem no triciclo” ele se acha curvado até o chão, as pernas afastadas [27: “… o triciclo continuava a andar e eu era forçado a segui-lo, inclinado até o chão e as pernas afastadas…”]. Também está encurvado para a frente, acima de um outeiro, quando escreve sobre o que parecia ser uma pedra tumular [38: “… a pedra era muito alta, ele não precisava se abaixar, mas era obrigado a inclinar-se para a frente, pois o outeiro, no qual não queria pisar, o separava dessa pedra”]. É igualmente seu pai quem tenta dependurar-se na janela e que ele retém com todas as suas forças [39: “Ele se debruça ainda mais, eu tendo minhas forças ao extremo para retê-lo”]. Ou então é o doutor H. que está [42: “… sentado atrás de sua mesa de trabalho, não sei como, ao mesmo tempo recostado e inclinado para a frente…”].
B) Os dentes. Trata-se de um caso particularmente significativo de transferências de singularidade dos sonhos para as narrativas (ou o inverso) [23: “… sonhei com dentes o tempo todo; não eram dentes ordenados num maxilar, mas dentes engrenados…”].
[55: “… eu precisava inchar as bochechas e torcer a boca como se me doessem os dentes”.]
C) Os cães [10: “Do outro lado da passagem, o sr. Tschissik chicoteava um são-bernardo loiro e peludo, que ficava em pé diante dele, apoiado sobre as patas traseiras. Não se distinguia claramente se o sr. Tschissik só brincava com o cão… se o cão o tinha atacado seriamente ou se, afinal, ele queria impedi-lo de pular sobre nós”.] [11: “Um cão estava deitado sobre mim, uma pata próxima ao meu rosto…”].
D) Igualmente relacionados a esses índices de submissão: as personagens enfiadas numa libré [31: “… para esta ocasião, foi enfiado numa libré”] – que evoca também aquela do pai de Gregor em “A Metamorfose” ou a do criado de “Um Médico Rural”.
E) Dançarinas e criadas [1: “Eu rogava em sonho à dançarina Eduardowa… criadas e outras balconistas…”.]
[21: “… eu notava a garçonete… o jantar acontecia num hotel e a moça era uma empregada…”.]
[53: “Se se quisesse indicar com mais exatidão que tipo de gente ela é, seria preciso dizer que pertence à categoria das balconistas”.] E, no mesmo paradigma, “carregadoras” [63: “… três moças lindamente vestidas… muito magras, a bem da verdade: carregadoras”].
F) As prostitutas [3: “A fileira de apartamentos era entrecortada por vários bordéis… o último quarto desses apartamentos também era um bordel… as moças estavam deitadas na beirada do assoalho. Eu enxergava nitidamente duas delas, no chão… Eu estava ocupado principalmente com a moça cuja cabeça pendia no vazio… Eu apalpara suas pernas, depois me contentara em pressionar o alto de suas coxas num ritmo regular. Extraíra daí um prazer tão grande que me surpreendia de ainda não ter tido que pagar nada por esse divertimento…”].
G) As mulheres marcadas na carne [8: “… quando passa por cima dela, seu dorso está completamente nu, a pele não é muito nítida, tem até uma equimose, grande como uma maçaneta e esfolada acima da anca direita”.]
H) As moças cegas [2: “Tive, esta noite, uma aparição terrível, a de uma criança cega, aparentemente a menina… Esta criança cega, ou padecendo de uma fraqueza da vista, com os dois olhos ocultos pelos óculos; o olho esquerdo, por trás da lente situada bem longe, era de um cinza leitoso e seu globo saltava, o outro afundava e estava dissimulado por uma lente grudada nele”.]
[17: “No segundo sonho você estava cega… a reunião das moças cegas…”.]
I) As presenças femininas estranhas, para não dizer diabólicas. [58: “… você falando só da maneira mais vaga… Você não se parecia muito com você, você era muito mais negra, com um rosto descarnado…”.] [59: “Minha bem-amada é uma pomba de fogo que passa voando pela terra. Nesse momento ela me mantém abraçado. Mas não são os que ela abraça que ela conduz, e sim os que enxergam”.] [63: “… é que não paramos de nos transformar um no outro… você pegou fogo, não sei como… Mas aí as metamorfoses começaram, e no fim das contas você já não estava lá… No entanto você tinha se tornado diferente, espectral, desenhada a giz no escuro…”.]
Mutações de universo
Constata-se que esses pontos de singularidade oníricos não existem apenas sob forma estática. Eles podem corresponder a transformações internas aos sistemas de referência do tempo, do espaço, do corpo, da vontade etc. – e estamos autorizados a pensar que não foram sem influência sobre as “mutações de universo” próprias às narrativas kafkianas. É assim que se encontram, em certos sonhos, retardamentos que parecem prefigurar os que caracterizam a aproximação de “O Castelo”. Depois de ter, em companhia do pai, atravessado em bonde algumas ruas de Berlim obstruídas por uma quantidade considerável de barreiras pintadas, Kafka escala com grande esforço uma parede coberta de excrementos humanos, que endurecem à medida que ele avança. Seu pai, ao contrário, sobe com facilidade, quase dançando [13: “… erguia-se uma parede dura que meu pai escalava quase dançando, suas pernas flutuavam de tanto que a subida lhe resultava fácil… Eu só chegava no alto com o esforço o mais extremo, de quatro, depois de ter caído repetidas vezes como se a parede ficasse mais dura à medida que eu trepava. O que tornava a coisa ainda mais penosa é que (a parede) era coberta de excrementos humanos que ficavam pendurados em pacotes sobre mim…”].
No sonho das “moças cegas”, ele tem de enfrentar um caminho extremamente abrupto (e ensolarado) [20: “Então eu subia correndo o caminho que ladeava um muro liso e que agora estava extremamente abrupto e ensolarado”]. Ao passo que, no do “homem do triciclo”, ele se encontra numa estrada obstruída por lixo e lama solidificada [27: “Num caminho escarpado, mais ou menos no meio da costa e principalmente sobre a calçada, começando à esquerda caso se olhasse de baixo, havia montes de lixo ou de lama solidificada que tinham se esboroado e progressivamente perdiam altura à direita, enquanto à esquerda elevavam-se tão alto quanto as paliçadas de um cercado”] [28: “Num caminho… mesmo texto que 27 até a conclusão”].
Como em contraponto a essas inibições, em outros lugares aparecem acelerações incoercíveis: as alamedas do cemitério desfilam sob os passos de Josef K., à maneira de uma correnteza rápida [38: “Havia ali alamedas complicadas que serpenteavam da maneira mais incômoda, mas ele deslizou numa delas, como numa correnteza rápida…”], enquanto nas ruas de Viena ele se vê arrastado com Milena numa dupla correnteza de uma “circulação maluca” e de um [58] “diálogo loucamente rápido, todo em pequenas frases, clic, clac, clic, clac, que prosseguem até o fim do sonho”.
Voltemos ao sonho das “moças cegas”, pois talvez ele nos revele uma chave importante desses retardamentos e, simetricamente, das precipitações vertiginosas. Ao termo de sua penosa escalada para juntar-se a Felícia, Kafka percebe que carrega um enorme código de leis austríaco, o qual supostamente deveria ajudá-lo a reencontrar sua noiva e a falar corretamente. Depois se dá conta de que não teria necessidade do código, uma vez que ela ficou cega, portanto, seria preferível livrar-se dele [20: “De repente eu segurava nas mãos um enorme código de leis austríaco que eu tinha muita dificuldade para carregar, mas que devia ajudar-me de um modo ou outro a encontrá-la e a falar-lhe corretamente. A caminho, entretanto, ocorria-me que, já que você era cega, meu aspecto exterior e minhas maneiras felizmente não teriam influência nenhuma sobre a impressão que eu lhe causaria. Depois dessa reflexão, não havia nada que eu quisesse mais do que me livrar do código, no qual eu via um fardo inútil”]. Teria ele, ao final da provação, descoberto um meio mágico para acabar com esta Lei particular que o persegue, que parece disparar em sua amiga uma espécie de cegueira e, no que lhe diz respeito, estranhos comportamentos de evitação? Dois anos mais tarde, em fevereiro de 1914 – seis meses antes do início da redação de “O Processo” -, nós o encontramos em sonho à procura de Felícia. Ele não consegue localizá-la. Será a uma meia hora? Ou a seis minutos? É-lhe impossível obter um guia da cidade. De novo um livro se apresenta como um engodo. Parece um guia, mas na realidade ele não contém senão uma lista das escolas berlinenses, uma estatística fiscal e outras coisas do gênero [32: “Impossível obter um mapa de Berlim. Vejo seguidamente na mão de uma pessoa um livro que parece um guia. E resulta seguidamente que o livro contém algo inteiramente diferente, uma lista das escolas berlinenses, uma estatística fiscal ou não sei o quê do mesmo gênero. Não quero acreditá-lo, mas dão-me provas incontestáveis, sorrindo”]. Sempre a mesma cartografia a-significante do desejo!
Desdobramentos e misturas
A escritura do sonho, a elucidação discursiva de seus pontos de ruptura com a Lei permitem elaborar um levantamento mínimo de seus efeitos vividos, conjurando-os parcialmente. Parecem ir nesse sentido os questionamentos do corpo próprio com:
1) as impressões de desdobramento. [31: “Um homem qualquer me acompanha sempre, uma sombra, um camarada, não sei quem é”.] (Em Berlim, a caminho da casa de Felícia.)
2) as metamorfoses intersubjetivas. [63: “Não cessávamos de nos transformar um no outro, eu era você, você era eu…”.]
3) as misturas incorporais dos corpos. [22: “Nós não nos dávamos o braço, porém estávamos ainda mais próximos”.]
Contudo o fato de levar em conta aspectos processuais positivos, resultantes dos “pequenos desfalecimentos” kafkianos, atos falhos, cisão do eu… deveria proibir-nos de permanecer nas concepções deficitárias do “sintoma”, o qual teria por função simplesmente trazer uma compensação semiótica a um distúrbio. Isso nos leva a distinguir esquematicamente três modalidades no que diz respeito às “técnicas” de tratamento desses pontos de singularidade:
A) Durante uma fase que ainda é pós-expressionista e que dura até a grande crise amorosa com Felícia, um incidente menor terá por consequência desencadear uma catástrofe maior [30: “Uma criança lança um olhar sobre a carta por cima de meu braço. Eu grito “Não!”. Todos os comensais nervosos põem-se a tremer”]. Kafka, ao despertar, esforça-se para reencontrar o fio desse sonho premonitório. Ele não consegue; ou só alguns meses mais tarde, porém dessa vez na realidade, em Berlim, no Askanischer Hof, com o “processo” de ruptura de seu noivado, sobre o qual Elias Canetti escreveu que ele mesmo, Kafka, o preparara “como não o havia feito ainda nenhum réu no mundo”. Podemos reconhecer essa micropolítica do incidente em novelas como “O Veredicto”, com a descoberta de Georges Bendemann de que seu pai lê sua correspondência às escondidas, levando-o a saltar pela janela -o que evoca um raptus psicótico- ou com o despertar desagradável de Gregor Samsa, em “A Metamorfose”, que se transforma em irreversível pesadelo.
B) O incidente perde seu caráter de exterioridade em relação ao acontecimento desencadeante: correlativamente certos textos de sonhos se tornarão eles mesmos indiscerníveis dos textos literários e vice-versa. É o caso em particular daquele do “pequeno desfalecimento” do guarda de mausoléu [45: “… ele tossira e pusera-se a esfregar sua perna esquerda…”] e das diversas novelas que giram em torno do tema do “Holandês Voador”. Porém a mais espetacular ilustração desse novo uso dos traços de singularidade nos é dada com “O Processo”, de cujo manuscrito, aliás, curiosamente, dois sonhos foram excluídos. Esse processo de “fagocitação” e de neutralização das singularidades talvez fosse mais evidente se estivéssemos em condições de reconstituir a ordem verdadeira em que Kafka pensava distribuir os capítulos que nos chegaram. Pode-se, com efeito, sustentar razoavelmente a hipótese de que ele não tinha a intenção de fazer evoluir seu romance para a conclusão catastrófica que conhecemos e que, ao contrário, conduzia seu herói através de uma espécie de percurso iniciático -retomada fantástica do tema goethiano dos “anos de formação”- ao cabo do qual este conseguiria “curar-se” de seu processo.
3) A última modalidade poderia ser chamada de maturação perversa do processo literário. Ela ganha toda sua importância no curso da relação entre Kafka e Milena e da redação de “O Castelo”. Nele o incidente já não só é incorporado e neutralizado na discursividade narrativa; ele desempenha um papel motor e, pode-se até dizer, fundador, de um gozo ficcional. Reencontramos aí, uma vez mais, o tema da perda do objeto amado [57: “… eu tinha esquecido seu endereço, não só a rua, mas também a cidade”]. Segue-se uma reação de desespero e a imprecação já mencionada: que se faça chegar essa mensagem a Milena, custe o que custar, “sob pena de infligir um prejuízo formidável à administração”. Porém no sonho seguinte [58″ as coisas se apresentam de outro modo. Já não há, propriamente falando, incidente desencadeante ou sintoma relacionado à psicopatologia da vida cotidiana, pois o relato não é mais ele mesmo senão um tecido de rasgões, de dilaceramentos das coordenadas espaço-temporais e sociais ordinárias, e o leitor descobre que já está mergulhado na atmosfera de “O Castelo”. Kafka chega a Viena numa movimentação louca para encontrar Milena. Ele está acompanhado de um grupo de pessoas que ele não conhece, gente que fala sem parar, que se mete a torto e a direito em seus negócios (o que evoca os dois “ajudantes” do “Castelo”: Artur e Jeremias). Numa loggia, ao lado de seu marido, Milena aparece como “algo branco-azulado, fluido, espectral”; depois se encadeia um diálogo de pequenas frases ultra-rápidas, já evocado, ao longo do qual eles trocam reflexões desagradáveis sobre seus respectivos trajes. Eles se põem a discutir asperamente sobre se ela o acompanhará e, se não, quando se verão novamente. Os “ajudantes” lhe recordam que ele veio para visitar uma escola -um outro eco do início de “O Castelo”? Dirigem-se todos à estação de trem. Mas ele esqueceu o nome da localidade onde se encontra a tal escola. Ele olha Milena e constata que seu aspecto físico não lhe agrada. A discussão maluca não cessa. Decidirá ela partir com ele? Por fim, através de um silêncio de Milena, a verdade se revela: “De que lhe serviria que eu viesse?”. Franz lhe pergunta se será obrigado a esperá-la o dia inteiro. A única concessão que ele obtém dela -e, na verdade, seu único verdadeiro desejo- é que ela lhe conceda a permissão de esperá-la. E, de novo, o dispositivo de procrastinação epistolar é instaurado [58: “Eu voltava à cidade sem saber como, titubeando. Mas duas horas depois chegavam cartas e flores, bondade e consolação”]. No sonho seguinte, estará sentado ao lado dela [59: “Você me repelirá amavelmente…”]. Mais uma vez, o triângulo da máquina infernal do desejo, da mulher e da carta, que os mantém à distância, fecha-se sobre ele.
A realidade poética em si
Bruno Schulz foi um dos primeiros a insistir sobre o fato de que “os livros de Kafka não são um quadro alegórico, um curso, nem uma exegese de qualquer doutrina, mas uma realidade poética em si”. Por certo, Kafka não é o primeiro a ter inventado um novo modo de produção de subjetividade por meio da literatura. Mas sem dúvida é um dos que mais radicalmente depuraram seus meios, de modo a conferir-lhes uma eficácia “otimizada” -como se diria hoje- no domínio da prosa. O equivalente, de algum modo, a um Lavoisier quando empobreceu qualitativamente os procedimentos da antiga química do flogístico, para revelar as chaves de leitura mais rigorosas das reações químicas.
O próprio Kafka talvez tivesse consciência de participar de um tipo de “corrida de revezamento nunca interrompida”, como o escreveu Nathalie Sarraute, cujo bastão ele teria tomado “das mãos de Dostoiévski, com certeza mais do que de qualquer outro”. É verdade que suas obras, do ponto de vista do conteúdo, estão nas antípodas uma da outra; mas em ambas reencontra-se efetivamente a mesma preocupação de aprofundamento “polifônico” do romance, a mesma exploração das “harmônicas sociais” através do discurso e da língua do outro, para retomar expressões de Bakhtin.
Nessa perspectiva, parece-me que o lugar ocupado pelos sonhos no modo de produção da subjetividade kafkiana deve ser realçado. Pois, longe de corresponder a um fechamento sobre si, a um qualquer narcisismo, ele marca uma abertura analítica sobre exteriores insuspeitados, aqueles de um certo “ar do tempo”, encarnando novos gestos e reflexos de um “socius” cada vez mais submetido ao domínio das burocracias ascendentes. Novos ritornelos, novos “cronotopos”, descreve Bakhtin, operando tanto aquém da unidade da pessoa quanto propriamente na história das longas durações. O objetivo desta produção é sempre duplo, ambíguo, ao mesmo tempo defensivo e ofensivo. Trata-se, por um lado, de ultrapassar o horror da “sólida delimitação dos corpos” e, por outro, de promover um gozo da carta -frequentemente qualificada de diabólica-, colocando em circulação efeitos de sentido, afectos incorporais e máquinas abstratas capazes de dar expressão não só às formações atuais do inconsciente, mas também às de nosso futuro imediato, tal como ele pôde ser “calculado” por meio dos “lances de dado” geniais que constituíram a vida de Kafka.
Os sonhos kafkianos, a exemplo do “grande teatro da natureza” abordado no final de “América”, mobilizam os meios semióticos os mais diversos e heterogêneos: os do teatro, da dança, do cinema, da música, das formas plásticas e, ainda uma vez, por certo, da escritura! Recordemo-nos daquele sonho em que se representava, entre outras coisas, uma festa imperial seguida de uma revolução, da qual Kafka nos dá as didascálias [7: “Tudo era teatro, ora eu estava no alto na galeria, ora no palco… o cenário era tão grande que não havia outra coisa para ver, nem palco, nem sala, nem escuridão, nem rampa luminosa…”].
NOTA
1. Os sonhos de Kafka foram numerados e postos entre colchetes por Félix Guattari, para a antologia que ele estava preparando.
Félix Guattari foi filósofo e psicanalista francês (1930-92). É autor de “O Inconsciente Maquínico” (ed. Papirus), “Caosmose” (ed. 34), entre outros, e co-autor (com Gilles Deleuze) de “Mil Platôs” (ed. 34) e “O Anti-Édipo”. Este texto foi redigido em 1985 e se encontra nos arquivos do IMEC (Institut Mémoires de l’édition Contemporaine). Tratava-se de um trabalho preparatório, e as correções manuscritas pelo autor foram aqui levadas em consideração.
Copyright: Herdeiros Guattari.
Tradução de PETER PÁL PELBART.
Artigo publicado em 16 de fevereiro de 2003 na Folha de SP. E mais recentemente em 2012 no livro MÁQUINA KAFKA, editora n-1. 2ª edição foi publicada em 2022.