O filósofo Gilles Deleuze (1925-1995) faleceu em 4 de novembro de 1995, a menos de um mês após sua morte, o filósofo Jacques Derrida (1930-2004) publicou no Jornal Libération um artigo sob o título Terei que errar só, onde evoca lembranças de seus encontros com Deleuze. No Brasil o artigo (reproduzido abaixo) foi publicado pelo Jornal Folha de S. Paulo, traduzido por Luciana Artacho Penna.
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JACQUES DERRIDA
ESPECIAL PARA O “LIBÉRATION”
Tanta coisa a dizer, e me falta entusiasmo hoje. Tanta a coisa a dizer sobre o que nos acontece e também sobre o que me acontece com a morte de Gilles Deleuze, com uma morte sem dúvida receada (nós o sabíamos muito doente), mas também com esta morte, esta imagem inimaginável que, no acontecimento, aprofundaria mais, se fosse possível, o doloroso infinito de um outro acontecimento.
O Deleuze pensador é sobretudo o pensador do acontecimento, sobretudo deste acontecimento. Ele o foi do começo ao fim. Releio o que dizia do acontecimento, já em 1969, em um de seus maiores livros, “Lógica do Sentido”. Ele cita Joë Bousquet (“A meu gosto pela morte, que era uma falência da vontade…”) e acrescenta: “De um certo modo, deste gosto a este desejo, nada muda, a não ser uma mudança de vontade, uma espécie de salto no mesmo lugar do corpo todo, que troca sua vontade orgânica por uma vontade espiritual e que agora quer não exatamente o que acontece, mas alguma coisa no que acontece, alguma coisa que chegue em conformidade com o que acontece, seguindo as leis de uma obscura conformidade humorística: o acontecimento. É neste sentido que o Amor fati se confunde com o combate dos homens livres” (seria preciso citar interminavelmente).
Tanta coisa a dizer, sim, sobre o tempo em que com tantos outros de minha “geração” me foi dado partilhar, com Deleuze, a chance de pensar graças a ele, pensando nele. Desde o início, todos os seus livros (mas sobretudo “Nietzsche”, “Diferença e Repetição” e “Lógica do Sentido”) foram para mim grandes desafios para pensar, é claro, mas além disso, ao longo de diferenças bastante evidentes no que eu chamaria, na falta de outros termos, de “gesto”, “estratégia”, “modo”: de escrever, de falar e talvez de ler, a experiência sempre muito perturbadora de uma proximidade ou de uma afinidade quase total nas “teses”, se se puder chamá-las assim. Embora a palavra não seja conveniente, para quem olha essas “teses”, particularmente a que concerne a uma diferença irredutível à oposição dialética, uma diferença “mais profunda” que uma contradição (“Diferença e Repetição”), uma diferença na afirmação alegremente repetida (“sim, sim”), o fato de levar em conta o simulacro, Deleuze sem dúvida permanece, apesar de todas as dessemelhanças, aquele do qual sempre me julguei o mais próximo entre todos desta “geração”. Nunca senti anunciar-se em mim, nem mesmo virtualmente, a menor objeção contra qualquer um de seus discursos, ainda que tenha me ocorrido murmurar contra uma ou outra proposição de “O Anti-Édipo” (foi o que lhe disse num dia em que voltávamos de carro de Nanterre, depois de uma defesa de tese sobre Espinosa), ou contra a ideia de que a filosofia consiste em “criar” conceitos. Um dia, gostaria de tentar explicar-me acerca deste acordo sobre o “conteúdo” filosófico, quando este acordo já não excluir todos os desvios que ainda hoje não sei nomear ou situar. (Deleuze aceitou a ideia de publicar um dia uma longa conversa improvisada entre nós sobre este assunto e foi preciso então esperar, esperar demais). Sei somente que entre nós estas diferenças só deixaram lugar para a amizade. Que eu saiba, nenhuma sombra, nenhum signo, nunca indicou o contrário. Isto é bastante raro num meio como o nosso, o que me justifica o desejo de notá-lo aqui, neste instante. Esta amizade não se restringia apenas ao fato, aliás muito significativo, de termos os mesmos inimigos.
Nós nos víamos pouco, é verdade, sobretudo nos últimos anos. Mas escuto ainda o riso de sua voz me dizer tantas coisas, das quais gosto de me lembrar: “Meus votos, meus votos”, sussurrava-me, com uma ironia gentil, num verão de 1955 no pátio da Sorbonne, quando eu estava prestando meu concurso. Ou, então, com a mesma solicitude do mais velho: “Fico triste vendo-o dedicar tanto tempo a esta instituição (o Collège International de Philosophie), preferia que você escrevesse…”. Depois, lembro-me dos memoráveis dez dias sobre Nietzsche em Cerisy, em 1972, e de tantos outros momentos que, sem dúvida com Lyotard (que também estava lá), me fazem sentir muito só, sobrevivente e melancólico, nisso a que, com esta palavra horrível e um pouco falsa, chamamos de uma “geração”. Cada morte é única e portanto insólita, mas o que dizer do insólito quando, de Barthes a Althusser, de Foucault a Deleuze, ele multiplica na mesma geração, como que em série -Deleuze foi também o filósofo da singularidade serial – todos estes finais incomuns?
Sim, todos nós amamos a filosofia, ninguém pode negá-lo. Mas a verdade, ele mesmo o disse, é que Deleuze era entre todos desta “geração” o que o “fazia” mais alegremente, mais inocentemente. Creio que ele não gostaria da palavra que usei pouco acima, “pensador”. Teria preferido “filósofo”. Neste ponto, ele se dizia “o mais inocente (o mais destituído de culpa) ao fazer filosofia” (“Conversações”).
Esta era, sem dúvida, a condição para marcar profundamente a filosofia deste século, com uma marca que permanecerá sua, incomparável. A marca de um grande filósofo e de um grande professor. O historiador da filosofia que procedeu a uma espécie de eleição “configural” de sua própria genealogia (os estóicos, Lucrécio, Espinosa, Hume , Kant, Nietzsche, Bergson etc.) foi também um inventor de filosofia, que nunca se encerrou num “domínio” filosófico (escreveu sobre pintura, cinema e literatura, Bacon, Lewis Carroll, Proust, Kafka, Melville etc.).
Aliás, quero dizer aqui que eu admirava sua maneira – sempre acertada – de lidar com as imagens, os jornais, a televisão, a vida pública e as transformações que ela sofreu nas últimas décadas. Economia e retiro vigilante. Sentia-me solidário com o que ele fazia e dizia acerca disso tudo, como por exemplo numa entrevista do “Libération” na época da publicação de “Mil Platôs”. “Seria preciso saber, dizia ele, o que se passa hoje no mundo dos livros. Nos últimos anos, vivemos um período de reação em todos os domínios. Não há razão para que os livros sejam poupados. Estão sendo fabricados um espaço literário, tanto quanto um espaço judiciário, um espaço econômico e político, completamente reacionários, pré-fabricados e esmagadores. Há nisso um atentado sistemático, que o ‘Libération’ deveria analisar”. “É bem pior que uma censura”, acrescentava, mas “este período seco não perdurará necessariamente”. Talvez, talvez.
Como Nietzsche e Artaud, como Blanchot, Deleuze nunca deixou de olhar para esta aliança entre a necessidade e o aleatório, o caos e o intempestivo. Quando escrevia sobre Marx no pior momento, há três anos, tranquilizava-me um pouco pensando que ele também pretendia fazê-lo.
Nesta tarde leio que em 1990 ele dizia: “Félix Guattari e eu permanecemos sempre marxistas, talvez de dois modos diferentes, mas permanecemos os dois. Não acreditávamos numa filosofia política que não fosse centrada na análise do capitalismo e de seus desdobramentos. O que mais nos interessa em Marx é a análise do capitalismo como sistema imanente, que não deixa de repelir seus próprios limites, e que os reencontra sempre numa escala maior, porque o limite é o próprio Capital”.
Continuarei ou recomeçarei a ler Gilles Deleuze para aprender e terei de errar só nesta longa conversa que deveríamos ter tido juntos. Minha primeira questão, creio, diria respeito a Artaud, à sua interpretação do “corpo sem órgãos”, à palavra imanência, que ele sempre usou para fazê-la dizer ou deixar de dizer alguma coisa que ainda permanece sem dúvida um segredo. E tentaria lhe dizer porque seu pensamento nunca me abandonou em quase 40 anos. Como ele o fará daqui para frente?