Resumo: Com o artigo problematiza-se três questões colocadas pela psicose: a da psicose como doença que interpela as normas sociais, a da perda da realidade no delírio e a do deslizamento da linguagem no esquizofrênico, a partir da leitura de O Anti-Édipo.
Introdução
Retomar o tema das psicoses pode dar a impressão de uma certa nostalgia, afinal, a loucura, hoje, já não assusta mais ninguém. Como afirmou Pelbart recentemente, o sonho de que a loucura pudesse encarnar a promessa de um “fora absoluto” caducou (PELBART, 2003, p. 179) (Aspas do autor). Além disso, estamos deixando de ser a sociedade disciplinar, que segregava o louco em suas instituições totais, e nos transformando na sociedade pós-disciplinar ou de controle, em que as antigas estratégias de gestão das populações com problemas estão sendo substituídas. Castel foi um dos autores que, no final do século XX, apontou a direção que essas mudanças vinham tomando:
“A crítica das intervenções médico-psicológicas centrou-se, no decorrer do último decênio, na denúncia de seu caráter diretamente coercitivo. Além da sensibilidade política da época, esse preconceito se deveu ao fato de que as práticas tomadas por alvo pertenciam, principalmente, aos dois grandes dispositivos que historicamente se constituíram como paliativos dos disfuncionamentos do consenso social: o modelo segregativo e o modelo assistencialista. A exclusão de certas formas de desvio, depois a intervenção in vivo na comunidade para reduzi-las, foram de fato as principais estratégias da gestão das populações com problemas que sucessivamente, depois simultaneamente, ocuparam a frente do palco desde o século XIX. A situação está hoje profundamente modificada em razão da emergência recente de uma terceira estratégia, cuja vocação poderia ser também global: não se trata somente, mesmo se se trata ainda, de manter a ordem psicológica ou social corrigindo seus desvios, mas de construir um mundo psicológico ou social ordenado trabalhando o material humano; não somente reparar ou prevenir deficiências, mas programar a eficiência. Tal seria a ordem pós-disciplinar que não passaria mais pela imposição dos constrangimentos, mas pela mudança e a gerência do fato humano em função das figuras novas sob as quais se apresenta a necessidade social” (CASTEL, 1987, p. 178-179).
Por que então retornar a esse tema, quando os psicóticos, suficientemente docilizados pelos novos psicofármacos e pelos novos dispositivos de tratamento, estão voltando para casa, convivendo em sociedade e sendo tratados como os outros doentes nos hospitais gerais?
Volta-se ao tema para, em primeiro lugar, retomar alguns fios da questão que haviam ficado em suspenso. Afinal, parafraseando Canguilhem, “A bibliografia de uma questão sempre tem que ser atualizada, mesmo no sentido retroativo” (CANGUILHEM, 1990, p. 207). Não se trata da leitura de trabalhos publicados no intervalo entre um trabalho anterior (Silva, 1997, 2001) e este, mas de leituras já feitas que, por falta de tempo e fôlego, só agora são retomadas. Em segundo lugar, volta-se a falar do tema para tentar reatar esses fios à discussão contemporânea, com o intuito de entender o que se passou para que o psicótico deixasse de ser aquele que interroga o social e, a partir disso, tentar compreender o que se passa hoje.
Por fim, porque ainda é preciso refletir sobre o destino dos psicóticos, não tanto o daqueles que podem se beneficiar dos tratamentos de ponta, que, no Brasil, estatisticamente falando, ainda são minoria, mas o da grande massa de institucionalizados, tornada inerte, que ainda permanece nos nosocômios como dejetos da antiga “fábrica de internações”, parcialmente desativada por já não render mais os lucros exorbitantes de outrora.
As Questões
O tema das psicoses, desde o primeiro contato, me pareceu interessantíssimo e levantou uma série de questões. A primeira, e mais visível, era a de que o psicótico, fosse pela bizarria de seu comportamento ou pela pecha de desviante com a qual era tachado, interpelava as normas e convenções sociais. Além disso, aprendemos em Freud que o psicótico, diferentemente do neurótico, era aquele que se recusava a aceitar a realidade, construindo no lugar dela, uma nova realidade – o delírio. Mais tarde com Lacan e, depois, com a prática clínica aprendemos que as psicoses operam um “deslizamento” na linguagem diante do qual é impossível ficar impassível: que fala (e que escrita?) é essa que nos desconcerta e nos interroga?
Psicose, família e sociedade
Uma pista para a primeira questão podia ser encontrada nos teóricos da antipsiquiatria que buscavam na família e no contexto social uma explicação para a esquizofrenia:
“No momento presente começamos apenas a arranhar a superfície das origens deste especial sistema de atribuição de doença a um membro de um sistema social. Não só devemos procurar determinar como e porque é, em certas circunstâncias, conveniente, e até aparentemente inevitável, considerar um membro de uma estrutura social atacado por uma doença chamada esquizofrenia, mas também em que medida o comportamento diagnosticado como esquizofrênico se torna mais inteligível quando situado no contexto da original situação social a que pertence” (LAING, 1971, p. 62).
Mas se era preciso chegar até o contexto da original situação social a que o esquizofrênico pertencia, nada melhor do que uma perspectiva que rebatesse essa explicação no sistema de produção. A leitura de O Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, permitiu encontrar respostas para a primeira questão (e posteriormente, como veremos, para as outras duas): o esquizofrênico não só “esbarra” no social, mas é produto de nossa época, uma expressão sintomática do socius. Nada tão fácil, como à primeira vista poderiam nos fazer crer os antipsiquiatras. O percurso proposto pelos filósofos franceses é árduo e exigirá um aprofundamento que nos conduzirá a uma articulação entre Freud e Marx.
Ao afirmar que a esquizofrenia é a doença de nossa época, os autores não pretendem dizer apenas que a vida moderna enlouquece. Não se trata de modo de vida, mas de processo de produção. Para Deleuze e Guattari, a distinção homem-natureza, indústria-natureza, sociedade-natureza já pressupõe não só o capital e a divisão do trabalho, mas também a falsa consciência que o ser capitalista toma de si e dos elementos coagulados de um processo em conjunto. “Tanto, que tudo é produção: produções de produções, de ações e de paixões, produções de registros, de distribuições e de marcações, produções de consumo, de volúpias de angústias e de dores” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 18) (Grifo dos autores).
Para ultrapassar essas categorias ideais, é preciso buscar seu princípio imanente: a produção desejante. Para os autores, a grande descoberta da psicanálise foi a produção desejante, e é essa descoberta de Freud que eles retomam, porém num sentido bem diferente daquele que lhe foi dado pelo pai da psicanálise: para eles, a produção desejante é multiplicidade pura e não há evolução das pulsões em direção a uma totalidade. Aqui, o desejo é pensado como produção e não como aquisição.
Mas de que modo se relacionam então capitalismo e esquizofrenia? Para entender melhor essa passagem, é preciso acompanhar, com os autores, em que o capitalismo difere dos modos de produção que o antecederam.
O capitalismo supõe um desmantelamento das grandes máquinas sociais precedentes. A primeira forma de socius é a máquina territorial que, com seu motor imóvel, a terra, já se constitui em uma mega-máquina que codifica os fluxos de produção, de meios de produção, de produtores e consumidores: o corpo pleno da terra reúne em si as espécies cultiváveis, os instrumentos aratórios e os órgãos humanos (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 180).
Trata-se de fazer para o homem uma memória, num processo cruel em que a cultura põe, à força, a produção no desejo e, inversamente, insere, à força, o desejo na produção e na reprodução sociais.
“O problema do socius sempre foi este: codificar os fluxos de desejo, registrá-los, fazer com que nenhum fluxo escorra sem ser tampado, canalizado, regulado. Quando a máquina territorial primitiva deixou de ser eficiente, a máquina despótica instaurou uma espécie de sobrecódigo. Mas a máquina capitalista, enquanto se estabelece sobre as ruínas mais ou menos longínquas de um Estado despótico, se acha numa situação totalmente nova: a decodificação e a desterritorialização dos fluxos. O capitalismo não enfrenta essa situação de fora, pois ele vive dela, e nela encontra ao mesmo tempo sua condição e sua matéria, e a impõe com toda a violência […] Ele nasce, realmente, do encontro entre duas espécies de fluxo, fluxos decodificados da produção sob a forma do capital-dinheiro, fluxos decodificados do trabalho sob a forma do trabalhador livre. Assim, ao contrário das máquinas sociais precedentes, a máquina capitalista é incapaz de fornecer um código que cubra o conjunto do campo social. À própria ideia do código, ela substituiu no dinheiro uma axiomática das quantidades abstratas “(DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 50-51) (Grifo dos autores).
“O capitalismo define um campo de imanência, e não cessa de preencher esse campo, Mas esse campo desterritorializado se acha determinado por uma axiomática, ao contrário do campo territorial determinado pelos códigos primitivos” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 318).
Marx chamou de “lei da tendência contrariada” o duplo movimento da baixa tendencial da taxa de lucro e do crescimento da massa absoluta de mais-valia. Em decorrência dessa lei, ocorre o duplo movimento da decodificação ou da desterritorialização dos fluxos, e de sua re-territorizalização violenta e artificial, de modo que quanto mais a máquina capitalista desterritorializa, decodificando e axiomatizando os fluxos para extrair a maisvalia, mais seus aparelhos anexos, burocráticos e policiais re-territorializam com toda força, enquanto absorvem uma parte crescente de mais-valia (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 52-53).
O capitalismo tende, então, a um limiar de decodificação que desfaz o socius em proveito de um corpo sem órgãos. O corpo sem órgãos é o socius desterritorializado, deserto onde escorrem os fluxos decodificados do desejo. No corpo sem órgãos nada é representativo, tudo é vida e é vivido. Há uma experiência esquizofrênica das quantidades intensivas em estado puro, até um ponto quase insuportável, estados de intensidade pura e crua despidos de sua figura e forma. Nesse sentido, o esquizofrênico é o mais próximo da matéria, de um centro intenso e vivo da matéria. O esquizofrênico é o que ultrapassou o limite, a esquiza, que mantinha a produção do desejo sempre à margem da produção social, tangencial e sempre repelida. O capitalismo não tem limite exterior, mas tem um que é a esquizofrenia – a decodificação absoluta dos fluxos, limite que ele repele e conjura.
“A esquizofrenia como processo é a produção desejante, mas tal como ela é no fim, como limite da produção social determinada nas condições do capitalismo. É nossa ‘doença’. Nós, homens modernos. Fim da história não tem outro sentido. Nela se reúnem os dois sentidos de processo, como movimento da produção social que vai até o fim de sua desterritorialização, e como movimento da produção metafísica que leva e reproduz o desejo em uma nova Terra.” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 169).
A esquizofrenia é o limite absoluto na medida em que os esquizo-fluxos atravessam o muro, embaralham todos os códigos e desterritorializam o socius no corpo sem órgãos. Mas o capitalismo é o limite relativo, pois, em função do movimento que o caracteriza, não cessa de fazer escorrer fluxos efetivamente decodificados e de substituir os códigos por uma axiomática contábil, ainda mais opressiva. Antes de ser a afecção do esquizofrênico artificializado, personificado no autismo, a esquizofrenia é o processo de produção do desejo e das máquinas desejantes. Mas como se passa de um a outro? A produção capitalista, ao mesmo tempo em que o engendra, não cessa de paralisar o processo esquizofrênico, pois não há formação social que não pressinta ou não preveja a forma real, sob a qual o limite pode acontecer-lhe e que ela conjura com todas as suas forças. A produção capitalista transforma o seu sujeito em entidade clínica fechada, pois é como se visse, nesse processo, a imagem de sua própria morte vinda de dentro.
A esquizofrenia é, então, o produto da máquina capitalista, assim como a mania depressiva e a paranóia são o produto da máquina despótica e a histeria é o produto da máquina territorial.
Para os autores, as definições atuais do neurótico, do perverso e do psicótico não se esgotam nas pulsões, já que elas são apenas as próprias máquinas desejantes, mas devem ser pensadas em relação às territorialidades modernas. O neurótico fica instalado nas territorialidades residuais ou artificiais de nossa sociedade e as rebate todas sobre Édipo como última territorialidade. O perverso é aquele que toma o artificial ao pé da letra e instaura territorialidades infinitamente mais artificiais que as propostas pela sociedade, assim como novas famílias infinitamente artificiais, sociedades secretas e lunares. Quanto ao esquizofrênico, com seu passo vacilante, que não cessa de migrar, errar e tropeçar se aprofunda cada vez mais na desterritorialização sobre seu próprio corpo sem órgãos no infinito da decomposição do socius, e essa talvez seja sua maneira de reencontrar a terra (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p.53).
“O esquizofrênico se mantém no limite do capitalismo: ele é a tendência desenvolvida, o subproduto, o proletário e o anjo exterminador. Ele embaralha todos os códigos e carrega os fluxos decodificados do desejo. O real flui.Os dois aspectos do processo se reúnem: o processo metafísico que nos põe em contato com o ‘demoníaco’ na natureza ou no coração da terra, o processo histórico da produção social que restitui às máquinas desejantes uma autonomia em relação à máquina social desterritorializada. A esquizofrenia é a produção desejante como limite da produção social. A produção desejante e a sua diferença de regime com a produção social, estão, portanto, no final, e não no começo. De uma a outra só há um devir, que é o devir da realidade. E se a psiquiatria materialista se define pela introdução do conceito de produção no desejo, ela não pode evitar colocar em termos escatológicos o problema da relação final entre a máquina analítica, a máquina revolucionária e as máquinas desejantes “ (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 53-54).
A esquizofrenia é vista, então, pelos autores como um modo de subjetivação cujos sintomas interrogam e funcionam como analisadores do modo de produção capitalista. Tal como a histeria e seus sintomas teriam interrogado Freud nos primórdios da psicanálise:
“As diferenças com que a psicanálise teve que se haver em seus primórdios, […] apresentaram-se a Freud pela voz da histeria. De que nos fala a histeria? De um homem desorientado por se ver exposto ao trágico numa intensidade maior do que a habitual. Esta situação o assusta porque ele explora o transhumano como numa tenebrosa viagem ao avesso da forma, seu negativo: este é o seu problema” (ROLNIK, 1995, p. 2).
Este homem, que de repente se vê vertiginosamente exposto ao trágico e se desespera, é o homem do final do século XIX, cuja subjetividade, até então baseada num sistema absoluto e próximo da estabilidade (quer este absoluto fosse Deus, a consciência ou a interioridade) vê ruir a crença na eternidade de sua forma. buscando para isso uma resposta contemporizadora. Tal resposta consiste em colocar-se numa posição de demanda de reconhecimento em que, através da sedução de um outro idealizado, busca uma restauração especular de si (Rolnik, 1995, p.2). “O que chega aos ouvidos de Freud sãos os ecos dessa angústia acompanhada de uma demanda: encontrar um modo de subjetivação que seja uma resolução menos paliativa que a histeria.” (ROLNIK, 1995, p. 2)
Para os autores, o que Freud teria descoberto, para logo depois sacrificar Édipo, foi o inconsciente produtivo, “a máquina desejante que rosna no fundo do inconsciente” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 74). A psicanálise, ao explicar a neurose e as psicoses e forçar a introdução de Édipo no inconsciente, rebate tudo em pai e mãe e, nesse movimento, nada mais tem mais a ver com o campo social investido pela libido. Não se trata de negar que haja sexualidade edipiana, mas sim de que estas sejam produções do inconsciente.
Um dos exemplos mais nítidos em que essa redução ao tema paternal ocorre é no caso Schreber, em que todo o conteúdo político, social e histórico de seu delírio é esvaziado, sendo invocado um argumento sexual que consiste em operar a soldadura da sexualidade e do complexo familiar.
Mas, para Deleuze e Guattari, “cada psicanalista deveria saber que através de Édipo e atrás de Édipo é às máquinas desejantes que ele enfrenta. No começo, os psicanalistas não podiam não ter consciência do forçamento operado para introduzir Édipo, injetá-lo em todo o inconsciente”. Da mesma forma, que “no princípio também, dizia Marx, os primeiros capitalistas não podiam não ter consciência…” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 77) (Grifo dos autores).
Quando se rebate todos os agentes da produção e da antiprodução social sobre as figuras da reprodução familiar, compreende-se que a libido assustada não se arrisque mais a sair de Édipo e a interiorize. Em outras palavras, as forças desejantes que poderiam questionar e investir na transformação das instituições sociais se interiorizam na forma de uma dualidade castradora entre o sujeito do enunciado e o sujeito da enunciação, característica do fantasma pseudo-individual. Mas essa dualidade é derivada e supõe uma relação direta com agentes coletivos de enunciação no fantasma de grupo (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 87- 88).
“Michel Foucault pôde notar até que ponto a relação da loucura com a família era fundada em um desenvolvimento que afetou o conjunto da sociedade burguesa no século XIX, e que confiou à família funções através da quais eram avaliadas a responsabilidade de seus membros e sua culpabilidade eventual. Ora, na medida em que a psicanálise envolve a loucura em um ‘complexo parental’, e encontra a confissão de culpabilidade nas figuras de autopunição que resultam do Édipo, ela não inova, mas completa o que tinha começado a psiquiatria do século XIX: fazer subir um discurso familiar e moralizado da patologia mental, ligar a loucura ‘`a dialética meio real meio imaginária da família’, decifrar nela o atentado incessante contra o pai, a surda batida dos instintos contra a solidez da instituição familiar e contra seus símbolos mais arcaicos. Então, em vez de participar de uma empresa de liberação efetiva, a psicanálise toma parte na obra de repressão burguesa mais geral, a que consistiu em manter a humanidade européia sob o jugo de papai-mamãe, e em não terminar com esse problema” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 69).
Para os autores, o paralelismo Marx-Freud fica totalmente estéril e indiferente, se se reduz a encenar termos que se interiorizam ou se projetam um no outro sem deixarem de ser estranhos. Para Deleuze e Guattari, a produção social é unicamente a própria produção desejante em condições determinadas. O campo social é imediatamente percorrido pelo desejo, e é seu produto historicamente determinado. A libido não precisa de nenhuma mediação ou sublimação, nenhuma operação psíquica e nenhuma transformação para investir as forças produtivas e as relações de produção. Não há senão o desejo e o social, e nada mais. Nesse sentido, a única maneira de ultrapassar esse paralelismo seria descobrir a maneira pela qual a produção social e as relações de produção são uma instituição do desejo, e o modo pelo qual os afetos ou as pulsões fazem parte da infra-estrutura.
“Mesmo as forças mais repressivas e mais mortíferas da reprodução social são produzidas pelo desejo, na organização que deriva dele sob esta ou aquela condição que deveremos analisar. Eis porque o problema fundamental da filosofia política permanece aquele que Spinoza soube colocar (e que Reich redescobriu): ‘Por que os homens combatem pela sua servidão como se fosse a sua salvação?’” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 46-47).
Os autores propõem, assim, uma ampliação da definição de subjetividade que ultrapassa a oposição clássica entre sujeito individual e sociedade, e a consideram sob o ângulo da sua produção, o que não implica, no entanto, voltar aos sistemas tradicionais de determinação do tipo infra-estrutura material-superestrutura ideológica. Para Guattari, a subjetividade é polifônica (no sentido dado a este termo por Bakhtine), não conhecendo nenhuma instância dominante de determinação que guie as outras instâncias segundo uma causalidade unívoca (GUATTARI, 1993, p.35).
Ao enfatizar o papel preponderante dos fatores subjetivos na atualidade, Guattari afirma:
“De um modo geral, pode-se dizer que a história contemporânea está cada vez mais dominada pelo aumento de reivindicações de singularidade subjetiva – querelas lingüísticas, reivindicações autonomistas, questões nacionalísticas, nacionais que, em uma ambigüidade total, exprimem por um lado uma reivindicação de tipo liberação nacional, mas que, por outro lado, se encarnam no que eu denominaria reterritorializações conservadoras da subjetividade” (GUATTARI, 1993, p. 13).
Para o autor, nem a sociologia nem as ciências afins (econômicas, políticas, jurídicas) estariam aptas a dar conta do “coquetel subjetivo contemporâneo” (Guattari, 1993, p.13). Por outro lado, tampouco a psicanálise tradicional está mais bem preparada para lidar com esses problemas, “devido à sua maneira de reduzir os fatos sociais a mecanismos psicológicos” (GUATTARI, 1993, p. 14).
A opção dos autores é clara: manter a invenção genial de Freud, criticando a psicanálise no aspecto em que se apresenta como forma universal, sem levar em conta os aspectos históricos e sociais, atingindo, com isso, principalmente, a psicanálise lacaniana:
“… Deleuze e Guattari apoiaram-se explicitamente na teoria das pulsões de Freud. Criticando o modelo lacaniano do inconsciente, eles pretenderam conduzir Freud na direção de uma “psiquiatria materialista”. É como se fosse preciso apoiar-se necessariamente em Freud para criticar Lacan e devolver à psicanálise o que Lacan, na leitura que ele havia feito dela, havia posto entre parênteses. Mas era preciso, ao mesmo tempo, radicalizar os enunciados freudianos indo muito mais longe que Freud. Daí a formulação aparentemente paradoxal de Deleuze e Guattari: ser freudiano contra Freud, pois seria necessário tirar as conseqüências teóricas e políticas que este ignorou para a psicanálise” (BIRMAN, 2000, p. 469).
Ao enfatizar que a grande descoberta da psicanálise foi a da produção desejante – as produções do inconsciente – Deleuze e Guattari denunciam que essa descoberta foi logo ocultada por um novo idealismo: “… no lugar de inconsciente como usina, colocou-se um teatro antigo; no lugar das unidades de produção colocou-se a representação; no lugar do inconsciente produtivo colocou-se um inconsciente que só podia exprimir-se (o mito, a tragédia, o sonho…).” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 41)
“O inconsciente maquínico, diversamente do inconsciente psicanalítico, não é um inconsciente representativo, cristalizado em complexos codificados e repartidos sobre um eixo genético; é o construir, como um mapa” (GUATTARI, 1988, p.18).
A crítica recai, ainda, sobre o peso desmesurado que os estruturalistas atribuíram ao significante e, mais particularmente, à psicanálise em sua ver são lacaniana, a do “inconsciente estruturado como linguagem”:
“Os novos psicanalistas elaboraram modelos teóricos mais apurados e melhor depurados que os antigos: propõem-nos atualmente um inconsciente estrutural esvaziado de todo o antigo folclore freudiano ou junguiano (…) segundo eles, o ‘inconsciente seria estruturado como uma linguagem’. (…) Temos o inconsciente que merecemos! E devo confessar que o dos psicanalistas estruturalistas me convém menos ainda que o dos freudianos, dos junguianos ou dos reicheanos!” (GUATTARI, 1988, p.9).
Uma das razões para essa crítica reside no fato de que a atitude dos lingüistas e dos semiólogos – de creditar um alto grau de cientificidade às teorias lingüísticas e semiológicas – coincidiria perfeitamente com a dos psicanalistas quanto a evitar “qualquer transbordamento de sua respectiva problemática dos domínios políticos, sociais, econômicos, tecnológicos concretos que lhes dizem respeito” (GUATTARI, 1988, p. 6).
“O acaso e a estrutura são os dois maiores inimigos da liberdade. Induzem ao mesmo ideal conservador de axiomatização geral das ciências que invadiu seu campo depois do fim do século XIX. E como, por acréscimo, tornaram-se inseparáveis da tradição filosófica do sujeito puro do conhecimento, inacessível às transformações históricas, conduzem-nos muito depressa ao discurso balbuciante e esclerosado da epistemologia. É sempre o mesmo vai-e-vem: através da promoção de uma ordem transcendente fundada no caráter pretensamente universal das articulações significantes de certos enunciados – o Cogito, as leis matemáticas e científicas, etc., esforçamo-nos por sancionar certos tipos de formação de poderes confirmando, na mesma ocasião, o estatuto social e a segurança imaginária de seus notáveis e de seus escribas nos domínios da ideologia e da ciência” (GUATTARI, 1988, p. 13).
Outro ponto criticado pelos autores é o fato de os estruturalistas terem reduzido todas as compleições reais (como, por exemplo, as da cotidianidade, do sonho, da paixão, do delírio, da depressão e da experiência estética) à economia significante – já que estas “não são todas da mesma cor ontológica” (GUATTARI, 1993, p.100).
“Mas voltemos à lógica dos conjuntos discursivos: é a do Capital, do Significante, do Ser com um S maiúsculo. O Capital é o referente da equivalência generalizada do trabalho e dos bens, o Significante o referente capitalístico das expressões semiológicas, o grande redutor da polivocidade ontológica. O verdadeiro, o bom, o belo são categorias de ‘normatização’ dos processos que escapam à lógica dos conjuntos circunscritos. São referentes vazios, que criam o vazio, que instauram a transcendência nas relações de representação” (GUATTARI, 1993, p.42).
A crítica à psicanálise, e, particularmente, à sua versão lacaniana, é clara: ao reduzir afetos e pulsões a significantes vazios que instauram a transcendência nas relações de representação opera da mesma forma que o capitalismo, de modo que se as grandes territorialidades desmoronam, a estrutura procede a todas as reterritorializações subjetivas e privadas:
“Pode-se sempre remeter Édipo ao imaginário, mas ele é reencontrado, mais forte e mais inteiro, mais em falta e triunfante pelo fato de que ele falta, e é reencontrado na castração simbólica. E certamente a estrutura não nos dá nenhum meio de escapar ao familialismo; ao contrário, ela estrangula, ela dá à família um valor metafórico universal no mesmo momento em que perdeu seus valores literais objetivos” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 389-390).
“O velho pai está morto, o pai territorial, o filho também” (…) “Mas reencontramos a força para acreditar nessas imagens, do fundo de uma estrutura que regula nossas relações com elas e nossas identificações como outros tantos efeitos de um significante simbólico.” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 390)
O delírio e a perda da realidade
Para Freud (1924), na psicose, o Ego, a serviço do Id, se afasta de um fragmento da realidade surgindo em seu lugar o delírio, uma espécie de reconstrução que se encontra aplicada no lugar em que originalmente apareceu uma fenda na relação do Ego com o mundo externo.
Mas de que realidade se trata? Qual o estatuto da realidade à qual Freud se refere? O que a psicanálise entende como realidade?
Vejamos como um psicanalista contemporâneo teoriza essa questão:
“Os grandes temas da fusão com o real estão em nós presentes; destarte, armamo-nos com o escudo da representação, ainda conhecendo que não terá valia quando a fusão final da morte vier cobrar sua dívida. No meio-tempo, seu valor é considerável. A convexidade externa figura o mundo real em forma plana e selecionada, é aquilo que denominamos realidade; por consequência, a face côncava, interna, limita um espaço solidário ao anterior, convergente na mesma figuração, porém invertido, cujo nome é identidade” (HERRMANN, 1998, p. 13). Dessa perspectiva, a loucura seria o mergulho no real: “Pulando a cerca da representação, o homem vai ao encontro da loucura. Loucura é o estado de fusão e confusão entre identidade e realidade; ou, com mais rigor, a condição de contágio, na qual o sujeito se desfaz no real e retorna às origens” (HERRMANN, 1998, p.14).
E mais adiante:
“Na verdade, o mundo homérico, como o nosso, aliás, move-se nos limites da realidade representada, porém cuidando de contornar os valos e fossos de outra realidade, mais violenta, ensandecida pela paixão, pela fúria, pela culpa ou pelos deuses – a que, a rigor, o nome de realidade cabe mal.” (HERRMANN, 1998, p. 15) (Grifo do autor).
A superfície representacional, com suas duas faces, delimita, do lado interno, a identidade, do externo, a realidade. Partindo da perspectiva colocada por Herrmann, podemos chegar à construção social da realidade. Vejamos esta passagem de Berger e Luckmann:
“A cristalização dos universos simbólicos segue os processos anteriormente descritos de objetivação, sedimentação e acumulação do conhecimento. Isto é, os universos simbólicos são produtos sociais que têm uma história. Se quisermos entender seu significado temos de entender a história de sua produção. Isto é tanto mais importante quanto estes produtos da consciência humana, por sua própria natureza, apresentamse como plenamente desenvolvidos e inevitáveis. Podemos agora investigar melhor a maneira pela qual os universos simbólicos operam para legitimar a biografia individual e a ordem institucional. É de caráter nômico ou ordenador. O universo simbólico oferece a ordem para a apreensão subjetiva da experiência biográfica. Experiências pertencentes a diferentes esferas da realidade são integradas pela incorporação ao mesmo envolvente universo de significação. Por exemplo, o universo simbólico determina a significação dos sonhos na realidade da vida cotidiana, restabelecendo em cada caso a condição dominante desta última e mitigando o choque que acompanha a passagem de uma realidade a outra. Áreas de significação que de outro modo permaneceriam como enclaves ininteligíveis dentro da realidade da vida cotidiana são assim ordenadas em termos de uma hierarquia de realidades, tornando-se ipso facto inteligíveis e menos aterrorizantes. Esta integração das realidades de situações marginais na realidade predominante da vida cotidiana tem grande importância porque estas situações constituem a mais aguda ameaça à existência naturalmente aceita e rotinizada na sociedade. Se concebermos esta segunda existência como o “lado diurno” da vida humana, então as situações marginais constituem o “lado noturno”, que se conserva escondido agourentamente na periferia da consciência cotidiana. Justamente porque o “lado noturno” tem sua própria realidade, muitas vezes de natureza sinistra, é uma constante ameaça à realidade “sadia”, natural, material da vida na sociedade. O pensamento continua a sugerir a si mesmo (o pensamento “insano” por excelência) que talvez a realidade brilhante da vida cotidiana não seja senão uma ilusão, que pode ser tragada a qualquer momento pelos uivantes pesadelos do outro lado, o lado noturno da realidade. Estes pensamentos de loucura e terror são contidos pela ordenação de todas as realidades concebíveis dentro do mesmo universo simbólico, que abrange a realidade da vida diária, a saber, ordenando-os de tal maneira que esta última realidade conserva sua dominante e definitiva qualidade (se quisermos, seu caráter mais real).” (BERGER e LUCKMANN, 1976, p. 134) (Grifo nosso).
O cerco se fecha. A idéia comum, presente tanto em Hermann como em Berger e Luckman, é a de que atrás desse tecido de representações que constitui aquilo que chamamos de realidade existe um outro mundo (“o lado noturno da realidade”), que representa uma ameaça constante a essa noção de realidade, à sanidade mental, e, poderíamos acrescentar, à organização social.
Como se vê, nessa formulação, estamos em pleno domínio da representação. Mas é aí justamente que reside a crítica dos filósofos franceses, pois, para eles, o inconsciente não é expressivo ou representativo, mas produtivo. Ele não diz nada, ele maquina. O desejo é da ordem da produção e toda produção é, ao mesmo tempo, desejante e social. Os autores culpam a psicanálise por ter esmagado essa ordem da produção, de tê-la invertido na representação.
Retornando ao delírio de Schreber, sabe-se que seu pai inventava e fabricava máquinas para que as crianças ficassem retas, como por exemplo, um aperta-cabeças com haste metálica e correias de couro. Freud não considerou essas informações ao analisar o caso, mas talvez tivesse sido mais difícil esmagar todo o conteúdo sócio-político do delírio de Schreber, se tivesse levado em conta essas máquinas desejantes do pai e sua evidente participação numa máquina social pedagógica em geral (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 376).
Para Deleuze e Guattari, todo delírio é, primeiramente, o investimento de um campo social, econômico, político, cultural, racial e racista, pedagógico, religioso: os investimentos sociais são primeiros em relação aos investimentos familiares, que nascem apenas da aplicação ou do rebatimento daqueles. “Sob todos os aspectos, a família não é nunca determinante, mas apenas determinada” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 351).
Voltando a Freud, os autores explicam a complexa ambivalência da psicanálise: ao mesmo tempo em que, ao fundar a economia desejante descobrindo a libido, introduz um corte no mundo da representação; ao tomar a representação simbólica como essência subjetiva e universal do desejo como libido, e não referi-la a objetividades determinadas e a condições sociais objetivas, acaba por restaurá-lo.
Em As palavras e as coisas, Foucault mostra que as ciências humanas encontraram seu princípio na produção e se constituíram sobre a falência da representação, mas que elas restauram imediatamente um novo tipo de representação como a inconsciente (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 384).
Por que a linguagem do esquizofrênico desliza?
Como se explica então, nesta perspectiva, o deslizamento da linguagem característica do esquizofrênico? Ele passa de um código a outro, ele embaralha todos os códigos.
“O esquizo dispõe de modos de marcação que lhe são próprios, porque dispõe primeiramente de um código de registro particular que não coincide com o código social, ou que só coincide para fazer sua paródia. O código delirante, ou desejante, apresenta uma extraordinária fluidez” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 31) (Grifo dos autores).
Na busca de respostas para as questões que deram início a este trabalho, encerramos esta breve incursão na obra de Deleuze e Guattari com outra indagação, com a certeza de que a obra desses dois filósofos é um instrumento potente e valioso para respondê-la: o que se passou para que o esquizofrênico deixasse de ser aquele que interroga nosso tempo?
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Laura Belluzzo de Campos Silva: Psicóloga clínica, Doutora em Psicologia Social pelo IPUSP, professora titular do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde da Universidade Metodista de São Paulo e do curso de psicologia da Universidade São Marcos.
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REFERÊNCIAS
BERGER, Peter e LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 3.ed. Petrópolis,1976.
BIRMAN, Joel. O signo e seus excessos: a clínica em Deleuze. In: ALLIEZ, Éric. (Org.) Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2000, p. 463-478.
CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990.
CASTEL, Robert. A gestão dos riscos: da antipsiquiatria à pós-psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e : esquizofrenia. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
FREUD, S. (1924) A perda da realidade na neurose e na psicose. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969, vol. XIX.
GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
_____________. O inconsciente maquínico: ensaios de esquizo-análise. Campinas: Papirus, 1988. 317 p.
HERRMANN, Fábio. Psicanálise da crença. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
LAING, Ronald. A política da família. São Paulo: Martins Fontes, 1971.
PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.
ROLNIK, Suely. Algumas cartografias do transhumano no homem. Texto de aula ministrada no curso: questões emergentes na pesquisa em subjetividade I: uma perspectiva estética, política e ética do Programa de Estudos Pós Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, de março a junho de 1995.
SILVA, Laura Belluzzo de Campos. Doença mental, psicose, loucura: representações e práticas da equipe multiprofissional de um Hospital-Dia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.
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FONTE
Silva, Laura Belluzzo de Campos. (2005). Três questões sobre as psicoses: uma leitura de O Anti-Édipo. Mental, 3(4), 115-133.