Entrevista realizada com Félix Guattari em 1992 para a série “Os Caminhos do Pensamento” da TV Grega, sob responsabilidade de Georges Veltos. Guattari discute nesta entrevista sobre Filosofia, Amizade, Movimentos Marginais, Ecosofia, Mídias, Subjetividade, Esquizofrenia, Os Anos de Inverno, Europa, Grécia e Depressão.
Nos anos 1990 assistiu-se na Grécia o surgimento do canal público, sob a responsabilidade de Georges Veltsos, uma série de qualidade chamada “Os Caminhos do Pensamento”. Ao longo dos anos, foi possível assistir muitos filósofos e intelectuais importantes pelo programa. Foi assim que a equipe, antes de se ver forçada a desistir, planejou uma entrevista com Félix Guattari (1930-1992) e Gilles Deleuze (1925-1995). Evidentemente doente, Deleuze recusou a proposta através de uma carta que Georges Velstos descreveu como: emocionante. No entanto, a equipe recebeu Guattari em Paris que lhes concedeu esta entrevista². Guattari faleceu pouco tempo depois em seu castelo perto da La Borde, e três anos mais tarde Deleuze. Produto do encontro com o militante, clínico e filósofo (e…e…e…) Pierre-Félix Guattari, “Os Caminhos do Pensamento“, lançado no final de 1992 recebeu dois anos mais tarde a nomeação Europeia de melhor programa de televisão do ano.³
Nesta entrevista é possível escutar Guattari em 1992, com seu olhar intenso/sensível acerca das catástrofes em escala planetária. Pensador, clínico e militante que continua em movimento, caminhando conosco na história, nos auxiliando a (re)pensar teorias, práticas clínicas e militantes, assim como Deleuze. Guattari em diálogo com Veltsos discute diversos temas, como Filosofia, Amizade, Movimentos Marginais, Ecosofia, Mídias, Subjetividade, Os Anos de Inverno, Europa, Grécia e Depressão. Após 26 anos desta entrevista, encontramos em nossos tempos, conjunturas políticas e sociais em rupturas, assim como nossos direitos. Desta forma, penso que esta entrevista-traduzida possa contribuir para (re)pensarmos alguns acontecimentos. Pois em meio ao caos, escutar Guattari é preciso e, como afirma nesta entrevista: outras possibilidades são possíveis. Um novo mundo é possível!⁴
O QUE É A FILOSOFIA?
Félix Guattari: É um gênero. Um gênero. Assim como existe um gênero literário, um gênero teatral, um gênero estético, um gênero político, é um gênero que trabalha com a potência do infinito, movido por esses objetos particulares que são os conceitos.
UM AMIGO
Guattari: Um amigo é aquele que se “volta para”… quem se volta para o outro e que constitui o outro. Não necessariamente em uma relação de identificação, porque a amizade é paralela a uma relação agônica, mas que nesta relação singular ao outro, se estende um determinado universo. Em cumplicidade amigável, há sempre um terceiro termo que é o mundo que estamos tecendo, que estamos trabalhando. E a amizade socrática, não é algo que se resolva em uma identificação homossexual, uma incorporação do outro, é algo que existe para construir uma rede que excede completamente as relações interpessoais e que dá uma consistência para um certo tipo de objetos, que são os objetos conceituais.
George Veltsos: Nesse sentido você é amigo de Deleuze, por que estão criando um mundo juntos?
Guattari: É isso. Mas como eu disse em uma entrevista, sou amigo de Deleuze, mas não sou companheiro. Não sei como podemos traduzir isso! Porque, por exemplo, com Deleuze sempre nos tratamos por ‘senhor’, sempre mantivemos uma grande proximidade e uma grande distância amigável. Como se tivéssemos necessidade disso, precisamente, para manter a consistência de nosso tecido comum.
Veltsos: Essa ideia seguramente guattariana de que a esquizofrenia é uma alternativa, que o esquizofrênico no mundo capitalista é alguém que desterritorializa. Podemos ainda entender isso da maneira como se falava em 1960-66, sobre essa ideia de esquizofrenia?
Guattari: Mas eu nunca disse que o psicótico ou o esquizofrênico fosse um herói revolucionário, que fosse substituir o líder da classe trabalhadora ou os militantes das fábricas de Putilov de 1917… Eu nunca disse isso… Não, porque às vezes queriam nos fazer dizer alguma bobagem como essa… Simplesmente, o que percebo é que, a relação com o psicótico, por exemplo, em uma clínica como aquela em que trabalho na La Borde, faz perguntas, com insistência, que geralmente se esforça para não ver, questiona novamente o mundo das significações dominantes, o mundo das relações sociais, o mundo do intercâmbio, o mundo do afeto; introduz com insistência, dimensões semióticas e semiológicas que estão em ruptura justamente com este mundo mediatizado, este mundo do poder no qual estamos. De certa forma, é uma espécie de laboratório muito importante. Então com a psiquiatria, não se importam, a deixam em uma terrível miséria. Eu fui, como você sabe, para a Ilha de Leros, onde vi coisas difíceis. Eu fui também visitar os hospitais nos subúrbios de Atenas, que são bastante terríveis de se ver. Mas o que vocês fazem com a psicose, com a esquizofrenia? O que vocês fazem com a psiquiatria? A questão que se coloca não é somente para fazer o bem no campo social, mas o que vocês fazem com vocês mesmos? O que vocês fazem com sua própria loucura? O que vocês fazem com seu desejo? O que vocês fazem com sua relação com o mundo, com a sua singularidade, com o seu nascimento, com a sua morte? Isso é tudo que existe? Não é um objeto que tem importância? “Oh não, isso não é do nosso interesse, fazemos televisão, fazemos produção, estamos no mercado comum, e a singularidade, a finitude, isso não é nosso projeto”. Ah! Bom, isso me surpreenderia muito, porque apesar de tudo é algo que é o coração da existência…
O problema, em termos diferentes, em um contexto diferente, se coloca para compreender a singularidade do outro, sem entrar em uma relação de identificação ou sugestão e então, estar ali, de outra forma, amigo de um processo possível; de um processo que não se refere aos universais da subjetividade como os complexos freudianos ou os matemas do inconsciente lacaniano. Mas que forja sua própria cartografia, que forja sua própria meta-modelização, e que permite ao indivíduo, seguindo a situação, reconstruir territórios existenciais, onde estava em angústia, em desânimo, e que permite reforjar relações com o mundo, e uma possibilidade de viver. Portanto, é uma atividade que se pretende não-modelizante e que está muito mais sob a égide de um paradigma estético que um paradigma científico. Uma vez que é uma cura para forjar uma obra singular. Os artistas, sobretudo depois das grandes rupturas conceituais introduzidas por Marcel Duchamp⁵, por John Cage⁶ e outros, trabalham cada vez mais e mais sem rede, sem base. Eles não têm mais normas transcendentes, trabalham na própria enunciação da relação estética. E assim, dessa forma, são pessoas que, de certo modo, são os núcleos mais corajosos nessa relação de criatividade. Há outros. Há as crianças na idade de despertar no mundo. Há os psicóticos de quem falamos. Há os artistas, há muitas pessoas… Há os amantes, há pessoas afetadas pela AIDS, há pessoas que estão morrendo… Elas estão em uma relação caosmica no mundo. Mas os artistas, de certa forma, estão forjando instrumentos, criando circuitos, para poder enfrentar essa dimensão de “O que estou fazendo aqui?”, “O que faço neste planeta?”, “O que posso agarrar?”, a nada transcendente! Você pode se agarrar aos processos imanentes de criatividade. E então a segunda coisa que eu queria dizer é que, neste momento, o paradigma estético, fora da produção de obras estéticas, é algo que trabalha tanto a ciência como a pedagogia, o urbanismo, a medicina, a psiquiatria. Por ser essa metodologia em si, essa metodologia existencial, essa micropolítica existencial, que está elaborada de certa forma, trabalhada, alinhada por essa perspectiva estética.
MOVIMENTOS MARGINAIS
Veltsos: Dez anos atrás, quando você esteve em Atenas, conversamos. Você era otimista por todas essas correntes marginais, toda essa onda… Agora há uma queda…
Guattari: Não! Não há queda nas correntes marginais. Dado que hoje, continentes inteiros tornam-se marginais! A África é uma marginalidade monstruosa, uma vez que hoje tem 600 milhões de habitantes, de africanos que estão em uma devastação terrível. E então, até o ano de 2025, quantos serão? 3 bilhões! Mas então, o que acontecerá enquanto isso? Isso é tudo agora em 2025… Então, se você diz que a marginalidade está a se solucionar, não é simplesmente solucionada na África. Não se resolve na América Latina. Nos países latinoamericanos, como o Chile ou a Argentina, que seguem as diretrizes do Fundo Monetário Internacional (FMI). Então dizem “oh, tudo bem, resolveram seu problema de inflação”. Sim, muito bem… mas apenas 20% da população se beneficia e 80% estão em total miséria. Podemos multiplicar os exemplos. Hoje, no Paquistão você tem uma escravidão, um escravismo monstruoso, crianças de 4 e 5 anos que estão lá para fazer tijolos, que estão na lama. Existe um escravismo monstruoso em todos os países asiáticos sob a órbita das novas potências industriais…
É possível que a marginalidade, e ainda… nos países desenvolvidos, diminua… Mas não é verdade! Isto não é verdade nos guetos do Sul do Bronx, em Nova York! Não é verdade nos subúrbios parisienses! E não sei o que está acontecendo em Atenas… Portanto, é possível que haja menos consciência política hoje, no momento, nas margens. E ainda… não tenho certeza, seria necessário verificar… Há menos repercussões midiáticas, há menos a moda das margens, como existiu nos anos 60 da contracultura e no movimento de 68. Mas existe hoje um afastamento e uma marginalização, catastrófica para as populações humanas em escala planetária.
Isto não é porque as pessoas estão aprisionadas em uma sociedade de consumo, em esquemas… assim… publicitários⁷… nas manipulações de opinião, em um urbanismo que é unidimensionalizante – para usar uma velha expressão. Não é por isso que eles são imbecis! Ou que são ovelhas, animais… Eles estão reconstituindo territórios existenciais em sua escala, como podem… Então os jovens fazem bandas, se ligam à música rock ou rap, etc… Mas, finalmente, reconstituindo microsociedades, às vezes na delinquência, nas drogas e no suicídio… Mas eles se apegam à constituição da existência, como podem, neste contexto de uma sociedade cada vez mais dual, onde temos uma aristocracia capitalística que controla o poder, que controla o dinheiro, que controla as comunicações, uma “jet society”… E também uma massa de pessoas que estão completamente perdidas no mundo, que estão em contextos urbanos terrivelmente alienantes, e que estão em um contexto de produção onde não encontram seu lugar. Hoje o desemprego afeta muitos jovens. E mesmo as pessoas que entram no processo de produção, são marginalizadas, mesmo quando estão integradas nesse processo de produção. encontram seu lugar.
A ECOSOFIA
Guattari: Nós temos aqui uma crise que eu chamo de ecosófica, para ampliar a noção de poluição ambiental, não somente para as dimensões materiais da poluição, mas também para as dimensões da poluição social, da poluição das mídias de massa e a poluição mental. É para integrar todas essas dimensões ecológicas que formei, que forjei, esse termo de ecosofia. Existe o problema de uma reinvenção da vida em todos os seus aspectos. Em seus aspectos materiais. Nos seus aspectos sociais e em seus aspectos incorporais. Há toda a problemática da ecologia do virtual para forjar.
AS MÍDIAS
Guattari: Ou seja, é um divã. E no melhor dos casos, infelizmente… o melhor dos casos, que é o do cinema da criação, dão lugar ao cinema industrial, a série de TV. E aí, já não é mais um pseudo divã, senão a droga. É uma relação de fascinação. Ligamos a tela da televisão e esperamos a repetição dos mesmos rostos, das mesmas frases, das mesmas significações… Tudo que pode haver ali de ruptura do evento no mundo tratado por este filtro das mídias de massa é transformado em um tipo de mingau insignificante onde nada mais pode acontecer. Estamos presos em um cerco de mídia de massa, o que Virilio⁸ chama de “estreitamento da dromosfera”. Não há como deslocar-se. No momento da Guerra do Golfo, vimos isso, por exemplo, a televisão aqui estava completamente dominada pelo agora, pela relação imediata. “Vai acontecer algo?”, com o entendimento que não ocorrerá nada, e tudo o que poderia chegar a ocorrer era imediatamente absorvido e reabsorvido em uma espécie de tranquilidade… assim… com um comentarista que explica as coisas… Com um general, durante a Guerra do Golfo, que fez comentários, pretensos, frequentemente ridículos…
O que se constata na relação com as mídias, se verifica em todos os outros domínios. Podemos constatar, por exemplo, no campo da economia. Hoje, os economistas no mundo afirmam que existe uma objetividade dos objetos econômicos, que há uma necessidade, que o fazem porque não podem fazer de outro modo. Porque não há outros esquemas possíveis, não há mutação, não há bifurcação possível. Embora se trate precisamente de reintroduzir um retorno a imanência, um retorno à caosmose. Sim, há um certo funcionamento da economia mundial que conduz à catástrofe espantosa para 80% da população, à uma poluição e à uma devastação ecológica monstruosa. Mas há outras possibilidades, uma outra economia é possível, outras mídias são possíveis, outra filosofia é possível, outras formas de arte são possíveis. É esta questão do possível, esta questão de ter que dar conta da reapropriação que é colocada hoje com grande urgência. Senão, se nada mais é possível, então pura e simplesmente corremos para uma catástrofe planetária.
A SUBJETIVIDADE
Guattari: Acredito que temos que ser extremamente prudentes porque a subjetividade individual e coletiva, não é [de] uma só peça. Não há um sujeito, uma individuação como essa, que lhe dê sua consistência. Ela está em camadas, está em muitos níveis. Portanto, a opinião pública pode ser completamente estúpida. Ela pode seguir a moda, as pesquisas, pode seguir todas essas coisas. Além disso, ela pode se tornar racista, imbecil, cortar-se do mundo, desconhecer o que existe, como a miséria no terceiro mundo, etc. Mas ao mesmo tempo, percebe-se que às vezes tem reviravoltas brutais… Por exemplo, podemos observar hoje na França, talvez… na Grécia não sei… mas há uma grande desconfiança agora em relação ao jornalismo, em relação a televisão desde a Guerra do Golfo, desde os acontecimentos da Timisoara na Romênia. “Mas o que é isso, você não se importa conosco, então, nós confiamos em você, confiamos em você e então nós percebemos que às vezes vocês mentem de maneira descarada!”. A mesma coisa em relação ao poder político. Deste modo, a opinião pública, é como um ser que pode abandonar-se, porque ela não se importa, afinal “estamos de acordo e tudo isto está muito bem”… Mas às vezes [ela pode] se recompor muito brutalmente, na velocidade da luz, e dizer: “não, não está funcionando”! E ali pode haver inversões da opinião pública, de uma grande intensidade e grande inteligência coletiva! Vimos, por exemplo, na China uma inversão da opinião pública no momento dos acontecimentos de Tienanmen, onde de repente: “Assim não dá mesmo, temos que acabar com isto!”. Vimos algumas reviravoltas da opinião pública nos países do Leste, que foram mais importantes que as relações de forças políticas, que as relações de forças sociais tradicionais. E que de uma só vez destruíram todo esse mundo exausto de burocracia. Depois, a opinião pública se deixou retomar pelos poderes dominantes. Mas devemos ter cuidado com a opinião pública. Porque pode nos reservar muitas surpresas…
A opinião pública são ritornelos que circulam, são ritornelos. Rostos… jogos de futebol… representações de moda, reuniões… Além disso, se cristalizam, fazem bolas de neve, e logo desaparecem. Assim, alguns políticos, celebridades da música ou do cinema, são carregados por essas ondas. Às vezes caem no chão porque essas ondas encontram uma ruptura… A opinião pública não é uma opinião pública, são imensos fluxos de subjetividades que atravessam e trabalham uns com os outros. Toda a questão é justamente que não existe uma indústria, um poder, uma chapa de chumbo que pesa sobre a opinião pública, com a mídia, a CNN, as telecomunicações mundiais. Mas que ela se reapropria! Trabalha! Se singulariza! Que se torna uma formação de poder! Se torna formação de valores! Nova mutação do universo de valores…
OS ANOS DE INVERNO
Guattari: Sim, mas ainda é necessário ser um idiota também… É preciso aceitar, que, a finitude… também tem de estar em um pensamento como de Samuel Beckett⁹… Assim, tomado nesta espessura de existência, onde não há recursos, onde não há saúde… Portanto, está indo e voltando entre essa posição singular do pensamento, e, então, o que podemos fazer com esse endurecimento, essa burocratização, essa dimensão estática que gangrena as instituições… Instituições universitárias, instituições psiquiátricas… Muito difícil dizer, porque não é fazendo um esquema diretivo, um plano, um programa, que podemos mudar muitas coisas. É evidente que não se pode mudar as coisas quando há focos de enunciação mutacionais que fazem querer mudar as coisas. Que induzem a ideia de mudança, a criatividade coletiva. Infelizmente, em relação aos anos 60, a criatividade coletiva caiu no que chamo de Os Anos de Inverno[10]. Ela caiu em uma espécie de glaciação.
Mas, primeiramente sempre há uma pequena margem, uma pequena possibilidade. Já em seu contexto universitário, você tem alguns companheiros, alguns amigos. Tem a possibilidade de fazer um núcleo enunciativo, que, talvez encontrará ecos e respostas. Logo, essa dimensão, muito local, muito micropolítica, talvez entre em ressonância com fenômenos de mutação molecular em [toda] uma outra escala. Pois, finalmente, hoje é o mais local que se comunica com o mais planetário. É ocupar-se da defesa das árvores que Chirac¹¹ quer cortar em Paris. Ocupar-se da defesa dos animais, da defesa da biosfera, lutar contra a poluição. Isso entra em ressonância imediata com: “mas qual é esta maneira de estar neste planeta?”; “Os homens se sentiram no universo como aos olhos de Deus? Como um dom de Deus? Como uma criação de Deus? E isto remove toda responsabilidade em relação à biosfera, em relação ao cosmos, em relação ao ser?”. Além disso, hoje lhes digo através desses pequenos atos microscópicos: “mas é como você quer, [mas] você é responsável pelo que acontece!”. “Você tem responsabilidades ético-políticas para o futuro!”. Não somente da vida humana no planeta… O futuro de todas as espécies animais. O futuro da biosfera. O futuro das espécies incorporais. Inclusive, diria o futuro do ser. O ser não é um dom de Deus. O ser se produz pela enunciação, hoje coletiva que é essa mistura de máquinas individuais, máquinas coletivas, máquinas tecnológicas, máquinas científicas. É toda esta espécie de rizoma maquínico que produz o ser, que produz esta espécie de vertigem extraordinária, que faz com que finalmente, de certa forma, hoje, Deus somos nós… É este projeto coletivo que está aí…
A EUROPA
Guattari: Houve uma tomada de poder de uma pseudo normalidade, o controle da universidade pelos detentores do conhecimento, o aparente triunfo do neoliberalismo, a religião do mercado, como se a reinclusão no mercado econômico resolvesse milagrosamente todos os problemas. Então, muitas ilusões, muito fascínio, especialmente dos países do Leste em relação aos modelos ocidentais. Além disso, eles percebem na chegada que é mais complicado do que acreditavam. Então, há uma espécie, ao mesmo tempo que chamo de glaciação, de entrada nos Anos de Inverno, onde nos perguntamos quando vamos escapar… Com teorias assim, muito cínicas, como o pós-modernismo, que diz que é assim porque não se pode fazer de outra forma, “temos que nos adaptar”, etc. Mas tudo isso… também corresponde a uma espécie de tábula rasa em relação a muitas ideias, muitas ilusões. A partir da qual, diante de nós, é a questão… Eu diria a questão da questão… Um novo questionamento. Uma nova invenção de perspectivas, de proposições, de práticas. Portanto, acredito que estamos em uma espécie de mistura entre desmoralização coletiva, que é sentida um pouco por toda a Europa. Além do mais, ao mesmo tempo com a esperança de reconstruir alguma coisa. Não há nesta área muita coisa manifesta, embora que no campo da ecologia, há pessoas que começam a reagir e a intervir. Tudo isso está diante de nós… Todo um futuro que está em vias de se elaborar.
Mas, hoje o que é um criador? Bem, não são os intelectuais, Líderes, com um “L” maiúsculo. São os agenciamentos de intelectualidades. São mutações geopolíticas. São mutações de sensibilidades. Uma capacidade hoje de ler o mundo, à medida que evolui, a uma velocidade prodigiosa. Isso é ser criador.
A GRÉCIA
Guattari: A Grécia é o mau aluno da Europa. É toda sua qualidade. Felizmente há estudantes ruins como a Grécia que carregam complexidade. Que têm uma recusa de uma certa normalização franco-alemã, etc. Então, continuem a ser maus alunos e nos manteremos bons amigos…
A DEPRESSÃO
Guattari: Há alguns anos, eu tive uma depressão muito intensa, grave, que durou mais de dois anos, e que deixei agora… Essa finalmente foi uma experiência muito importante, muito rica… A experiência da depressão. O desvanecimento do sentido do projeto, do sentido do mundo, etc. Uma aterrisagem sobre a existência no que ela tem de mais proximal. É por isso que escrevi este pequeno livro Caosmose¹². É um pouco de reflexão sobre esse mergulho na depressão… Ou seja, estamos cercados por muros… Por muros de significação, pelo sentimento de impotência, pelo sentimento de que é sempre a mesma coisa, que nada pode mudar. E, às vezes, só é preciso um buraco no muro, só precisamos de alguma coisa para perceber que o muro é permeável…
Há uma maneira de aproveitar de si mesmo em um paroxismo… E sempre a vertigem de uma autodestruição. Como se a autodestruição, o fim de tudo, se tornasse um objeto erótico. Como se ela tivesse tomado o poder… Essa é a gestão da depressão… Simultaneamente para aceitar essa vertigem da abolição, mas através disto, talvez, reconstruir uma visão do mundo… Uma iluminação… Não sei, não diria uma sensatez, mas enfim…
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NOTAS
1. A Transcrição original se encontra em: Félix Guattari, Entretien à la télévision grecque. (1992), Chimères 2009/1 (n°69), pp. 51-63. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-chimeres2009-1-page-51.htm. Nota do Tradutor [NT].
2. A entrevista em vídeo está disponível no Youtube. Link abaixo! NT
3. Parágrafo introdutório escrito por Ben Matsas, idealizador da transcrição original (pp.51-51). NT
4. Parágrafo acrescentado pelo tradutor. NT
5. Marcel Duchamp (1887-1968) foi um pintor, escultor e poeta francês. NT
6. John Cage (1912-1992) foi um compositor e escritor americano. NT
7. Cabe ressaltar que em um momento de sua vida, Guattari trabalhou com publicidade. Conferir: Guattari, Félix (2015). ¿Qué es la Ecosofía?: textos presentados y agenciados por Stéphane Nadaud. Buenos Aires: Cactus editorial. NT
8. Paul Virilio (1932) é filósofo, arquiteto e urbanista francês. Seu pensamento influenciou o desenvolvimento da proposição de sociedade de controle por Gilles Deleuze. NT
9. Samuel Barclay Beckett (1906-1989) foi um dramaturgo e escritor irlandês. NT
10. Alusão ao livro, Guattari, F. (1985). Les annés d’hiver: 1980-1985. Paris: Les prairies ordinaires. Não traduzido em português. NT
11. Jacques René Chirac (1932-) é um político francês, atualmente filiado ao UMP (União Por Um Movimento Popular). Foi primeiro-ministro da França, de 1974 a 1976 e de 1986 a 1988. Foi também o vigésimo segundo presidente da França, de 1995 a 2007. NT
12. Publicado na França em 1992 pela Editora Galilée. E no mesmo ano no Brasil pela Editora 34 sob o título: Caosmose: um novo paradigma estético. NT
FONTE:
FÉLIX GUATTARI: ENTREVISTA PARA TV GREGA (1992). Traduzido por, Anderson SANTOS. In: Revista Polis e Psique, v. 8, n. 2 (2018).
Félix Guattari (1930-1992)