UMA GEOGRAFIA PECULIAR: ENTREVISTA COM RADMILA ZYGOURIS

Radmila Zygouris esteve em São Paulo em outubro de 1996 a convite da Editora Escuta para o lançamento de seu livro “Ah! As belas lições“, e foi nessa oportunidade que a revista Percurso a entrevistou. Nascida na antiga Iugoslávia, morou um período de sua vida em Buenos Aires, e depois foi para Paris – onde vive até hoje. Os caminhos que percorreu trazem as marcas concomitantes de sua participação ativa e criadora no movimento psicanalítico lacaniano e de sua constante independência pessoal frente às escolas de pensamento e às instituições. Nesta entrevista, Zygouris nos conta de sua própria trajetória na psicanálise, enquanto nos oferece um quadro aproximativo do funcionamento da Escola Freudiana de Paris até sua dissolução por Lacan, e dos rumos que a psicanálise foi tomando na França após esse acontecimento. Fala também de seu modo de fazer/pensar a clínica psicanalítica e expõe sua concepção sobre a formação em psicanálise.


Percurso: A grande liberdade de seu trabalho clínico parece-nos algo raro e, de modo geral, não tão fácil de ser encontrada. Gostaríamos que nos contasse um pouco a respeito de seu processo de formação como psicanalista.

Zygouris: Minha trajetória é um pouco longa, já que a vida é longa e eu não tenho mais 20 anos de idade. Li Freud pela primeira vez aos 16 anos. Naquele tempo eu morava em Buenos Aires. Os livros que li eram em alemão e pertenciam ao primeiro psicanalista da Argentina, Angel Garma. Sua filha era minha amiga; assim, tomei-os emprestado para ler e fiquei maravilhada.

Percurso: Qual foi o primeiro livro que a sra. leu?

Zygouris: Não me lembro mais… Penso que talvez tenha sido A Interpretação dos Sonhos, mas não tenho certeza. Este foi meu primeiro encontro – ainda muito criança – com Freud e a psicanálise. Naquela ocasião eu disse para mim mesma que queria fazer isso, mas depois esqueci.
        Já na França, iniciei meus estudos universitários somente porque era estrangeira e como tal estava consciente da importância em se obter um diploma. Iniciei a Faculdade de Medicina, mas não pude continuar, uma vez que precisei trabalhar e cuidar da minha subsistência. Então, cursei Psicologia e foi possível conciliar os estudos com o trabalho. Fiz meus exames dentro de um certo “banditismo”. Eu era um tanto quanto marginal na universidade, até porque trabalhava em tempo integral. Tive amigos que frequentavam as aulas, tomavam notas e passavam tudo para mim. Podemos falar da minha liberdade desde aquela época. Nunca tive crença particular em qualquer hierarquia. Talvez tudo comece por aí… não sei. Minha formação se deve mais ao que pude obter através da leitura pessoal.
        Depois disso fui procurar um analista para fazer a minha primeira análise. A primeira entrevista não foi uma boa experiência. Eu era muito iniciante, muito jovem. Não me estenderei sobre esta entrevista, não tem muita importância. Procurei uma segunda analista e ela me pareceu idiota: tentou me agradar e este não era meu problema. Em seguida comecei a ler e também a pedir conselhos a uma amiga muito mais enfronhada no meio analítico do que eu. Nesse momento fui ver um terceiro analista. Adotei um sistema onde era preciso fazer três tentativas. Eu era megalomaníaca. Bem, fiquei sabendo, através dessa amiga e da minha leitura, que nas primeiras duas tentativas que fiz tratava-se de dois analistas que pertenciam ao mesmo grupo, enquanto que o terceiro analista, que era Leclaire, situava-se do lado oposto. Decidi então procurá-lo.
        Naquela época eu assistia ao seminário de Lacan. Justamente naquele momento era o último seminário antes dele ser excluído da IPA. Lacan estava lá em Saint’Anne, berrando como louco: “Não, não farei o seminário sobre o nome do pai”. Os outros estavam ali também com os olhos fora de órbita. Era um momento de grandes paixões, paixões iradas, inflamadas. Comecei a me sentir bem, confortável; tudo estava tão louco quanto na minha própria família. E foi por isso que escolhi ficar entre os lacanianos. Não foi pela profundeza do pensamento lacaniano. Foi porque os vi completamente imersos na paixão, nos gritos, no sofrimento. Senti que gostava dessa gente… Compreendam, não havia ali aquela respeitabilidade burguesa, e isso me agradava.
        Assim, ao me dar conta de que Leclaire pertencia a esse grupo, decidi procurá-lo para minha primeira análise; ele tinha uma lista de espera e, portanto, precisei aguardar um ano antes de começar o trabalho com ele. Aliás, aqui tenho que fazer, a posteriori, uma crítica a Leclaire. Penso que as listas de espera são algo muito negativo. E digo isto considerando que fiz muita besteira durante aquele ano no qual havia escolhido e sido aceita por um analista, porém não havia iniciado minha análise. Após essa espera, iniciei minha análise com Leclaire e frequentei o seminário de Lacan – aonde continuei indo regularmente, durante 11 anos seguidos. Um dia eu estava no cabeleireiro e percebi que havia deixado de fazer algo. Logo me dei conta que tinha me esquecido de ir a esse seminário. Fiquei muito contente, muito feliz por isso; parei de frequentar seus seminários depois de acompanhá-los por muito tempo.
        Comecei a trabalhar como analista muito, muito cedo, e penso que isto é uma verdadeira delinquência. Mas eu não fui a única. Compreendi isto mais tarde. A Escola Freudiana de Paris acabara de se formar e Lacan montara uma escola à altura da qualidade de seus alunos. Portanto, ele não nos escolheu porque fôssemos sujeitos brilhantes, mas porque ele precisava de nós. Eu fui muito bem tratada e muito bem acolhida na Escola Freudiana. Sendo estrangeira, isto foi muito importante para mim, porque ali encontrei um lugar para se ter colegas. Nos primeiros tempos da Escola, seu ambiente era mesmo muito amigável.
        Iniciei, então, um trabalho no Serviço de Jenny Aubry. Ela era uma mulher com certa importância na psicopediatria. Eu trabalhava no seu Serviço e ela começou a me encaminhar pacientes sem eu ter a instalação apropriada para recebê-los. As pessoas simplesmente começaram a me ligar em casa e quando fui falar com ela para lhe dizer que meu apartamento não estava adequado para receber pacientes, ela me disse: “Escute, minha filha, tenho confiança em você. Daqui a dois anos vou me aposentar; você tem dois anos para decolar.” Foi assim que aluguei um apartamento e comecei a atender pacientes. Queria me tornar analista, mas pensava que naquele momento era ainda muito cedo. Tinha apenas três anos de análise atrás de mim quando comecei trabalhar como analista. Porém, prestem atenção, eu não era a única nessas condições. Esse modo foi bastante comum na minha geração. Hoje as pessoas se perguntam se podem ou não começar a atender como analistas depois de terem tido muitos anos de análise pessoal – às vezes, depois de 15 anos. Os tempos eram outros.

Percurso: Quando foi isso?

Zygouris: Bem, eu já estava trabalhando na instituição, no Serviço de Crianças. Comecei a atender em casa por volta de 66-67. Faz muito tempo! E nesse período eu fazia supervisão com Lacan. A supervisão com ele me trouxe muitas coisas, mas não no campo do saber teórico.
        Primeiro quero comentar um assunto sobre o qual muitos falam e reclamam: suas sessões curtas. Nas sessões de supervisão, quando ele começava a se levantar, fazendo sinal de que era o término, eu dizia para ele que não havia terminado e continuava sentada. Ele me olhava longamente e continuávamos. As minhas sessões nunca eram muito longas, porém duravam até vinte minutos e nunca três ou cinco minutos. Tinha gente que ficava cinco minutos.

Percurso: As supervisões também podiam durar nos moldes de sessões curtas?

Zygouris: Lacan falava de sessões de duração variável, não curtas. Não é a mesma coisa. O ponto é que quando tinha gente na sala de espera e era preciso que todo mundo fosse atendido até 21 h, então as sessões eram curtas! Não havia qualquer teoria por trás das sessões curtas. É estúpido pensar que teria. Em julho, quando muitos dos pacientes estavam em férias, nossas sessões se prolongavam, duravam muito mais.
        Há, sim, o escrito de Lacan a respeito do tempo lógico – um trabalho muito interessante! Mas aposto que não existe sequer um analista que possa, com material clínico, validar o tempo lógico. Isso não existe! É uma enganação calculada. A ideia é muito boa, mas também é uma ideia muito perigosa.

Percurso: Claro, porque o analista também tem um inconsciente…

Zygouris: Sim. Fiz supervisão com Lacan e o que aprendi foi coisa de modo lateral. Por exemplo, liguei para ele e, como era um homem muito conhecido, pensei que seria possível encontrá-lo só depois de um certo tempo, 3 a 6 meses. Entretanto, liguei e a secretária passou o telefone para eu falar diretamente com ele. Era 23 de dezembro. Ele ouviu o que eu queria e desculpou-se dizendo que no dia seguinte era Natal, que tinha muito a fazer. Eu disse a ele que não se tratava de nada urgente. Nesse momento ele respondeu: “Bem, se você me liga hoje e agora, é porque tem algo a me dizer. Venha daqui a uma hora.” Foi aí que aprendi com Lacan. Sobre o material da supervisão não aprendi grande coisa. O forte de Lacan era colocar as coisas em ato (era rápido no agir). Era  muito bom nisso.
        Sobre sua escuta não sei dizer. Tinha tanta gente à sua volta, era sobrecarregado de tal maneira que nem sempre podia escutar. Em geral, tudo o que eu apresentava ele dizia que era excelente, muito bom. Entretanto, a única pessoa que se matou durante meus longos anos de trabalho foi a paciente que supervisionava com Lacan. Ela cometeu suicídio durante o período da supervisão. Quero deixar claro que não ponho a culpa desse fato em Lacan. Tratava-se, afinal, de uma paciente esquizofrênica que fez muitas tentativas de pôr fim à própria vida e, além do mais, eu a atendia dentro de uma instituição. Porém, penso, às vezes, que se eu estivesse em supervisão com uma outra pessoa que pudesse me conter mais, talvez o desenlace pudesse ter sido diferente, mas nunca dá para saber. Sei que depois disto continuei a supervisão com ele sobre outra paciente e vivia preocupada, temendo que algo parecido pudesse acontecer a ela – o que é, obviamente, uma superstição.
        Considero que a supervisão com Lacan não me trouxe muita coisa, não era muito benéfica para os pacientes em questão. A vantagem da supervisão com ele provinha das observações que pude fazer sobre seus modos e maneiras de agir. Minha supervisão com ele não foi longa. Uma amiga minha tinha-o como supervisor na mesma época que eu. Ele dizia-lhe também que tudo o que ela fazia era excelente. Ela acreditava! Eu disse a ela que com Lacan tudo e todos eram excelentes … Quando ele se expressava assim, na verdade, era apenas um tipo de linguagem. Atualmente também vejo muitos lacanianos terminarem suas sessões com expressões tais como “Muito bom, excelente!” – o que não quer dizer que seja realmente excelente.
        Depois trabalhei com outro supervisor e aí sim podemos falar em benefícios para o caso tratado.

Percurso: O que é possível apreender na supervisão?

Zygouris: Coisa ao redor; é um tipo de self-service, uma coleta ou apropriação. Não apreendemos a partir do que nos é dado, mas a partir do que roubamos; você apreende a partir do que pode tomar, pegar. Falo de modo geral. Um paciente que terminou a análise há algum tempo, disse-me o seguinte: “Você certamente acredita que me ajudou através das suas interpretações … Mas vou lhe dizer uma coisa: o mais importante para mim é o que eu pude pegar sem que você soubesse disso!”
        Fiz minha trajetória na Escola Freudiana. Formamos um grupo com certa oposição ao funcionamento e esquema institucional. Tinha muita coisa boa na Escola. Depois, com o passar dos anos, ela começou a se dogmatizar. Talvez nem tanto pelo próprio Lacan e mais pelos lacanianos.
        Num certo momento criamos uma revista psicanalítica que se chamava L’Ordinaire du Psychanalyse, cujos artigos não eram assinados. Contamos para Lacan sobre a revista para que não pensasse que estávamos contra ele. Ele nos propôs que lhe levássemos os artigos a fim de poder nos ajudar a encontrar um editor. Rejeitamos cordialmente sua proposta, já que nossa vontade era de manter nossa autonomia. Esta revista durou cinco anos e foi uma experiência muito formadora para mim e outras pessoas participantes. Começamos a escrever de uma forma muito livre, inclusive sobre a clínica. Não assinávamos, porque na França, e no mundo em geral, compra-se uma revista depois de olhar a lista dos autores e nós discordávamos desta tendência; queríamos que as pessoas comprassem a revista pelo conteúdo, não pela lista dos autores. Mas a revista não pôde durar muito tempo porque houve uma crise institucional na Escola Freudiana e naquele momento era preciso passar a assinar os artigos. Refiro-me ao período entre 71 e 81. Lacan gostou muito de L’Ordinaire e perguntou-se um dia, em Roma, porque a revista Scilicet não era tão boa quanto a L’Ordinaire.
        Foi em meio a esses acontecimentos que passei pela experiência do passe, muito embora fizesse parte de um grupo que se opunha a isso – não enquanto experiência, mas pelo fato da nominação.

Percurso: O passe não é a própria nominação?

Zygouris: Não. O passe, conforme a formulação proposta por Lacan, era um dispositivo para obter o testemunho de pessoas que se tornavam psicanalistas, a fim de ver onde a própria análise se interroga sobre os pontos vivos da teoria psicanalítica. Portanto, tratava-se de uma experiência totalmente voluntária: era possível ser psicanalista, nomeado como tal pela Escola, sem ter passado pelo processo de passe. Mas Lacan instituiu, na ocasião da implantação do passe, um júri que decidia se alguém se tornaria ou não analista da Escola.
        Quero frisar um ponto sobre o qual se faz muita confusão: havia outra instância na Escola Freudiana onde existia um júri que nomeava os analistas, que os titulava perante o exterior da Escola. Uma vez por ano esta instância dava o título de membro da Escola (A.M.E.), garantindo com isto a formação. No processo de passe tratava-se de uma experiência facultativa.
        Havia pessoas com A.M.E. sem terem feito o passe e, inversamente, outras que fizeram o passe sem terem sido nomeadas. Uma coisa não tinha nada a ver com a outra. Enfim, essas são velhas histórias….

Percurso: O que a Sra. pensa a respeito dos debates atuais sobre o passe na instituição lacaniana?

Zygouris: Penso que, justamente, na medida em que eles não puderam inventar coisas novas, é que se abrem sobre coisas velhas. Hoje o passe é uma velharia extraordinária. Inclusive Lacan chegou a admitir que foi um fracasso. Seguir debatendo essa questão testemunha um empobrecimento do próprio pensamento. Há tantas outras coisas importantes sobre as quais é preciso pensar – uma crise no mundo, muita gente vai mal – que me parece muito extravagante voltar-se sobre este momento. Trata-se, afinal, apenas de um certo momento passado da vida de uma instituição e do pensamento de alguém.
        Isso me faz pensar também sobre os assuntos da IPA onde estabeleceram tantos critérios de seleção para a análise didática que hoje, em geral, eles não têm quase ninguém.

Percurso: Isso nos leva a considerar, mais uma vez, a respeito da natureza e do cerne da psicanálise…

Zygouris: Para mim a questão é: caso sua filha ficasse doente, para quem você a mandaria? É um problema! Tenho uma amiga, muito mais velha do que eu, que era psicanalista da IPA em Paris. Ela contou-me sobre uma analista que não rondava nas altas esferas dos didatas e dirigentes daquela sociedade; essa analista trabalhava muito modestamente e quando alguém tinha problemas com seus filhos, marido, mãe e precisava de uma análise, dirigia-se a ela e não a outros. Isso nos ensina muito sobre as instituições.
        Octave Mannoni nos contou, muitos anos atrás, que nos Estados Unidos as pessoas faziam primeiro as suas análises didáticas e falavam para o analista o que era esperado, seguindo mais ou menos os critérios propostos. Uma vez nomeados como analistas, eles escolhiam um outro lugar para fazerem tranquilamente suas verdadeiras análises. Hoje isso ocorre em outras instituições também. Resta então a questão sobre a servidão voluntária na espécie humana. A análise não nos dá garantias para dela nos preservarmos.

Percurso: Poderíamos pensar que a dissolução da Escola começou a partir do fracasso da experiência do passe?

Zygouris:  Não, não foi a partir do passe. A Escola foi muito importante como nome, mas havia uma questão em sua gerência, além de ter havido muitas lutas de poder dentro dela. Foram outras razões.
        Voltando ao que eu dizia, fiz então o passe para falar uma série de coisas em público – tratava-se, afinal, de um júri – sobre algo que concernia à Escola. Apesar de ter amigos no interior da Escola, eu tinha a intenção de me retirar dela, uma vez que já não sabia mais o que estava se passando ali. Fazer o passe foi uma forma de saldar minhas dívidas para com a Escola Freudiana e comunicar para Lacan que eu estava pronta para sair.
        Passei a fazer uma segunda análise com Maria Torok – uma pessoa que não pertencia à Escola Freudiana.

Percurso: Qual é a filiação psicanalítica de Maria Torok?

Zygouris: Era húngara, mas não sei dizer nada sobre sua filiação psicanalítica.
        Com minha atitude, queria que as pessoas da Escola soubessem que saí. Não se tratava de uma guerra contra a Escola. Simplesmente me parecia impossível finalizar minha análise com um analista que não finalizou a própria análise porque estava em transferência massiva com Lacan. Leclaire era um sujeito muito independente e livre mas, ao mesmo tempo, creio que ele nunca pôde desfazer verdadeiramente sua transferência com Lacan. Ele tinha feito seu passe e, por exemplo, nunca praticou sessões com duração variável; suas sessões tinham um tempo de duração mais ou menos fixo. Eu, então, queria dizer o que pensava para meus colegas e continuar meu caminho na forma que me é singular. Para minha grande surpresa, fui nomeada. Justamente no momento em que estava indo embora, partindo tranquilamente, sem pretender trancar as portas, houve a dissolução da Escola. Este fato é tudo que implicava, fizeram-me continuar, tomando parte contra esta maneira de dissolver a Escola. Lacan tinha todo o direito de dissolver sua Escola, mas não me agradou a forma pela qual a dissolução estava sendo feita. Lacan, no momento da dissolução, já estava muito velho e doente. Daquilo que testemunhei, posso dizer que nesse  momento ele se encontrava em estado um pouco debilitado; talvez vivesse até momentos de translucidez. Não sei bem. Posso dizer apenas que não se tratava mais do Lacan que conhecemos no passado…

Percurso: A sra. pensa que o ato da dissolução foi uma maneira de fazer com que as coisas se movessem?

Zygouris: Talvez; não sei. Penso que se tratava simplesmente de um curso de manobras mais políticas do que psicanalíticas. A Escola tornou a ser uma grande máquina envolvendo muita gente.
        Depois disso tudo, eu me encontrava com um grupo de pessoas. Ainda há pouco minha liberdade foi mencionada e, sobre isso, quero dizer que não era e não sou a única. Tenho meus companheiros de viagem, a maior parte tão livre quanto eu. Obviamente, cada qual com sua especialidade mas que são, por vezes, ainda mais livres do que eu. Vocês, talvez, só conheçam a mim, entretanto somos um grupo de pessoas que trabalha desta maneira porque nós nos formamos juntos. Creio que isto é sumamente importante, já que não se trata exclusivamente de uma liberdade individual. Não me tornei psicanalista unicamente através de meus analistas e supervisores; tornei-me analista também através de meus amigos, colegas analistas. Porque era com eles que eu mais conversava e, sobretudo, discutia sobre problemas clínicos com os quais me deparava. Houve uma grande solidariedade de uns para com os outros. O mesmo diz respeito às leituras: trocávamos livros entre nós. Por exemplo, fiquei maravilhada ao descobrir, assim, Winnicott.
        Quero dizer mais uma coisa: quando estávamos na Escola Freudiana, não foi possível enxergarmos a existência de outros analistas. Estávamos num gueto, nunca moramos em outro lugar. Com o ciclo de debates do grupo Confrontação, organizado pelo René Major, foi a primeira vez que ficamos sabendo, e tivemos a oportunidade de ouvir, analistas que não faziam parte da Escola Freudiana. Surpreendentemente descobrimos pessoas excelentes que praticavam psicanálise. Este novo ar foi extraordinário: ouvir pessoas que falavam diversamente sobre as mesmas coisas com que nos preocupávamos; foi muito importante! Em seguida, foram fixados alguns encontros por mês sobre escritos de Winnicott e de Searles. Isso foi fundamental para mim.

Percurso: O que a sra. acha desse encontro com Winnicott?

Zygouris: Se há um analista verdadeiramente livre, é ele. Winnicott tem uma imensa liberdade. Sempre gostei muito da sua maneira de escrever. Aparentemente sua escrita é simples, mas de fato não é nada  simples. Quando olhamos de perto, notamos uma maneira extremamente estruturada. Quando lemos sua correspondência com Melanie Klein, por exemplo, é extraordinária! Todas essas pessoas foram importantes para mim. Ferenczi também. Existe toda esta filiação muito importante que começa com Freud e segue com Ferenczi. Freud deu origem a um tronco. Depois temos o tronco Ferenczi-Balint. Balint também é alguém muito importante. A “falha básica” é algo fantástico. Aí também, temos uma escrita extremamente simples. Penso que, quando olhamos de perto, todos os pós-kleinianos tomam lá seus lugares.
        Creio que hoje estamos num momento importante, porque certos pós-lacanianos e certos pós-kleinianos que não têm mais a rigidez da querida Melanie, mas que passaram, justamente, por Winnicott, podem encontrar e formar pontes entre Lacan e o pensamento oriundo de Klein. A única coisa que me parece lamentável é o fato de Lacan, fora da sua tese de doutorado – que é afinal uma tese em psiquiatria e não em psicanálise – ter falado muito pouco sobre a clínica. Temos apenas alguns fragmentos da sua clínica. Ao mesmo tempo, ele sempre criticava a clínica dos outros. E isso foi transmitido – as pessoas foram seguindo ele nisso. No entanto eu aprendi muito dos anglo-saxões que têm muita liberdade de pensamento e, sobretudo, porque nas suas exposições incluem a clínica.

Percurso: De certa forma também o fazem a partir de um modelo… Mas queremos saber se a liberdade, no seu caso, tem a ver com sua história particular.

Zygouris: Não estou na posição certa para poder responder sua questão. É difícil dizer algo sobre si próprio porque eu não me sinto particularmente livre. Não sou tão livre, são os outros que me dizem que sou. Luto sempre pela minha liberdade, como todos. Tenho também, de tempo em tempos, posições superegóicas, embora não sejam sempre perceptíveis. Mas é verdade que não temo o julgamento. Não tenho medo de ser taxada de histérica porque trabalho com minha estrutura que é, provavelmente, histérica e estou muito contente de ser isso e de não chegar a ser obsessiva ou paranóica. Há ainda um lado afetivo que é possível que tenha a ver com minha origem, que é eslava. O eslavo chora muito, ri muito…

Percurso: Ao que parece, a sra. não segue a postura afetiva reservada dos analistas.

Zygouris: Bem, você me encontra depois de 30 anos de trabalho. Estou hoje mais sabida. Nos primeiros anos, na minha juventude, quando comecei, escrevi coisas extremamente lacanianas. Tenho até vergonha de tê-lo feito. Aliás, não é vergonha: é simplesmente engraçado; hoje parece gozado. Eu era muito ingênua e boa aluna. Sou uma boa aluna.

Percurso: Seu artigo “O olhar selvagem”, publicado na Percurso, propiciou a muitos de nós reconhecermos nosso próprio trabalho e reconhecê-lo no que existe como possibilidade de liberdade na prática clínica.

Zygouris: É preciso dizer que esse artigo é resultado de um trabalho um pouco especial. Não trabalho assim com todo mundo. Aquela situação clínica trata de coisas totalmente excepcionais. Temos momentos onde adivinhamos coisas, momentos de intuição fulgurante. A escuta analítica pode ocorrer também sob um estado de peso, de saturação, de confusão e nem sempre pela via da facilitação. Por isso digo que não sei se ali se trata da minha liberdade. Foi quase como uma novidade, contudo algo que me aconteceu. Basta que estejamos atentos para perceber que cada analista tem episódios deste tipo. Nesse sentido, talvez, a liberdade resida na capacidade de usá-los para a escrita.
        A escrita é um pouco particular: gosto de escrever e quando jovem escrevia poemas. Evidentemente não nascemos quando fazemos análise; já somos alguém antes e sem ela. A questão, por exemplo, dos “pensamentos parasitas”, que desenvolvo no texto citado, é algo sobre o qual nunca conversei com meus colegas analistas. Porém, basta que comecemos a ficar atentos ao fenômeno que acabaremos por descobrir sua existência. Podemos descartá-lo ou integrá-lo. Creio que é da verdadeira associação livre, da qual nos falou Freud, que se trata aqui – quando uma ideia cai sobre nós e não sabemos de onde vem.
Percurso:       Freud fala nisso no artigo sobre a telepatia. Talvez a atenção flutuante não seja tão flutuante assim, mas esteja parasitada por pensamentos… Do seu ponto de vista, algo sobre “pensamentos parasitas” pode ser associado ao conceito de identificação projetiva?
Zygouris:       Nunca pensei nesses termos, não sei. Nunca refleti longamente sobre o mecanismo que está em jogo aqui.
Percurso:       A noção de identificação projetiva implica que o analista esteja sendo invadido por situações oriundas do inconsciente do paciente. Não seria esse o caso quando a sra. contou, num seminário, como exemplo, da ocorrência de pensamentos parasitas, uma situação que se repetia a cada vez que a sra. ia buscar uma paciente na sala de espera, onde, então, a sra. era tomada em sua mente por palavras de xingamento em espanhol, o que, mais tarde, revelou-se como tendo absolutamente tudo a ver com a situação emocional e inconsciente daquela paciente?
Zygouris:       É possível pensar assim. Eu não sinto a necessidade de colocar algo que descobri em algo que já foi pensado. Eu o guardo como experiência que aconteceu e como momento quase que poético. Senão, temo e corro o risco de ficar esperando que isso finalmente aconteça – o que é muito ruim.
Percurso:       Poderia nos falar um pouco sobre os “Ateliers de Psychanalyse”?
Zygouris:       Depois da dissolução da Escola Freudiana, criamos um grupo que se chamava Entre-Temps e do qual muitos tornaram parte, entre eles Françoise Dolto. Entre-Temps durou dois ou três anos e cumpriu seu tempo. Seu nome já indica que tinha de acabar. Era um momento onde houve uma organização em torno de diversos grupos. Marianne Monet, Suzanne Ginestet e Michel Tort, que eram os três diretores do Entre-Temps, decidiram dissolver esta organização.
        Alguns entre nós propusemos parar com as dissoluções. Pierre Delaunay, especialmente, disse “basta à política da terra queimada” e propôs criarmos alguma coisa. Contávamos com amigos suficientes para formar um grupo de trabalho. Pensamos também que não tínhamos direito de abandonar pessoas jovens sem rumo, embora nós, os mais velhos, não tivéssemos necessidade de qualquer instituição. Fizemos grandes assembléias gerais constituintes, discussões e reuniões muito movimentadas – o que poderia levar a crer que estivéssemos em 68. Acho que as pessoas que fundaram os Ateliers são grandes fóbicos com relação ao poder, na medida em que criamos uma Federação na qual todos fugiam dele. Foi designada como Federação porque abarcava, em seu início, três associações diferentes.
        Na primeira existiam os Ateliers. Eles eram montados em pequenos grupos onde as pessoas escolhiam livremente o que gostariam de trabalhar junto, com a possibilidade de ser algo ligado à teoria ou à clínica. Essas eram suas células de base.
        A segunda associação ocupava-se da escrita. Nós não queríamos que coisas da escrita estivesse na mesma associação porque, geralmente, são as mesmas pessoas que escrevem as que tomam o poder. Há sempre um poder que ronda as coisas da escrita. Queríamos que as coisas da escrita fossem colocadas à parte, porém vinculadas à Federação.
        A terceira associação se chamava Coletivo de Eventos. Era onde convivíamos e ele funcionava como a locomotiva de toda a Federação. Seu funcionamento baseava-se em criar elementos pontuais. Aqui considero que tivemos uma visão um pouco utópica. Um dia cansou-se o Eros. Um dia o Coletivo de Eventos desmoronou. Quem publicava os atos dos colóquios L’Imparfait, num certo momento, ficou cansado; ficamos cansados de sermos máquinas de organização de colóquios. Há coisas mais interessantes para fazer na vida! Naquele momento paramos o Coletivo de Eventos e ficamos apenas na associação dos Ateliers. Decidimos investir neles.
        A associação da escrita tinha a revista L’Espace. Porém eles se distanciavam cada vez mais da Federação e queriam ser autônomos. Num certo momento se desligaram da Federação. Eles acabaram por produzir um só número da revista antes desta associação ser totalmente dissolvida: entraram em crise e todas as publicações pararam.
        Guardamos o nome de Federação como algo muito importante. Porém a única associação que permaneceu até hoje foi a dos Ateliers. Vejam que se um certo ateliê ficar destacado e quiser se tornar uma associação autônoma, poderá fazer isso mantendo-se em relação de federação com os outros. Temos uma Federação no sentido virtual do termo.
        Cada ateliê é independente dos outros. Desse modo, cada grupo, por exemplo, pode escolher ou declarar-se enquanto ateliê ou pode montar um seminário e criar assim um novo ateliê. Temos apenas um ateliê de caráter mais marcadamente institucional onde recebemos as pessoas novas, mas não se trata de um trajeto obrigatório. Alguém pode ingressar sem passar por ele. Este ateliê chama-se Caixa de Ferramentas e nele, a princípio, convidamos as pessoas a colocarem na mesa suas ferramentas de trabalho – não para exporem sempre os grandes conceitos de seus repertórios, mas para exporem a maneira de fazer seu trabalho, talvez como um antropólogo ou etnólogo expõem seus dados e técnicas antes de conceitualizá-los. Pode ser algo de cunho clínico ou teórico. É um lugar onde se toma a palavra e onde se discute. As pessoas novas podem, através dele, conhecer a associação para depois escolher ou montar seus próprios ateliês. É assim que vem funcionando já há um bom tempo.
Percurso:       Não há seleção para candidatos?
Zygouris:       Não. Nós avaliamos enquanto uma associação de analistas. Como tal, estaríamos contra quem? Contra quem é louco. No entanto, somos todos antigos loucos. Já aconteceu de nos depararmos com alguém passando por momentos de delírio. O que fazer nesse caso? Excluí-lo? Sabemos que estamos situados no primeiro posto de perigo. Não nos tornamos analistas por irmos a um “bom médico”. Tornamo-nos analistas porque ficamos desamparados e até, por vezes, psicóticos; somos forçosamente uma população extremamente frágil. E não vamos brincar de “bom médico”. Somos um grupo de analistas e, portanto, muitos próximos à loucura.
        Quais são os perigos? Os perigos são sempre fantasmáticos: o inculto, o perverso e o louco. O inculto é alguém que não sabe nada. Talvez ele deva aprender, talvez venha a se sentir muito mal entre nós e escolha frequentar a faculdade ou outro lugar de ensino porque nós não ensinamos.
        O perverso é o caso mais difícil. Creio que não temos em absoluto qualquer proteção contra o perverso. Constatei isso a partir do meu conhecimento de que os analistas que realmente cometem as piores coisas vêm de instituições as mais organizadas, as mais chiques e as mais hierarquizadas. O perverso é justamente aquele que consegue passar por todos os meandros do poder. Portanto, não valeria a pena gerar estruturas para eliminá-lo porque não vamos poder excluí-lo. O que podemos fazer é falar com ele pessoalmente. É isso que eu proponho. Podemos controlar esses episódios apenas de pessoa para pessoa. Não creio que haja sequer uma modalidade institucional que evite a entrada de um perverso. Nos Ateliers surge também, periodicamente, um vento de angústia. A turbulência é grande e todo mundo quer vir e falar com a diretoria e conclamam “o que faremos?” Só que não temos um tampão.
        De qualquer modo, há um certo nível e uma certa regulação a partir dos quais fazemos a avaliação. Esta se baseia sobre a auto-regulação; responsabilizamo-nos uns pelos outros, e é por isso que não fazemos seleção. Num certo momento talvez esbarremos num limiar, num limite, mas somente a posteriori será possível ver qual é o nosso grau de tolerância; não o sabemos de antemão. A única pergunta que fazemos aos ingressantes é se praticam ou não a análise. Se não a praticam, não os aceitamos.
Percurso:       Como a organização recebe os novos analistas?
Zygouris:       Somos uma associação tipo “1910”. Ou seja, há na França uma lei muito preciosa, a mais democrática, que permite a todos associarem-se livremente. Temos associação de pescadores, de dançarinos, de psicanalistas… É esta a base legal da maior parte das escolas e das associações psicanalíticas. Segundo essa lei é preciso haver um presidente, um secretário, um tesoureiro e um endereço legal para se constituírem como tais. Uma vez por ano tem de haver uma assembléia geral para eleger esta junta administrativa que pode incluir outros papéis e novas pessoas.
        Nós escolhemos o modelo mais simples: a junta administrativa e a assembléia geral. Torna-se membro quem paga a taxa de membro e ela é mantida num patamar o mais baixo possível. Hoje está na faixa de 800F por ano. Vai subir no ano que vem. Este recolhimento paga os custos administrativos em questão. Não temos uma sede fixa, porém temos um local onde alugamos salas para os seminários. A pessoa que ministra o seminário fica encarregada da sala. Ela aluga a sala e no dia do evento cada ouvinte paga uma taxa (40 ou 50F) para a locação e para os convites que foram feitos pelo responsável. Os seminários são publicados. As juntas são eleitas a cada dois anos e têm direito apenas a duas reeleições sucessivas.
        No momento sou presidente da junta administrativa e meu mandato termina no final do ano. No meu mandato, alargamos a nossa junta para mais de três pessoas por causa de alguns colóquios anuais e de uma pequena revista que exige um trabalho a mais, embora todos se ocupem de tudo. Gerir tudo isso exige muitas ações. Por exemplo, a cada reunião mensal faço chamadas de pessoas para assistirem nossas reuniões preparatórias do colóquio anual e da revista, a fim de que possam escolher participar desses eventos e atividades na próxima vez.
Percurso:       Como funcionam os Ateliers?
Zygouris:       Existem ateliês abertos e outros fechados. A maior parte dos ateliês clínicos são pequenos – cinco a seis pessoas – e são fechados, de forma que não sabemos o que se discute lá dentro. Frequentemente fazemos convites para que os ateliês nos contem sobre seu trabalho, suas conclusões. Às vezes eles aceitam e por vezes rejeitam esses convites. Defendo a necessidade de haver lugares protegidos onde possamos trabalhar tranquilamente e sem ter pressa. A maioria deles funciona fechado embora, ocasionalmente, aquele que quiser e julgar conveniente se abre para pessoas novas.
        Os seminários são abertos. No ano passado tivemos três; este ano apenas dois, porque um dos responsáveis queria descansar por um ano. Não há nenhuma diretiva que venha de cima: quando ninguém mais quer fazer funcionar algo, fechamos. Isso pode acontecer também para a associação como um todo. É assim que penso. Não me identifico com a minha instituição – ao contrário de outros que têm esta necessidade devido a um certo feitio narcísico. Creio que em muitas associações psicanalíticas paira o fantasma da imortalidade da instituição. Entretanto, é a instituição que engole os analistas. No começo as instituições foram criadas para poder falar das análises – com a finalidade de manter um lugar de troca entre analistas – e depois todo o trabalho passou a ser direcionado para a persistência da instituição, o que é obviamente uma aberração. Penso que, com o passar do tempo, a maior parte das instituições psicanalíticas acabam por se tornar antianalíticas. É um risco e, ao mesmo tempo, não podemos ficar completamente a sós. Precisamos da regulação e de nos defrontarmos com os outros.
Percurso:       Penso haver uma certa dificuldade em se constituir um grupo nos moldes propostos pela sra., ou seja, chamando os amigos e prescindindo das instituições já existentes.
Zygouris:       É difícil acreditar. Na França também você encontra pessoas que não têm colegas para uma troca parecida. Talvez eu tenha tido muita sorte em encontrar pessoas dispostas a isso no meu caminho. Creio que algo da minha geração; as gerações anteriores não tiveram a mesma oportunidade. De qualquer forma, no que diz respeito ao meu entorno, os jovens também têm possibilidades de trocas desse tipo. Em outros lugares sei que não têm, na medida em que muitas vezes os jovens estão inseridos no chamado processo de formação e devem, portanto, provar que estão na boa linha. Mesmo na  minha época, quando eu fazia coisas que divergiam do que fazia meu analista, por exemplo, eu guardava isso em segredo, num pequeno círculo. Mantínhamos isso numa certa clandestinidade. Foi preciso passar um tempo antes que tanto eu quanto outros colegas tenhamos podido afirmar nosso modo singular de trabalhar.
Percurso:       Na sua opinião, qual o lugar da universidade para a formação analítica?
Zygouris:       Não tento ser juíza em relação à universidade. Ela pode ser o único meio de acesso à cultura e ao reconhecimento social para alguns. É importante que os analistas sejam cultivados, mesmo em seus domínios. Isso, entretanto, não tem nada a ver com a formação analítica, já que a cultura não oferece qualquer acesso particular aos processos inconscientes.
Percurso:       Em muitas ocasiões, temos a oportunidade de ouvir psicanalistas que se colocam numa filiação francamente lacaniana e que dão uma relevância significativa ao que chamam a “constituição do sujeito psíquico”. Dentro de sua perspectiva de trabalho, qual a importância dessa noção?
Zygouris:       Não trabalho com essa noção. Eu trabalho mais com a noção de espaço psíquico – algo que me é mais familiar. Nesse momento, na França, depois de alguns anos, muitos analistas alegam que a clientela mudou. Trata-se de pessoas que apresentam uma demanda que não é propriamente de uma análise. Vêm para falar e não ligam se o que buscam chama-se análise ou é outra coisa. Não vão bem e têm necessidade de falar. Frequentemente seu discurso é extremamente pobre, imerso no cotidiano e muito concreto. Temos a impressão de que eles não têm uma vida psíquica, o que não é verdade, obviamente. Ao invés de dizer que não são sujeitos psíquicos, eu, ao contrário, perguntaria se eles têm acesso à sua própria vida psíquica, se eles sabem que sonham. Nós sabemos que sonhar é uma necessidade fisiológica e que sonhamos algumas vezes durante a noite sem que tenhamos sempre acesso aos nossos sonhos. Como fazer para auxiliar uma pessoa a se comunicar com seu próprio funcionamento, mesmo o de nível consciente e não somente inconsciente? Tudo isso é um trabalho que já faz parte da análise, na medida em que é um tipo de psiquisação de uma certa problemática. Lembremos das histéricas de Freud, que se queixavam de dores de estômago, de cabeça, etc. Tratava-se aí, inclusive, de transformar as queixas pseudossomáticas em problemáticas mais psíquicas. A sintomatologia atual mudou consideravelmente: já não encontramos no presente as grandes histéricas do tempo de Charcot; vemos as coisas de modo diferente.
        Essa noção de sujeito psíquico parece ter-se tornado hoje algo como um bolo com creme, um jogo de palavras… Se perguntamos às pessoas que a utilizam o que entendem por isso, elas não sabem responder ou fornecem uma ou outra definição de Lacan, sem serem capazes de dizer com as próprias palavras o que a noção significa.
        Da mesma forma, é preciso considerar o que Lacan falava a respeito da palavra plena e da palavra vazia. Um discurso plano, sem nuances, não expressa necessariamente uma palavra vazia e não justifica nem o corte da sessão nem o ato de colocar para fora da sala o paciente. Para mim, ao contrário, muitas vezes nesses casos encontramos a expressão de uma grande miséria que é preciso acolher e dar-lhe, de tempos em tempos, por meio da palavra do analista, a possibilidade de mudar o rumo da sua própria fala. É verdade que não podemos estar satisfeitos com um discurso superficial e plácido, mas colocando os pacientes para fora não daremos mais peso às suas palavras.
        Tenho mais alguma coisa a dizer em relação à liberdade na escrita. Talvez o fato de eu dominar vários idiomas faça com que não acredite no que possa ser dito numa única língua. Sempre traduzo as coisas para vários idiomas e me dou conta de que jamais se pode expressar tudo com a mesma língua. Certas coisas podem ser melhor ditas em uma língua e não em outra. Cada língua recorta ou capta o mundo diferentemente. As teorias são como idiomas. De vez em quando faço o seguinte exercício: tomo uma sessão e tento relatá-la em “lacanês”, em “kleinianês”, em “winnicotês” e assim por diante. Trata-se, obviamente, de graus de leitura e, forçosamente, cada grau de leitura deixa de lado algumas coisas; a leitura nunca é exaustiva. Não afirmo como Lacan que tudo que se diga só pode ser meio-dito (mi-dit) – existe aqui obviamente uma contradição com sua própria afirmação. Talvez tudo isso tenha me ajudado a não ter uma adesão para uma só coisa. Porém, quando me comparo com pessoas que só possuem a língua materna, vejo que o que tenho não é apenas uma qualidade, mas uma dificuldade também…
Percurso:       A sra. tem uma linguagem particular, uma forma particular de pensar e dizer com cada paciente?
Zygouris:       Sim. É verdade que existem pacientes mais geniais do que outros, mas isso nada tem a ver com o nível cultural do sujeito. Têm aqueles que possuem uma certa inteligência particular para captar seu próprio funcionamento psíquico, e outros, com muitos títulos universitários, mostram uma ignorância desoladora ao se tratar de seu psiquismo.
Percurso:       Não seria possível dizer que a escuta psicanalítica é um olhar, um olhar poético que permite o “olhar selvagem”?
Zygouris:       Exceto que muitos pacientes não nos permitem fazê-lo. Há pacientes que me impedem completamente de pensar; preciso, às vezes, de dois ou três anos para começar a pensar e é aí que entra a teoria na própria escuta: o paciente esvazia minha cabeça de tal modo que a teoria passa a ocupá-la. Frequentemente são pacientes aterrorizados – um terror que não é devido a um evento detectável. Portanto, quando falamos da existência de um olhar poético, digo sim. Mas só quando é possível.
Percurso:       No seu texto “O esperma do diabo” os conceitos teóricos são abundantes sem serem explícitos. Há alguma razão para isso?
Zygouris:       Há muitos conceitos nesse texto. Estão todos ocultos, mas há muitos. Talvez seja por conta de meu narcisismo. Eu sempre escondi os conceitos. Tenho um ideal de escrita. Meu ideal é que devemos escrever da forma mais simples possível. Por exemplo, escrever um fragmento clínico de forma a possibilitar que o leitor possa lê-lo em um nível ou em outro de acordo com seu estrado de formação e de conhecimento. Como se tivesse no mesmo relato uma transmissão exotérica e outra esotérica, não no sentido religioso, mas onde cada um pudesse tomar para si o que lhe é possível. Não sou contra a teorização. Apenas prefiro falar sobre formas de conhecimento. O saber é outra coisa. Tem gente que tem saber sem conhecimento e outros adquirem conhecimento com pouquíssimo saber. Acho, de qualquer forma, que todos acabam teorizando mais ou menos.
Percurso:       Talvez possamos falar que cada um rouba da teoria o que achar que lhe serve – de modo análogo ao que a sra. nos falou há pouco a propósito da sessão de análise. Possivelmente seja isso o que permite a criação, o novo, o desenvolvimento do conhecimento.
Zygouris:       Com os novos analistas é sempre algo difícil. Eu, de um lado, digo que a reverência à teoria é sempre perigosa e, de outro lado, quando me deparo com alguém inculto, fico muito chocada ao descobrir que a pessoa não leu Freud ou Lacan ou outros autores. Percebo que sou contraditória, mas penso que o analista deve ser culto sem com isso ter crença cega nos textos. A cultura é, entre outras coisas, ter conhecimento da poesia, da literatura e também poder se situar numa certa linha psicanalítica. Pode ser chocante ver certos analistas que estão o tempo todo e unicamente num certo tipo de improvisação e bastam-se a si mesmos. Afinal, já existem várias gerações de analistas que avançaram, fracassaram e tiveram êxitos – não é um percurso de todo cumulativo, porém não é preciso começar tudo do zero. É verdade que isso é algo muito contraditório. Mas creio que aqui temos um ponto em comum com qualquer artista – situo os analistas mais do lado da arte do que da ciência. O cientista deve inventar também e o artista inventa ao mesmo tempo em que se inscreve numa história. Um pintor não pode pintar hoje como antes de Cézanne existir, isto não é mais possível. Ele não tem direito de ignorá-lo, mas ele tampouco o copiará. Creio que estamos nesta problemática.
Percurso:       É possível dizer que os artistas, os pintores, pintam em função da história da arte, em função dos outros pintores. Nisso há uma relação com a história, com o conhecimento. O que a sra. pensa disso?
Zygouris:       Não podemos confundir crítico de arte e artista. O artista deve se situar em relação à história da sua arte, mas isto não é suficiente. É preciso que ele seja um criador. Há pessoas que possuem uma grande cultura psicanalítica, que escrevem coisas muito sábias e que são analistas lamentáveis. Na psicanálise há algo diferente que nos deixou muito fortes porque a psicanálise nasceu dentro da medicina. Freud foi um médico como vieram a ser também muitos outros analistas depois dele e, no fundo, espera-se que sejamos todos médicos e muito competentes. A questão é se podemos exercer a psicanálise do mesmo modo que se exerce medicina ou que se leciona filosofia. Percebemos que existe o professor de filosofia e também o filósofo – o que não é a mesma coisa. Creio que isso é um verdadeiro problema na formação de analistas; a questão não é simplesmente a constatação de que um fulano é ou não analista. O difícil com a psicanálise é que nosso material é a vida humana e não simplesmente o espaço das estrelas.
        Uma maior responsabilidade nos é confiada enquanto analistas. É preciso que sejamos mais modestos em reconhecer que devemos, em primeiro lugar, poder formar bons psicoterapeutas. Pessoalmente penso que é preciso que concedamos um lugar de nobreza à psicoterapia. Lembremos que Freud referiu-se à psicanálise como a melhor de todas as psicoterapias. Por esquecermos este fato é que acabamos mergulhados em nossos grandes problemas. Em várias instituições psicanalíticas tem-se deixado esta questão completamente de lado. Não apenas entre os lacanianos – depositamos muitos defeitos nos lacanianos enquanto outras tantas brutalidades acontecem em outros lugares; kleinianos que manuseiam tão bem as relações de objeto podem ser muito brutais na sua clínica. Lacan foi o mais intelectual dos criadores das escolas psicanalíticas e, até por isso, este problema entre os lacanianos foi deflagrado de várias formas. De minha parte considero que o psicanalista que não consegue ser um bom psicoterapeuta não é analista.


FONTE:

ZYGOURIS, Radmila. Uma geografia peculiar. Percurso, São Paulo, n. 16, p. 98-109, 1996.

Realização: Isildinha Baptista Nogueira, Mara Selaibe, Maria Auxiliadora de Almeida Cunha, Miriam Chnaiderman. Tradução: Daniel Delouya.

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