UMA HISTÓRIA NÃO CONTADA SOBRE AS CLÍNICAS PÚBLICAS DE FREUD

 A Berlim da década de 1920 abrigava a policlínica, o programa carro-chefe dos psicanalistas para a terapia pública e, para muitos, o coração da Sociedade Psicanalítica de Berlim, assim como o Ambulatorium o era para os vienenses. Para o analista e professor húngaro Sándor Radó, os analistas de Berlim haviam criado uma “sociedade maravilhosa”, um grupo particularmente vivaz e estimulante de profissionais progressistas tão popular entre os intelectuais da cidade que Karl Abraham esteve a ponto de introduzir a psicanálise como disciplina na universidade. Estagiários internacionais em serviço social, psiquiatria, orientação infantil e psicologia afluíam à policlínica não só da França e da Inglaterra, mas também do Egito, de Cuba e dos Estados Unidos. “Enviem-me, por favor, todas as informações disponíveis sobre o seu instituto”, escreveu o psicólogo do Hospital Estadual de Worcester, Norman Lyon, em agosto de 1929. “Espero, em algum momento, ensinar Psicologia e dirigir uma clínica de acordo com essa disciplina. Dos ambientes interiores modernistas concebidos por Ernst, o filho arquiteto de Freud, aos projetos educacionais, os empenhos da clínica para atender às obrigações sociais da psicanálise correspondiam à perspectiva social, política e cultural da Berlim de Weimar. Ernst estudara com Loos em sua oficina de Viena e explorara com sucesso as linhas simples e as superfícies sem adornos de Loos em um design comunitário para a sala de espera da clínica. Em sua prática terapêutica, os psicanalistas de Weimar debatiam abordagens não tradicionais de tratamento e, no plano social, defendiam a reforma penal, a liberação sexual, a igualdade de gêneros e a descriminalização da homossexualidade. Porém, mesmo em Berlim, onde a riqueza de Eitingon e a eficiência de Karl Abraham como diretor da sociedade levaram a uma simplificação da fórmula de Freud para a distribuição de serviços gratuitos, assumiram-se compromissos e pacientes eram vistos a domicílio. A demanda pública por um tratamento psicanalítico, que parecia superar qualquer solução para as inadequações crônicas de tempo e espaço, foi sensacional.

A psicanálise não estava realmente desconectada da rede geral de serviços de saúde mental disponíveis nem em Viena e tampouco em Berlim. Clínicas médicas e de saúde mental privadas, outrora restritas às pessoas abastadas ou quase abastadas, abriram suas portas a todos os estratos da sociedade. Pelo menos desde 1916, os governos haviam apoiado a psicanálise como uma forma de psicoterapia para ajudar soldados em estado de choque que voltavam das linhas de frente. E, embora Alfred Adler rompera com as fileiras de Freud em 1911, os membros da sua popular Sociedade de Psicologia Individual contavam com consultórios para orientação infantil ligados ao sistema educacional municipal de Viena. Com sua ênfase intransigente na sexualidade humana, a psicanálise era só um dos muitos tratamentos disponíveis da psicologia moderna, porém, mesmo assim, o mais complexo e controverso. No Ambulatorium de Viena, situado na Pelikangasse, a psicanálise era praticada diariamente por clínicos intimamente ligados à mudança na agenda médica e sociopolítica da Viena Vermelha. E na Potsdamerstrasse, em Berlim, a Policlínica oferecia aos pacientes psiquiátricos da cidade uma alternativa compassiva aos cuidados institucionais do Hospital de Charité, recebendo aqueles que os estabelecimentos médicos e psiquiátricos estavam prontos a dispensar.

Embora, em 1938, os nazistas tivessem exaurido a psicanálise de tal modo que era possível percorrer os centros acadêmicos de Berlim ou de Viena sem encontrar um único analista, muito menos um judeu, Otto Fenichel e seu grupo de colegas exilados mantiveram suas crenças com mais veemência do que nunca. A clínica de Berlim fechou as portas em 1933; a Sex-Pol, em 1934; o Ambulatorium de Viena, em 1938. Ainda assim, Fenichel encorajava seus antigos colegas a preservar uma posição política crítica, ainda que a policlínica não tivesse sido arianizada (não fechada tecnicamente) em 1933. Nas Rundbriefe, uma série extraordinária de cartas escritas para e entre seu círculo de analistas ativistas, Fenichel articulava o confronto entre aqueles que fielmente defendiam o humanista Freud e uma nova classe de clínicos alinhados com a psicologia do ego. Nos dez anos seguintes, Fenichel veria a nova teoria da adaptação da psicologia do ego de Heinz Hartmann, no melhor dos casos como neofreudiana e, na pior das hipóteses, como uma versão conformista e estranhamente pré-freudiana. O grupo de Fenichel argumentava consistentemente, junto com seus colegas da Associação dos Médicos Socialistas de Ernst Simmel, que a importância da psicanálise estava precisamente em sua dimensão social, inclusive marxista. “Estamos convencidos”, escreveu Fenichel de Oslo, em março de 1934, “de que reconhecemos na Psicanálise de Freud o germe da psicologia dialético-materialista do futuro e, portanto, precisamos desesperadamente proteger e ampliar esse saber”.

É intrigante que a história do ativismo político na psicanálise tenha sido consistentemente omitida do público. As carreiras dos membros da segunda geração de psicanalistas foram exemplares. Os alunos de Freud eram líderes na academia, na medicina e mesmo no exército. A evidência histórica oral e escrita, ainda que fragmentada, confirma que o movimento psicanalítico nos seus primórdios, foi construído em torno de um núcleo político progressista, intimamente ligado ao contexto cultural da Europa Central entre 1918 e 1933, e que as clínicas ambulatoriais gratuitas eram uma implementação dessa ideologia. Esse discurso se faz presente quando situa a psicanálise no contexto dos movimentos sociais, alternadamente reformistas e conformistas, do modernismo, do socialismo, da democracia e do fascismo do século XX. Hoje, as Rundbriefe, de Otto Fenichel, sobrevivem como uma eloquente documentação do elo histórico entre a psicanálise e a política progressista, tão clássica em sua forma epistolar como o texto psicanalítico de referência de Fenichel, “A Teoria Psicanalítica das Neuroses”. No momento em que este livro é escrito, são frágeis folhas de papel, com tipografia antiga, presas por clipes enferrujados. As Rundbriefe, porém, contam parte da história da evolução do movimento psicanalítico de 1934 a 1945, de seus participantes ativos e de suas maiores lutas ideológicas na Europa e na América. A reconstrução de outras crônicas igualmente válidas, a partir de memórias pessoais, dos poucos documentos subsistentes e dos fragmentos amplamente dispersos em diversos arquivos, constitui um desafio. No entanto, as afiliações políticas reais de membros proeminentes do movimento psicanalítico são fato comprovado. Entre os marxistas declarados estavam Erich Fromm, Otto Fenichel, Karl Landauer, Barbara Lantos, Georg Gerö, Frances Deri, Käthe Friedländer, Steff Bornstein e Wilhelm e Annie Reich. Bruno Bettelheim, Grete Bibring, Helene Deutsch, Ernst Simmel, Willi Hoffer, Eduard Kronengold (Kronold), Siegfried Bernfeld e Heinrich Meng se identificavam como socialistas. Entre os comunistas conhecidos estavam Anny Angel-Katan, Edith Jacobson, Edith Gyömröi, Edith Buxbaum, Marie Langer, Ludwig Jekels e Wilhelm Reich. Eduard Hitschmann, Paul Federn, Karen Horney, Josef Freidjung e Sigmund Freud eram sociais-democratas. Desde então, alguns desses analistas como Erik Erikson e Karen Horney, ganharam reputação enquanto Helene Deutsch e Erich Fromm, por exemplo, desapareceram gradualmente da paisagem cultural atual e outros, como Wilhelm Reich e Sándor Ferenczi, ressurgiram com surpreendente força. À semelhança das Rundbriefe, que desapareceram do domínio público, o destino histórico das clínicas contrasta totalmente com os sofisticados padrões da formação psicanalítica e com o modelo da prática privada que hoje prevalecem nos institutos psicanalíticos e nos consultórios particulares em todo o mundo.

Com sua cultura fragmentada pelo terrorismo, obrigada a reconstruir sua vida profissional em uma língua estrangeira, e assolada pelo gritante nacionalismo do pós-guerra, a maioria dos psicanalistas da Europa Central se exilou. Ainda assim, eles confiavam em que a boa vontade e a compaixão geradas pela psicanálise acabariam por triunfar, caso amenizassem as histórias de seu passado radical. Ernest Jones sempre fora uma voz do conservadorismo, mas seus pronunciamentos sobre a consciência social em 1926 colocaram a clínica da Sociedade britânica em um curso tal que, ainda em nossos dias, continua a oferecer psicanálise gratuitamente aos moradores de Londres. O Centro Jean Favreau ainda prospera sob a Sociedade Psicanalítica de Paris, fundada em 1920 e dirigida durante muitos anos por Marie Bonaparte; seus psicanalistas dão consultas e tratamentos gratuitos aos residentes de Paris.

Perto do final da Primeira Guerra Mundial, Ernst Simmel, que servira como médico do exército e fora diretor de um hospital para soldados com traumas de guerra, escreveu sobre a necessidade premente de participar da “economia humana […] por causa do desperdício de vidas humanas durante os anos de guerra e para a preservação de todas as nações”. Ele acreditava que a comunidade fosse a força vital da sobrevivência. Para Simmel, como para Freud, as clínicas gratuitas personificavam a coletividade dentro da psicanálise. Os psicanalistas se uniram na luta do début de siècle na Europa para construir uma democracia desprovida de sentimentalismo e um mundo melhor. Helen Schur, estudante de medicina na Universidade de Viena na década de 1920 e mais tarde esposa do médico pessoal de Freud, Max Schur, resumiu isso muito bem. “Creio que eles achavam que isso seria a libertação das pessoas. Para conseguir que elas ficassem realmente livres de neuroses, para que estivessem mais preparadas para trabalhar, ou seja, como disse Freud, para amar e trabalhar.”

O que se segue é a história dessa libertação.

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Trecho retirado do livro de Elizabeth Ann Danto em “AS CLÍNICAS PÚBLICAS DE FREUD: PSICANÁLISE E JUSTIÇA SOCIAL (1918-1938)”.

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