VIDA E OBRA DE FÉLIX GUATTARI: É difícil dizer adeus: do anti-édipo à ecosofia – por Luis Alberto Warat

Lo único inmutable en el hombre es su vocación para lo mudable; por eso la revolución será permanente, contradictoria, imprevisible, o no será. Las revoluciones-coágulo, las revoluciones prefabricadas, contienen en sí su propria negación, el Aparato futuro

Julio Cortázar (falando de maio de 68)

I – A filoestética do desejo como filosofia

Internamente comovido, tentarei escrever, no momento de sua morte, sobre a obra de Felix Guattari, o expressivo intelectual francês que incansavelmente em sua fala celebrou a vida. Filósofo sem assepsias, ético sem moralismos, trabalhador da saúde mental sem amarras no inconsciente familiarista da psicanálise, semiólogo silvestre, esteta da praça pública, militante da vida quotidiana, ativo estimulador dos movimentos sociais que chamaria de “irruptivos”, espontâneos, sem messias que os iluminem… Pois tudo isso foi este pouco ortodoxo intelectual que pretendia renunciar a essa condição para reafirmar-se enquanto tal.

Em linhas gerais, poder-se-ia dizer que Guattari foi o que eu chamaria de um “filoesteta” apegado à criatividade e às práticas de singularidade da subjetividade individual e coletiva (entendendo ainda que seria impossível a singularidade individual fora de contextos coletivos solidários): um ecologista da vida cotidiana em permanente questionamento das crenças preestabelecidas, dos desejos manipulados pelas instituições, das arrogâncias dos grandes princípios, enfim, de tudo o que impossibilitasse o devir do desejo para a sua própria singularidade.

Guattari foi um filósofo que tentou problematizar seu presente, fugindo, para isto, da confortável cápsula dos claustros universitários. Simbolicamente se auto-expulsou da academia para ocupar os meios de comunicação, para fazer a guerra e exercitar sua cólera contra sua época em praça pública, sua guerra de guerrilha através de suas navegações cartográficas.

A condição transmoderna (como eu denomino a pós-modernidade) submeteu a figura do filósofo a uma surpreendente gama de modificações. Tornou-se quase impossível manter a imagem de um filósofo contemplativo e solitário. A sensibilidade imposta pela mídia obrigou o filósofo a dirigir-se a todas as pessoas, jogando-se no meio dos acontecimentos, colocando seu corpo no mundo, sentindo o que está acontecendo. O fim da filosofia como produção de teorias, trocada por uma filosofia do futuro, como questão que tem a ver com os problemas da existência diária, que se realiza como uma questão de “estilo” para viver, é uma circunstância quotidiana que leva ao desaparecimento do filósofo enquanto funcionário universitário manipulador de teorias.
Os “belos” temas que agora o filósofo encontra para interpretar e avaliar são retirados da própria vida e não mais de suas rivalidades acadêmicas ou de seu fundo narcísico de “bom iluminado”: a AIDS, a corrupção, as tendências destrutivas, as formas de crueldade que substituem à solidariedade arrancam muito mais seu compromisso do que as tradicionais filigranas das preocupações eruditas. E Guattari foi absolutamente cúmplice desta nova atitude filosófica.

Deleuze foi o grande parceiro de Guattari. Escreveram a duas mãos o “Anti-Édipo”, um livro que, reinterpretando o maio de 68 francês, abalou a década de 70, denunciando presumidas insuficiências na concepção do inconsciente freudiano que não se encarrega das determinações políticas do desejo e também as limitações da teoria marxista que não levou em conta o desejo como produtor da realidade. Junto com Deleuze, Guattari também escreveu um de seus dois últimos livros “O que é a filosofia?” que está há muitos meses na lista do livros “top-ten” nas livrarias próximas à Sorbone e ao Louvre ( o outro livro é: “Caosmose: um novo paradigma estético” lançado recentemente no Brasil).

A dupla Guattari-Deleuze é objeto de fascínio e condenação. Os psicodramatistas, os analistas institucionais (corrente de intervenção nas instituições com cobertura psicanalítica) e diversos trabalhadores da saúde mental aceitam sem limites sua contribuição. Os funcionários da filosofia, por outro lado, os rejeitam sem concessões, não aceitam suas estratégias de interpretação que “vampirizam” Espinoza, Nietzsche, Leibniz e outros, fazendo desse roubo quase um método para sua filosofia cartográfica. Uma atitude de apropriação do saber do outro feito com o propósito de desvendar os deslizes, os silêncios, as vozes silentes dos roubados. Falar o que o outro não se atreveu a dizer. Uma coisa que os funcionários da filosofia não querem entender.

A leitura que faço dos textos de Guattari me sugere um nome para sua postura: filoestética; uma filosofia dirigida diretamente para os não-filósofos, que unifica vida e obra, que atravessa e entrecruza os mais heterogêneos lugares (cinema, poesia, televisão, ecologia, psicanálise, rádio pirata, etc) na exigência de transformar a vida e pensar o próprio presente. Entrecruzamento de lugares e saberes realizado através de uma fuga das posturas cientificistas em direção a formas expressivas ético-estéticas. Uma ruptura com a filosofia mascarada e com os filósofos de ofício que fazem do ideal asséptico de sua aparência exterior um arremedo de sentido para suas vidas distantes do mundo, como diz Deleuze falando junto a Nietzsche.

A atitude estética em filosofia é um forte abalo para uma maneira de ser da filosofia que renega o mundo e se faz passar pela atitude filosófica por excelência. É a atitude estética a que permite o surgimento de um filósofo inventor de possibilidades de vida, cuja simples narração já nos dá alegria e força. Em um mundo à beira de um ataque de nervos (parodiando Almodóvar) é preciso a abertura de uma filoestética que permita invenção, audácia, desespero, prazer, esperança como nas viagens dos grandes navegadores: viagens de exploração cartográfica.

Uma troca do lugar das batalhas: heterogêneos micro-territórios ético-estéticos que permitem engendrar verdades instaladas na potência e na vida, que conservam uma espontaneidade rebelde e criativa. Verdades que são sempre expressão de uma multiplicidade não totalizável.

A filoestética seria uma forma de sensibilidade poético-racional que mostra que os universos de valor epistêmico não têm porque ser mais importantes que as formas da criatividade estética. Uma “razão ardente”(como a chamei em meu “Manifesto do surrealismo jurídico”) que estabelece uma relação direta do desejo com o sentido através dos matizes e dos tons libertadores da expressão poética, sem a intermediação dos padrões teóricos que terminam encarnando as verdades no corpo dos filósofos em lugar destes aproximarem-se delas em ato poético. A filoestética de Guattari é uma filosofia voltada para o futuro, e como tal não pode ser histórica nem eterna: deve ser intempestiva como o ato poético.

Resulta evidente que a criação intempestiva de incidentes interpretativos ou fluxos de sentido não pode conduzir-nos para nenhuma forma de irracionalidade, nem de desqualificação da razão. Guattari é muito consciente disto. Ele não concebe uma estética filosófica que não esteja ao serviço da criação de valores para o futuro. Sem nenhuma reticência, Guattari enfatiza que a grande e imprescindível parceira filosófica da estética é a ética.

A atitude filoestética de Guattari não encontra unicamente parceria em Deleuze. Sem retrocedermos a Nietzsche, podemos dizer que ela está ganhando espaço em uma boa parcela da filosofia dos anos 90: Baudrillard, Lyotard (que enxerga a teoria como o gozo na paralisia) para citar alguns nomes (entre os quais me incluo).

Em sua recente passagem por Buenos Aires (primeira quinzena de setembro) Baudrillard enfatizou o fato de que existe na atualidade uma tendência a produzir uma poética/teórica como recriação da linguagem diante de uma tradição de escritos teóricos abstratos, com um esclerosado tom acadêmico. Seu livro “Cool Memories”(organizado na base de aforismos) responde a esse novo esquema. Para este perturbador socio-filósofo da transmodernidade, a poesia continua presente, ainda que não esteja manifestando-se em textos poéticos como forma pura. O mesmo afirmo, coincidindo com Guattari [da filosofia], que tampouco a encontramos na filosofia. Estamos vivendo, para Baudrillard, uma época onde se produz uma sorte de deslocamentos e dispersões das questões filosóficas e poéticas nas múltiplas imagens do mundo. Isto obriga, acrescento eu, a considerar a filosofia e a poética como elementos já dispersos nas comunicações de massas. Um fato que presumo irreversível que convém assumir para poder aproveitá-lo a favor dos processos de autonomia e contra as tendências “imagológicas” (expressão de Kundera na Imortalidade) da indústria massiva da própria subjetividade.

Urge trabalhar sobre as diversas intensidades da cultura transmoderna para poder mudar os valores e as condições quotidianas de existência . Acredito que esta é a ideia que inspirou Guattari a desenvolver sua cartografia ecológica, sua “ecosofia”.

A atuação estética aparece como fundamental na medida em que as formas de alusão dramática, como diz Guillermo Maci, são nossos modos de inserção na vida. O drama é nossa forma de nos encontrarmos com o outro. Geralmente, a atuação dramática contém “um silêncio dramático que é a memória do esquecimento , o que o corpo não quer lembrar e que se expressa como rivalidade, ciúmes, inveja. Um fantasma que atua sem sabê-lo e nos compromete sem adverti-lo mostrando outra coisa. Nesse ponto a filosofia, juntando-se com a psicanálise e a estética pode influir, transformar o que não se pôde saber em valoração e interpretação, construindo conceitos, que é o modo de se fazer filosofia para Deleuze e Guattari.

Levar o poético até suas últimas conseqüências na vida. Uma afirmação que pode ser tomada como síntese expressiva da cartografia filoestética de Guattari. Um caminho que tento percorrer como oposição aos simulacros estéticos da transmodernidade que tenta nos dissuadir de toda atuação dramática convertendo-a num dramalhão sentimental: os silêncios da atuação trivializados.

II – A Ecologia como filosofia do futuro

A filoestética é, sem dúvida, o suporte da proposta ecológica de Guattari. Poder-se-ia dizer que a grande contribuição ecológica de Guattari se centrou em sua tentativa de deslocamento das questões ecológicas para o território de uma filosofia do futuro que antevê os problemas do amanhã a partir da estética.

O pensamento ecológico, via de regra, encontra-se capturado pelos resplendores da palavra filosófica que a academia controla. Assim, fica prisioneiro das armas da paranoia e do poder que essas verdades incitam (muitos militantes ecológicos terminam por encarnar essa paranoia e esse poder.) Reiteradamente encontram-se messias que predicam o ideal asséptico que é marca registrada dos filósofos de ofício. Podemos entender que Guattaritentou buscar uma saída. Quando a morte o surpreendeu estava totalmente comprometido com sua “ecosofia”(pouco tempo antes de morrer havia participado da Eco 92) para navegar contra os velhos princípios que descansam num polo de imobilização provocado por um discurso filosófico que simula a unidade e a totalidade (para Lyotard a abstração exige a imobilidade e o desafeto). Como um manequim que exibe roupa inacessível como modelo a imitar, os modelos engendrados pelos filósofos de ofício se oferecem para ser imitados, na repetição do mesmo, no gozo pela reprodução em série. A negação das diferenças . Uma filosofia que não é outra coisa senão uma atuação deteriorada, rigorosa, que nunca pode funcionar como reconhecimento das condições de existência. Uma atuação impecável, como diria Guillermo Macci, que conduz ao esquecimento tudo o que possui vínculo com a vida, com o outro e com as condições de identidade. Uma atuação cega. 

A ecosofia se afasta dos discursos imobilistas procurando um polo de “agitação” que mergulhe o corpo nas intensidades vividas, recuperando o dispositivo libidinal. Uma mudança nas condições de produção do saber e da subjetividade que permite outro tipo de incidência integradas sobre o discurso e a prática ecológica. Um recurso contra o terror da verdade e o poder. Um elogio ao homem sem certezas. (tema central da crise do homem na transmodernidade).

A ecosofia guattariana nos coloca diante da possibilidade de uma ilusão de certeza e da aquisição de um ponto de vista que coloque o homem diante de seu próprio limite e de sua própria possibilidade. Um antídoto contra o desencanto que unicamente provém da precariedade dos fundamentos de certeza perdida. Porque não existe saída ecológica sem a caducidade dos fundamentos de certeza. E isto é algo que permanentemente emana da ecologia guattariana: uma tentativa de esboçar a necessidade de um homem novo: o homem sem certezas. Isto é o que Guattari chama de pragmática da singularidade.

A proposta ecosófica é uma plataforma de lançamento para uma nova visão do mundo que renuncia à perseguição de uma impossível utopia perfeita, que no fundo deixa o homem enclausurado num gueto de verdades últimas. É a ecologia para um homem mental, afetiva e politicamente (as três instâncias ecológicas propostas por Guattari) disposto a atravessar múltiplas experiências existenciais, explorar o novo e abrir-se para o outro como diferença.

O homem sem certezas se perfila na figura de um intelectual oposto ao filósofo messiânico, portador de soluções mágicas. Um intelectual que precisa renunciar aos devaneios escatológicos.

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Publicado em  Revista Seqüencia N.º 25, Curso de Pós Graduação em Direito – UFSC, Dezembro de 1992 – p. 79-84.

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