Resumo: O artigo¹ discute o papel da Psicologia enquanto ciência e profissão no enfrentamento do racismo e na redução das desigualdades raciais no país. O processo de negação do racismo no Brasil e a violência de Estado, produzindo o desconhecimento de parte da população sobre sua existência e o processo histórico e social de exclusão e retirada de direitos da população negra, descartando a oportunidade da reflexão dessa problemática e dos efeitos psicossociais produzidos nos sujeitos discriminados. Em meio à negação do outro, pode não ser percebido, mas a sociedade como um todo acaba perdendo as potencialidades que envolvem sua diversidade. A discriminação racial pressupõe uma violência que transita pelo corpo do sujeito, pois atinge sua identidade corporal, produzindo impotências e negação de si e do outro. A Psicologia em conjunto aos setores da sociedade deve fortalecer as lutas dos direitos humanos, fortalecendo e construindo instrumentos e mecanismos para o enfrentamento da violação desses direitos, promovendo debates e ações para uma sociedade mais democrática e igualitária.
A Psicologia enquanto ciência e profissão está intrinsecamente envolvida nas lutas em relação às desigualdades, preconceitos, estereótipos entre outros temas ligados aos direitos humanos. O tema “Violência de Estado ontem e hoje – da exclusão ao extermínio” promovido pela Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Conselho Regional de Psicologia (CRP-SP) é atual e ao mesmo tempo antigo. A sociedade brasileira sofre diariamente com a Violência de Estado, suas políticas e instrumentos emparelhados a um sistema que promove exclusão e extermínio de culturas e seres humanos.
A comunidade internacional de direitos humanos tem se desenvolvido no âmbito da elaboração de documentos que possuem a finalidade de determinar as diretrizes para a construção de uma sociedade que respeite a paz, os direitos fundamentais do ser humano e a dignidade humana (MUNHOZ, 2009, p.6).
Sabemos que somente a elaboração de documentos e legislações não soluciona o problema. Em nosso cotidiano é visível os episódios de violência contra a população que em meio ao caos enfrenta imensa dificuldade para que seja garantido a não violação desses direitos humanos e, principalmente, promover uma práxis onde esses direitos sejam praticados por todos (MUNHOZ, 2009).
A partir do século XXI tem início no Brasil à aplicação das chamadas políticas de ações afirmativas com recorte racial, primeiramente em instituições acadêmicas (universidades), posteriormente no âmbito público. Houve então a abertura de uma promoção ao que se refere à igualdade de oportunidades e uma ampliação dos debates em espaços institucionais. Esses debates são de profunda importância, pois não envolve somente a população negra, mas fundamentalmente a sociedade como um todo. Neste contexto das ações afirmativas com recorte racial, surgem questionamentos antigos acerca da população brasileira e suas identidades raciais, como: quem é branco e quem é negro? (SCHUCMAN, 2012).
O movimento de negros e negras através da organização e mobilização na luta contra o racismo e pela promoção da igualdade racial foi o principal responsável pelas conquistas na esfera política e social, possibilitando um importante deslocamento na questão racial que pode ser identificado nos dias atuais – embora ainda exista um longo percurso de enfrentamento e resistência. O movimento antirracismo através da mobilização popular exigiu do Estado e da sociedade brasileira um posicionamento, apresentando em suas pautas o debate sobre o racismo, a violência de Estado e suas ideologias racistas, desde a Educação até as ações policiais da qual é permissível atestar que promovem um genocídio da população negra, principalmente da juventude negra (I PSINEP, 2011).
Durante a formação em Psicologia há quem pergunte: o que a Psicologia tem a ver com o racismo? Questionar é sempre um bom começo antes de agir, intervir e contribuir, mas o que encontrei nesta caminhada acadêmica foi uma pergunta no sentido inverso de contribuição, pois partiam diretamente por um viés de negação e desvalorização da luta e dos fatos históricos políticos e sociais do movimento antirracismo.
Segundo Schucman (2014) a Psicologia se envolveu timidamente em relação às questões raciais no Brasil. Os currículos dos cursos de psicologia raramente mencionam temas como o racismo em suas disciplinas obrigatórias. “A formação de psicólogos ainda está centrada na ideia de um desenvolvimento do psiquismo humano igual entre os diferentes grupos racializados” (SCHUCMAN, 2014, p.85).
A associação Ação Educativa realizou em 2012 um curso de formação em “Educação, Relações Raciais e Direitos Humanos” (disponível online), abordando em seu segundo encontro a temática das “Relações Raciais: identidades negras, branquitude e pertencimento racial” com a participação da psicóloga e psicanalista Maria Lúcia da Silva, uma das fundadoras do Instituto AMMA Psiquê e Negritude.
Silva (2012) discorre acerca de um racismo que se encontra interiorizado na cultura brasileira e, neste sentido, pensar esse racismo numa perspectiva psicossocial é refletir sobre o processo de interiorização dos signos e significados que a ideologia racista se interioriza no processo de desenvolvimento dos sujeitos. Quando refletimos sobre essa ideologia racista no Brasil, pressupõe-se “a inferioridade dos negros em relação aos brancos”. Deste modo encontramos em nossa cultura desde os meios de comunicação aos livros didáticos, assim como nas relações entre negros e brancos, a ideia da desvalorização do sujeito negro, o que proporciona a produção de impactos psíquicos nos sujeitos inferiorizados.
A Escola é um ambiente formativo de extrema importância no desenvolvimento humano, mas é também um ambiente repressivo, onde ainda é possível constatar a desvalorização/inferiorização das raízes negras na formação educacional de crianças e adolescentes. É neste espaço onde as crianças negras encontram em seu processo de desenvolvimento e socialização os primeiros momentos de desvalorização de seu cabelo, sua cor e cultura. Ninguém nasce racista, mas em uma sociedade racista, geramos crianças que reproduzem o racismo.
As ideologias de Estado podem ser percebidas como racistas, em razão de sua contribuição para que esse processo não seja alterado, pois desde seu conteúdo escolar o que até este momento demonstra ser valorizado nas instituições escolares são referências voltadas à cultura branca e a história da Europa, evitando a história da África, por exemplo. Torna-se relevante acrescentar que os negros nestes livros “educativos” são demonstrados em situações de inferioridade e a existência de um sistema que nos ensina que há sempre outros melhores. Em que pese exista atualmente leis como a Lei 10.639/03 e 11.645/08 que instituem a obrigatoriedade do ensino da história e cultura dos negros, dos povos indígenas e a história da África nas escolas, objetivando uma escola não discriminatória. Ainda no atual momento não se encontra a efetivação dessa prática nas escolas em sua totalidade. Portanto, além da criação de leis é preciso que seja realizada a fiscalização das mesmas (MUNANGA, 2015).
Esses múltiplos fatores descritos até o momento produzem no imaginário dos sujeitos uma forte impotência, resultando em sofrimento, ataques a sua identidade e ao seu corpo no decorrer de sua história de vida. E dessa maneira, desde a infância, a interiorização de uma superioridade do outro branco percorre o âmbito das relações sociais entre os sujeitos (SILVA, 2012).
Como toda mensagem ambígua, o comando vai angustiar. Vai alimentar pesadelos e sentimentos mórbidos. Vai distorcer e disfarçar a realidade vai enganar a memória e o pensamento, vai envenenar a consciência de si como consciência de alguém desprezível. Nos países de passado colonial e escravista não é difícil adivinhar quem são os alvos preferidos da frase aviltante: os negros. A frase é assiduamente disparada contra a voz e a ação do negro: ponha-se no seu lugar! A posição inferior, embora engenhada e fabricada pela dominação, vai ser atribuída à natureza. Gente historicamente rebaixada ouvirá que seu rebaixamento liga-se à raça e que deverá assumir o lugar serviçal como seu lugar natural (FILHO, 2008, s/p).
O Brasil é um país que sistematicamente nega a existência do racismo e um dos desafios neste enfrentamento é tornar visível sua existência negada pelo Estado e por parte da sociedade. A partir do momento em que a negamos, descartamos a oportunidade da reflexão acerca de sua problemática e seus efeitos psicossociais, e perpetuamos – mesmo sem perceber – o racismo numa categoria invisível onde transcorrem violências físicas e simbólicas e o silêncio ocupa o lugar em que o não-dito afeta e prejudica psiquicamente os sujeitos marcados com as discriminações no decorrer de sua história de vida.
Há séculos, diariamente parte da sociedade olha para população negra como indiferente, como não humana. Em nossa atualidade este olhar pode transitar despercebido, pois leis foram criadas para combater a discriminação racial, assim como o Art. 5º da Constituição Federal de 1988 que define: “a prática do racismo constitui crime inafiançável, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. Mas os olhares discriminatórios e suas expressões ainda sobrevivem de diversas formas no âmbito social. Os olhares desumanos ainda caminham pelos centros e até mesmo nas periferias das cidades.
O Racismo, o Estado e suas violências
“Waldik Gabriel e Ítalo são vítimas de um Estado que mata crianças negras, em vez de protegê-las”, esse é o título da matéria escrita pela jornalista Bianca Santana e publicada em 27 de junho de 2016 no HuffPost Brasil (Brasilpost). Crianças e adolescentes são assassinadas sob as mãos e ordens do Estado todos os dias. Um único tiro atingiu a nuca da criança citada nesta notícia, a Polícia Metropolitana relatou que estavam sendo perseguidos, pois o carro havia sido descrito por motoqueiros assaltados, mas a madrasta da criança relata que ele estava indo à quermesse com amigos. A questão apresentada não é sobre quem diz a verdade, mas sim que a polícia atirou diretamente na nuca de uma criança. Quem dá ordens? Quem puxa o gatilho? O Estado e sua violência policial, mas parte da sociedade é conivente com essas ações.
Segundo os dados do relatório da CPI do Senado (2016) sobre o Assassinato de Jovens, publicado em junho de 2016, os homicídios de jovens negros têm se multiplicado pelo país. “Execuções sumárias, muitas vezes públicas e realizadas de forma ruidosa têm se tornado prática recorrente. As chacinas, os autos de resistência e a violência ligada ao tráfico de drogas fazem parte do cotidiano desses jovens. Segundo os dados do Mapa da Violência, entre 2002 e 2012, os assassinatos de jovens negros cresceram 32,4% passando de 17.499 para 23.160 homicídios” (Relatório da CPI, 2016, p.63).
O relatório intitulado “Você Matou Meu Filho” da Anistia Internacional, publicado em 2015 demonstra que somente em “2012, mais de 50% de todas as vítimas de homicídios tinham entre 15 e 29 anos e, destes, 77% eram negros” (Anistia Internacional, 2015, p.5). Esses altos índices são alarmantes para a nossa sociedade como um todo, demonstram a realidade objetiva de um racismo estrutural e institucional que a cada 23 minutos assassina um jovem negro no Brasil, como afirma o relatório da CPI (2016). “A militância do Movimento Negro auscultada pela CPI, em sua totalidade, classificou como sendo um verdadeiro Genocídio da População Negra o que ocorre atualmente em nossa sociedade” (BRASIL, 2016, p. 22). Esse genocídio da população negra possui responsabilidade direta com ações e omissões do Estado. É válido ressaltar a ferramenta militar do Estado com um aumento da violência policial, justificando os assassinatos e ações policiais com os chamados autos de resistência (BRASIL, 2016).
Os dados são visíveis e infelizmente com números extensos crescendo a cada ano. Isto é uma “limpeza da população negra” no Brasil? É uma política de Estado? Sim, e precisamos resistir e acabar com esse racismo seja institucional ou individual.
De acordo com Schucman (2014) o racismo individual são atitudes e ações individuais de discriminação racial realizadas em práticas de relações interpessoais e o racismo institucional se estrutura através dos mecanismos de discriminação inscritos no corpo da própria estrutura social, funcionando entre os sujeitos até mesmo sem intencionalidade consciente, “ou seja, se estabelece nas instituições traduzindo os interesses, ações e mecanismos de exclusão perpetrados pelos grupos racialmente dominantes” (SCHUCMAN, 2014, p.86).
o racismo institucional aparece como um conjunto de mecanismos, não percebido socialmente e que permite manter os negros em situação de inferioridade, sem que seja necessário que os preconceitos racistas se expressem, sem que seja necessário uma política racista para fundamentar a exclusão ou a discriminação. O sistema nessa perspectiva funciona sem atores, por si próprio (Wieviorka, 2006, p.168 apud Schucman, 2014, p.86).
O relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) divulgado em março de 2016 pelo especialista em direitos humanos da ONU sobre tortura, Juan E. Méndez, apresenta críticas ao Brasil em relação às torturas e maus-tratos nos presídios e delegacias brasileiras, denunciando o racismo institucional, especificamente do sistema carcerário do país onde 70% dos presos são negros (ONU, 2016). O documento afirma que “Negros enfrentam risco significativamente maior de encarceramento em massa, abuso policial, tortura e maus-tratos, negligência médica, de serem mortos pela polícia, receber sentenças maiores que os brancos pelo mesmo crime e de sofrer discriminação na prisão – sugerindo alto grau de racismo institucional” (ONU, 2016, s/p).
Segundo Silva (2012) a discriminação racial pode ser pensada como uma violência e que percorre no corpo do sujeito, pois essa discriminação ocorre pela sua identidade corporal, portanto, a carga negativa gerada por essa discriminação deixa marcas de impotência, de inferioridade, de negação de si e do outro semelhante. O ser negro carrega sua história em seu corpo, as marcas históricas não são apagadas, sendo o negro muitas vezes aquele quem chega a sofrer até mesmo risco de vida, por exemplo, como em ações policiais sob ordens do Estado.
O desenvolvimento do racismo no Brasil advém de um processo de negação, o que produz um desconhecimento da maior parte da população sobre sua existência, sobre o processo histórico-político e social de exclusão em que os negros e negras viveram e vivem. Segundo Silva (2012) também se encontra neste processo de negação, a negação da identidade negra, pois os negros são retratados em nossa história através de imagens negativas, em posição inferior, ocasionando no encontro de identificação dos sujeitos, do espelhar-se no outro mais uma vez a negação de si e do outro, enquanto ser negro.
O racismo no Brasil é para a população negra uma barreira que impossibilita o processo de identificação, de construção da identidade negra. Assim, torna-se necessário o fortalecimento das resistências e lutas antirracistas para romper com essas barreiras, criando no decorrer do percurso mecanismos e instrumentos para que as amarras e correntes racistas sejam quebradas.
O Racismo e a Psicologia
O Sindicato dos Psicólogos do Paraná publicou em 2016 na internet um folder com a seguinte frase: RACISMO NÃO CABE NA PSICOLOGIA. De fato, racismo não cabe na Psicologia e também em nenhum outro lugar, assim como os diversos preconceitos e discriminações que diariamente causam sofrimento nos sujeitos, tanto físico quanto psicológico. Mas por outro lado o racismo está por toda parte e até mesmo na Psicologia. É primordial um processo de descolonização em nós, em nossa profissão, sociedade, e principalmente o que funciona de forma invisível.
Em 18 de novembro de 2015 ocorreu em Brasília-DF à “Marcha das Mulheres Negras 2015”, contando com a presença de 15 mil mulheres negras de diversos estados do país. O tema da marcha foi: “Contra o racismo, a violência e pelo bem viver”. A psicóloga Jussara Dias, do Instituto AMMA Psique e Negritude, do estado de São Paulo foi uma das psicólogas que marcou presença e representatividade neste dia. Dias (2015) relata em entrevista ao Conselho Federal de Psicologia que o “racismo é um mal que adoece a sociedade como um todo” e como todo mal deve ser retirado pela raiz, porém o problema é grave, pois o racismo se ramificou e continua a produzir adoecimentos nos sujeitos que acabam sofrendo com autoestima baixa produzida por estereótipos distorcidos. Segundo Dias (2015) a partir desse adoecimento, do ponto de vista psíquico, a Psicologia entra como uma possibilidade de tratamento dos efeitos psicossociais produzidos pelo racismo.
O Instituto AMMA Psiquê e Negritude do qual Jussara Dias é integrante da equipe, foi fundado em 1995 e é um dos poucos projetos de ONGs no Brasil com formação exclusivamente por psicólogas/psiquiatras negras que realizam trabalhos com enfoque na psicologia, desenvolvendo estratégias, ações e atividades sobre os efeitos psicossociais produzidos pelo Racismo, Discriminação e Preconceito. O AMMA possui atuação clínica, formação e políticas públicas e que segundo os profissionais-participantes do Instituto, como a psicóloga Dias, o racismo deve ser enfrentado por duas vias: psíquica e política! Pois o racismo não somente viola os direitos humanos, mas também adoece os sujeitos prejudicando sua saúde mental, podendo desenvolver sintomas psicossomáticos, baixa autoestima, provocar inibições e impedimentos de acesso ou participação. “O racismo atinge a todos e todas, provoca sofrimento psíquico e pede cura política e psíquica” (AMMA, site).
Para isto, além da psicologia e da constituição dos sujeitos como atores sociais, é preciso alterar as relações socioeconômicas, os padrões culturais e as formas de produzir e reproduzir a história brasileira. Conclui-se, assim, que as políticas públicas voltadas para a igualdade racial como as de cotas, o reconhecimento da história, do espaço e a ação do movimento negro, são essenciais para que os brancos consigam se deslocar da posição de norma e de hegemonia cultural (SCHUCMAN, 2014, p.92).
Barrero (2016), secretário geral da União Latino-americana de Entidade da Psicologia (ULAPSI), em entrevista ao Jornal Psi (CRP, 2016) traz reflexões acerca da Psicologia na América-Latina. Quando questionado sobre a posição e história da psicologia na América latina e quais os interesses que responde a psicologia latino-americana, relata que: “A psicologia que chega à América Latina desde a década de 1950 é uma psicologia com interesses políticos e ideológicos muito definidos a favor das grandes potências imperialistas. A formação de psicólogas e psicólogos tinha esse selo e segue tendo em muitas partes. O resultado foi uma impressionante colonização afetiva, intelectual e relacional cujo impacto mais atroz foi a submissão e a obediência cega frente aos centros de produção teórica dos Estados Unidos e da Europa. Mais que interesses da psicologia latino-americana, teríamos que falar dos princípios ético-políticos para a transformação psicossocial” (BARRERO, 2016, s/p).
Nesta práxis descolonizadora, em que se devem produzir conhecimentos e saberes para transformar e não adaptar, Barrero (2016) relembra do professor e psicólogo Marcus Vinícius de Oliveira, assassinado em 2016 no Brasil, como um profissional que lutou ativamente pela descolonização e direitos humanos e também cita Martin-Baró que em 1989 em El Salvador, foi assassinado por defender os direitos da maioria da população.
No interior desse movimento de revisão da sua condição elitista, organizações formadas por psicólogas (os) militantes da causa negra buscam ampliar o espaço do debate crítico, apontando, inicialmente pela via das relações com os Direitos Humanos, uma urgência de que a questão racial receba a merecida importância na produção científica e na agenda política da psicologia brasileira (I PSINEP, 2011, p.84).
O I Encontro Nacional de Psicólogos (as) Negros (as) e Pesquisadores (as) das Relações Raciais e Subjetividades (I PSINEP) foi realizada entre os dias 13, 14 e 15 de outubro de 2010, no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). O psicólogo Alessandro de Oliveira dos Santos ministrou no I PSINEP a palestra sobre o tema “Relações Históricas da Psicologia com o Racismo: a produção de conhecimento, a prática e formação”. Santos (2010) relatou que a psicologia social brasileira se constitui a partir dos estudos das diferenças, assim como: relações étnico-raciais, interculturais e de gênero.
São estudos muito apropriados devido à variabilidade e ao tamanho do país. Por trás de tudo isso, está o objetivo de conhecer quem são os outros. Os conceitos de estereótipo, estigma, preconceito e discriminação falam sobre quem são os outros. Sabemos que as relações interculturais e étnico-raciais, no Brasil, são marcadas pelos grandes fluxos migratórios. Mas, diferentemente de outros povos que migraram para cá, o povo negro foi incluído como mercadoria e excluído como cidadão (SANTOS, 2010, p.33).
De acordo com Santos (2010, p. 33) os autores que se encontram na base da psicologia social brasileira contribuindo e refletindo acerca das relações sociais, estão situados no período entre 1930 e 1950. “São eles: Raul Carlos Briquet (1887-1953); Donald Pierson (1900-1995); Aniela Meyer Ginsberg (1902-1986); Arthur Ramos de Araújo Pereira (1903-1949); Virgínia Leone Bicudo (1915-2003); e Dante Moreira Leite (1927-1976)”. Em síntese esses profissionais da psicologia são os responsáveis pelos primeiros cursos de psicologia social no Brasil e também contribuíram com os estudos acerca da interação do indivíduo com grupos e sociedades. “Também mostraram que as diferenças podem degenerar em desigualdades. Suas ideias foram fundamentais para a construção da Psicologia Social no Brasil” (SANTOS, 2010, p.36).
Nesta mesa o professor e psicólogo Luís Guilherme Galeão da Silva, também contribuiu para as reflexões acerca do Racismo e da Psicologia. Silva (2010) afirma que refletir sobre o racismo não é uma questão de achismo ou simplesmente um ponto de vista.
A discriminação racial pode ser vista claramente como fato histórico, social e econômico. Pode ser comprovada por dados. O racismo se dissemina por meio do modo de produção da cultura, e das instituições. Entre elas, a instituição familiar. Na família, começa o processo de socialização, continua na escola e segue no trabalho. Se no processo de escolarização ocorre a sistemática desvalorização da população negra, apoiada pelos livros didáticos e pelo comportamento dos professores, a escola passa a fazer parte da construção do racismo (SILVA, 2010, p. 38).
O preconceito não é algo que ocorre somente por uma causa, pois são múltiplos fatores que o permeiam. Segundo Silva (2010, p.38), muitos elementos concorrem para a predisposição do indivíduo ao racismo. Por exemplo, causas psicodinâmicas indicam a introjeção de forças sociais e estruturas psíquicas fundamentais para a manifestação do preconceito. Também situações de frustração, inclusive as advindas de crises econômicas, levam a um aumento de ataques racistas. O grupo discriminado é o bode expiatório de problemas econômicos e sociais.
No I PSINEP ficou sob a responsabilidade da psicóloga clínica Adriana Soares Sampaio e do psicólogo social e psicanalista José Moura Gonçalves Filho o debate sobre o “Racismo e Sofrimento Psíquico: Desafios para a Psicologia”. Sampaio (2010) destaca que o caráter perverso do racismo brasileiro e da discriminação racial ultrapassa questões de classes sociais.
O caráter perverso do racismo brasileiro se situa exatamente na sua invisibilidade. Ele se mantém como algo que socialmente não é falado, não é ecoado. Mas ele é sentido, percebido e deixa marcas profundas. Em muitos momentos, parece que as pessoas querem reagir para não sangrar. O silêncio congela, tira potência, fere o campo subjetivo e criativo (SAMPAIO, 2010, p.54).
Um sofrimento psíquico originado de um fato histórico banalizado tem uma construção destrutiva aos sujeitos que estão inseridos neste contexto histórico. O Brasil ainda não problematizou de fato o racismo, afirmando sua existência e as marcas que carrega e quem perde não é o negro, mas sim a sociedade como um todo que deixa de potencializar sua diversidade. Um dos grandes problemas ainda é colocar no outro a culpa ou algo que não deseja que habite em si, por preconceito, mas declarando que o outro é racista, negando o racismo que há em si próprio (SAMPAIO, 2010).
Onde e quando começou o projeto de um grupo subordinar um outro grupo? Qual a motivação? O que moveu os europeus a subordinaram e escravizarem milhares de africanos? O que estava em jogo? Essas perguntas precisam de uma resposta para que haja cura psicológica de uma angustia, ligada à uma humilhação de longa duração. Há uma humilhação política nisso (Moura 2010, p.59).
Para Moura (2010) é preciso que o psicólogo promova boas relações com os sujeitos e seja capaz de criar condições para a conscientização do contexto histórico e políticos que envolvem seus sentimentos. Os sentimentos enigmáticos são aqueles que nos causam maiores desastres psicológicos.
(…) a angústia de um negro precisa supor uma longa investigação do racismo. A angústia de uma mulher necessita de uma imensa investigação do machismo. A angústia de uma pessoa pobre precisa percorrer uma dolorosa investigação da soberba classista. A dominação é racista, classista, machista. Ela é normalizadora e feita de longevidade. Os dominadores adorariam ser eternos (MOURA, 2010, p.60).
O professor e psicólogo Marcus Vinícius de Oliveira Silva, representando o “Instituo Silvia Lane – Psicologia e Compromisso Social”, participou em 2010 do debate “Configuração do Mundo Profissional e Social para o (a) Psicólogo (a) Negro (a) no Brasil”.
Ao mesmo tempo que precisamos entender os pontos em comum da diáspora africana no mundo inteiro, precisamos ser capazes de olhar para a singularidade da história da dominação em cada um dos países. Perceber como se deram as formas de construção objetiva e subjetiva do racismo em cada cultura (SILVA, 2010, p.65).
De acordo com Silva (2010) os psicólogos (as) negros e negras devem estar à frente dessa questão, pois sentem o que é o racismo na pele e podem ajudar – tanto quanto as (os) psicólogas (os) brancas (os) – homens e mulheres negras que sofrem com os efeitos psicossociais provocados pelo racismo. E o que há de diferente entre os psicólogos e os demais? Um olhar que toma a questão da subjetividade como algo fundamental na compreensão dos processos sociais, isto devido a nossa formação que nos fornece recursos interpretativos acerca da dimensão subjetiva. A compreensão, a partir das significações, simbolizações, pode levar o sujeito a olhar a realidade além de suas produções objetivas. Esse é um simples exemplo para demonstrar que a nossa produção enquanto psicólogos (as) é diferente das (os) demais sujeitos negros (as) e brancos (as) (SILVA, 2010).
Precisamos criar dispositivos de acolhimento ao sofrimento psíquico causado pelo racismo e discriminação. A partir de cada caso singular, temos que estabelecer compreensões mais gerais acerca das múltiplas formas com que a violência se manifesta. Essa também é uma forma de reafirmar nosso direito de existir plenamente em um mundo com sujeitos iguais (SILVA, 2010, pp.66-67).
A Psicologia é uma das áreas fundamentais no enfrentamento do racismo e na redução das desigualdades raciais no país. Quando pessoas perdem o direito de pertencimento a sua cultura – aqui neste caso negros (as) -, ocorrem efeitos psicossociais negativos nos sujeitos. Neste meio, a Psicologia enquanto ciência e profissão em conjunto aos setores da sociedade deve fortalecer as lutas dos direitos humanos, construindo instrumentos e mecanismos para o enfrentamento da violação desses direitos.
Em 2002 o Conselho Federal de Psicologia (CFP) aprovou a Resolução nº 018/2002 onde especifica e estabelece normas de atuação para psicólogos e psicólogas em relação à discriminação racial. Estamos caminhando para os 15 anos dessa resolução e ainda há uma grande luta por parte dos Sistemas de Conselhos para que o tema seja introduzido de fato no que tange o conjunto de problemas que são abordados pelos (as) profissionais da área de Psicologia. É importante indicar os artigos que integram a Resolução 018/2002:
Art. 1º – Os psicólogos atuarão segundo os princípios éticos da profissão contribuindo com o seu conhecimento para uma reflexão sobre o preconceito e para a eliminação do racismo.
Art. 2º – Os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a discriminação ou preconceito de raça ou etnia.
Art. 3º – Os psicólogos, no exercício profissional, não serão coniventes e nem se omitirão perante o crime do racismo.
Art. 4º – Os psicólogos não se utilizarão de instrumentos ou técnicas psicológicas para criar, manter ou reforçar preconceitos, estigmas, estereótipos ou discriminação racial.
Art. 5º – Os psicólogos não colaborarão com eventos ou serviços que sejam de natureza discriminatória ou contribuam para o desenvolvimento de culturas institucionais discriminatórias.
Art. 6º – Os psicólogos não se pronunciarão nem participarão de pronunciamentos públicos nos meios de comunicação de massa de modo a reforçar o preconceito racial.
Em 2013 o Centro de Referência Técnica e Psicologia em Políticas Públicas (CREPOP), ligado ao sistema de Conselhos de Psicologia, lançou o documento “Referências técnicas para prática de psicólogas (os) em políticas públicas de relações raciais”, elaborado para promover a qualificação dos profissionais da psicologia nos serviços públicos. “O documento foi redigido por uma comissão de especialistas indicados pelos plenários dos Conselhos, e chama atenção para o fato de que o racismo institucional envolve uma dimensão político-programática e uma dimensão de relações interpessoais” (SANTOS et. al, 2015, p.18).
Devemos romper com as ideias superficiais na Psicologia sobre as relações raciais no Brasil (I PSINEP, 2011). E enquanto estudantes e profissionais reafirmar nossas lutas em conjunto a nossa ciência e profissão, incluindo seus valores e princípios fundamentais presentes em nosso Código de Ética, como a Resolução nº 010 e que jamais devemos nos esquecer:
1. O psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
2. O psicólogo trabalhará visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades e contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
3. O psicólogo atuará com responsabilidade social, analisando crítica e historicamente a realidade política, econômica, social e cultural.
4. O psicólogo atuará com responsabilidade, por meio do contínuo aprimoramento profissional, contribuindo para o desenvolvimento da Psicologia como campo científico de conhecimento e de prática.
5. O psicólogo contribuirá para promover a universalização do acesso da população às informações, ao conhecimento da ciência psicológica, aos serviços e aos padrões éticos da profissão.
6. O psicólogo zelará para que o exercício profissional seja efetuado com dignidade, rejeitando situações em que a Psicologia esteja sendo aviltada.
7. O psicólogo considerará as relações de poder nos contextos em que atua e os impactos dessas relações sobre as suas atividades profissionais, posicionando-se de forma crítica e em consonância com os demais princípios deste Código.
E por fim, espero que continuemos construindo nossa profissão e sociedade de mãos dadas à mensagem que o CRP-SP nos transmitiu: Psicologia: todo dia, em todo lugar por uma sociedade mais democrática e igualitária!
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NOTAS
1. Artigo escrito por Anderson dos Santos. Recebeu o 2º lugar do Prêmio Marcus Vinícius de Psicologia e Direitos Humanos, promovido pelo Conselho Regional de Psicologia do Estado de São Paulo (CRP-SP), em 2016. Publicado em: Prêmio Marcus Vinícius de Psicologia e Direitos Humanos: Violência de Estado Ontem e Hoje – Da Exclusão ao Extermínio. Conselho Regional de Psicologia de São Paulo – São Paulo: CRP-SP, 2017. – Referências bibliográficas na edição publicada pelo CRP-SP.