INTRODUÇÃO
Sobre o teatro não é um livro de Gilles Deleuze. É o título que escolhi para agrupar numa mesma publicação dois textos seus que analisam o pensamento de dois grandes nomes do teatro: Carmelo Bene e Samuel Beckett. Mas, evidentemente, não se deve ler esse título como se a filosofia de Deleuze fosse uma reflexão sobre algum domínio externo à filosofia, no sentido de uma avaliação. Ao contrário, em continuidade com seus escritos sobre arte e literatura, esses dois textos mostram muito bem como alguns conceitos do sistema filosófico deleuziano são suscitados pelo exercício de pensamento não conceitual que se encontra nos saberes não filosóficos.
Isso significa, antes de tudo, que a filosofia de Deleuze não está situada acima dos outros saberes, como a ciência e a arte; não é um metadiscurso, uma metalinguagem, que teria por objetivo formular critérios de legitimidade ou de justificação dos outros discursos, das outras linguagens, tendência moderna que começou com Kant e perdura e se intensifica na epistemologia, no neopositivismo, na filosofia da linguagem. Para Deleuze, a filosofia está no nível dos outros domínios; é produção, criação de pensamento, tal como são as outras formas de saber, sejam elas científicas ou não.
Mas isso não quer dizer que Deleuze assimile os diferentes domínios de pensamento. A distinção das formas de criação é clara para ele: enquanto a ciência cria funções e a arte cria sensações – perceptos e afetos –, a filosofia cria conceitos, novos conceitos. O pensamento filosófico é criador porque faz nascer alguma coisa que ainda não existia, alguma coisa nova, uma singularidade. E neste sentido pode-se dizer que os conceitos são assinados, têm o nome de seu criador: ideia remete a Platão, substância a Aristóteles, cogito a Descartes, mônada a Leibniz, condição de possibilidade a Kant, duração a Bergson…
Como, então, Deleuze cria os conceitos de sua filosofia? De um modo bastante original: partindo do que foi pensado por outros, sejam filósofos ou não, e integrando esses elementos como conceitos de sua própria filosofia. Assim, sua filosofia é um sistema de relações entre conceitos oriundos ou extraídos da própria filosofia, isto é, de filósofos por ele privilegiados – principalmente Espinosa, Nietzsche e Bergson – e, por outro lado, conceitos suscitados ou sugeridos por outros tipos de pensamento, isto é, pelo exercício de pensamento não conceitual que se encontra nas ciências, nas artes, na literatura.
Se o processo de pensamento de determinados filósofos, cientistas e artistas é condição do modo singular de Deleuze filosofar, qual é o critério que guia sua escolhas? A resposta é simples: a afirmação da diferença em detrimento da identidade. Se Deleuze integra algum pensamento dos outros à sua filosofia – e ele está sempre fazendo isso –, é porque com ele ou a partir dele se torna possível afirmar a diferença, pensar sem subordinar a diferença à identidade.
Quanto à filosofia, é o que acontece principalmente com os conceitos nietzschianos de vontade de potência, niilismo e eterno retorno, com os conceitos bergsonianos de multiplicidade, atual e virtual, gênese, atualização, duração, com os conceitos espinosistas de intensidade, expressão, imanência, univocidade; mas, além desses filósofos, os estoicos, Leibniz, Foucault etc. também são objeto desse “roubo” de conceitos. E o mesmo acontece quando Deleuze leva em consideração outros domínios do pensamento, estabelecendo ressonâncias entre a filosofia e esses outros saberes a partir da questão central que orienta suas investigações: “o que significa pensar?”, ou mais precisamente, “o que é pensar sem subordinar a diferença à identidade?” No que diz respeito à ciência: teorias matemáticas, físicas, biológicas, linguísticas, antropológicas, psicanalíticas. No caso das artes, o que faz Melville, Proust ou Kafka com meios propriamente literários, Cézanne ou Bacon com meios picturais, Orson Welles, Resnais ou Godard com meios cinematográficos. Assim, ao pensar a literatura e as artes, Deleuze está realizando seu projeto filosófico de constituição de uma filosofia da diferença, sem que haja uma diferença essencial entre esses estudos de pensamentos não filosóficos e os estudos dos textos tecnicamente filosóficos, isto é, conceituais. Um ótimo exemplo disso é sua interpretação do romance Em busca do tempo perdido, de Proust, como um pensamento diferencial criado pela relação entre signo e sentido, o que faz do livro de Proust um dos instrumentos da formulação de sua filosofia da diferença.
Mas, além de sua filosofia ter como conteúdo a afirmação da identidade da diferença, seu procedimento, seu modo de fazer isso está sempre criando a diferença. Como? Construindo um duplo sem semelhança do pensamento investigado. Pois, segundo ele, repetir o texto não é buscar sua identidade, mas afirmar sua diferença; é pensar em seu próprio nome usando o nome de um outro. Sua leitura de filósofos, literatos, pintores ou cineastas é sempre organizada a partir de um ponto de vista, de uma perspectiva que faz o objeto estudado sofrer pequenas ou grandes torções, a fim de ser integrado a suas próprias questões. Deleuze incorpora conceitos ou transforma em conceitos elementos não conceituais, mas, ao proceder à repetição da diferença como uma maneira de pensar, está sempre criando a diferença, como se fosse um dramaturgo que escrevesse as falas e dirigisse a participação de cada pensador que integra à sua filosofia. Assim, é a compreensão da amplitude e do modo de funcionamento desse procedimento que modifica o texto, produzindo seu duplo, que possibilita explicitar o diferencial próprio do pensamento de Deleuze – o que constitui sua singularidade.
E, para que isso seja possível, um outro procedimento está sempre presente: a inter-relação, o agenciamento, a conexão de pensamentos de diversos criadores. Pois, se é possível detectar, nos estudos feitos por Deleuze, o privilégio de alguns pensadores em detrimento de outros – tidos como aliados pela relação diferencial que estabelecem quando pensam –, ele está sempre inter-relacionando esses pensadores para criar os conceitos de sua própria filosofia da diferença. Como se utilizasse um procedimento de colagem, tal qual o dadaísmo fez na pintura, para que, por exemplo, sob a máscara de Sócrates apareça o riso do sofista, ou para que Duns Scot, o grande filósofo medieval, receba os bigodes de Nietzsche, um Nietzsche, aliás, fantasiado de Klossowski ou Blanchot. E se suas leituras não reduzem esses pensadores ao mesmo, criando uma identidade entre eles, é porque a diferença entre todos eles persiste, cada um conservando sua singularidade, sua individualidade própria. Além disso, Deleuze não se identifica totalmente com nenhum deles, nem mesmo com Nietzsche, sua inspiração fundamental, aquele que atingiu o ápice de uma filosofia da diferença. Pois sua leitura de Nietzsche é a criação de mais uma máscara, a criação de um duplo sem semelhança.
“Um manifesto de menos”, sobre o ator, dramaturgo, encenador e cineasta italiano Carmelo Bene, é um ótimo exemplo de como Deleuze constitui sua filosofia com ou a partir do teatro, só levado em consideração nesse texto e no posfácio sobre Beckett, que analisarei depois.
Esse texto (publicado em italiano em 1978 e em francês no ano seguinte, juntamente com Ricardo III de Bene) apresenta várias ideias importantes da filosofia de Deleuze, desenvolvidas na década de 1970 enquanto ele preparava seu livro Mil platôs com Guattari. Uma delas é que a crítica, aqui o aspecto crítico do próprio teatro, é consequência de uma constituição, ou que esse teatro crítico é um teatro constituinte, criador do novo. Mais precisamente, valorizando a característica do criador italiano de fazer peças a partir de outros dramaturgos – Shakespeare, por exemplo –, Deleuze defende que o teatro de Bene é crítico porque opera amputando, subtraindo alguma coisa – alguns dos elementos – da peça originária para fazer aparecer algo diferente. Por exemplo, em Ricardo III, subtrair os reis e os príncipes como representantes do poder de Estado, só conservando Ricardo e as mulheres, para mostrar que a ambição deste é criar uma “máquina de guerra” capaz de pôr em questão o aparelho de Estado. Assim, o que é subtraído, amputado ou neutralizado pelo procedimento utilizado por Bene são os elementos do poder. Mas, além do poder do que é representado em cena, também o poder do próprio teatro. Pois não é apenas a matéria teatral que ele modifica; é também a forma do teatro, que cessa de ser representação, constituindo-se como um teatro da não representação, na linha de Artaud, Bob Wilson, Grotowski ou do Living Theater. E se Deleuze não assimila totalmente Bene a esses renovadores do teatro é porque reconhece a originalidade de seu procedimento: a subtração dos elementos do poder, que libera uma força não representativa como potencialidade do teatro.
Em segundo lugar, Deleuze aprofunda essa ideia com o tema da minoria e de sua relação com o teatro. Esse tema do menor já interessa Deleuze pelo menos desde Kafka, por uma literatura menor, que escreveu com Guattari em 1975, onde eles estabelecem três características da literatura menor: a desterritorialização da língua, a articulação do individual com o político e o agenciamento coletivo de enunciação. Além disso, ele foi retomado num pequeno artigo de 1978, “Filosofia e minoria” (publicado na revista Critique e depois integrado a Mil platôs), da mesma época de “Um manifesto de menos”, que contrapõe maioria e minoria do ponto de vista qualitativo, inclusive no que diz respeito às línguas, e defende a existência de “uma figura universal possível da consciência minoritária” que se articula com o devir.
Deleuze pensa o “menor” em Bene, primeiro, em relação à língua. Isso significa que as línguas podem ser consideradas maiores ou menores: maiores quando têm uma forte estrutura homogênea e constantes ou universais de natureza fonológica, sintática ou semântica, o que as faz línguas do poder; menores quando só comportam um mínimo de constantes e de homogeneidade estrutural. Mas significa, mais fundamentalmente – e então Deleuze parece ir além do que Bene pensa explicitamente –, que maior e menor qualificam menos línguas diferentes do que usos diferentes da mesma língua. Pois, como ele insiste em vários momentos, toda língua maior é marcada por linhas de variação contínua, quer dizer, por usos menores, como diz, por exemplo, o linguista William Labov. Exemplos: Kafka, judeu tcheco, ao escrever em alemão, faz um uso menor da língua que utiliza, assim como Beckett, irlandês escrevendo em inglês e em francês, e Pasolini utilizando as variedades dialetais do italiano. Ou como Bob Wilson, Gherasim Luca e outros. Retirar os elementos estáveis da língua, pondo tudo em variação contínua, é, para Deleuze, ser bilíngue numa mesma língua, ser um estrangeiro em sua própria língua, ser gago da própria linguagem e não simplesmente da fala. E, a esse respeito, ele defende que a originalidade de Carmelo Bene está em submeter autores considerados maiores a um tratamento de autor menor para reencontrar suas potencialidades de vida e de pensamento.
Mas, como faz quando analisa a literatura, com mais razão ainda, Deleuze não reduz o teatro a uma questão de linguagem. Sua análise vai além, prolongando a variação da língua com um outro tipo de variação. Pois ele pensa que, quando os componentes linguísticos e sonoros, a língua e a fala, considerados como variáveis internas, são colocados em estado de variação contínua, eles entram em relação recíproca com variáveis externas que dizem respeito a componentes não linguísticos: as ações, os gestos, as atitudes etc. Assim, o teatro de Bene é marcado pela eliminação das constantes ou invariantes tanto na linguagem quanto nos gestos em prol de uma variação contínua. E isso leva Deleuze a privilegiar, em sua análise de Ricardo III por exemplo, as linhas de variação entre os gestos e as vozes.
Finalmente, Deleuze procura esclarecer a importância política desse tipo de teatro. E faz isso distinguindo-o do teatro popular que representa conflitos. Pois, se o teatro permanece representativo a cada vez que toma os conflitos como objeto, é porque eles já estão normalizados, codificados, institucionalizados. E o próprio Brecht não parece ter escapado disso, ao querer apenas que eles sejam compreendidos, que o espectador tenha os elementos de uma “solução” possível. O que não significa escapar da representação, mas apenas passar do polo da representação burguesa para o polo da representação popular. Já Carmelo Bene pretende substituir a representação dos conflitos pela variação, considerada como elemento sub-representativo.
Mas como ele é capaz de realizar uma variação que possibilite escapar da representação? A resposta a essa questão é dada a partir da distinção entre maior e menor, ou entre “fato majoritário” e “devir minoritário”. Segundo Deleuze, a posição de Carmelo Bene a esse respeito consiste em que, enquanto o teatro popular remete a um fato majoritário, designando o padrão em relação ao qual as outras quantidades serão consideradas menores – o que supõe um estado de poder ou de dominação –, tornar-se minoritário é se desviar do modelo. Assim, a variação contínua não para de extrapolar o limiar representativo do padrão majoritário, possibilitando a minoração. E a função antirrepresentativa do teatro seria constituir uma figura da consciência minoritária, tornando atual uma potencialidade, o que é diferente de representar um conflito. Deste modo, se nesse caso a arte não exerce mais poder é porque, participando da criação de uma consciência minoritária, ela remete a potências do devir, que pertencem a uma instância diferente do domínio do poder e da representação, ao possibilitar que se escape do sistema de poder a que se pertencia como parte da maioria. A função política do teatro – e da arte em geral – é contribuir para a constituição de uma consciência de minoria.
“O esgotado” (publicado como posfácio a Quad e outras peças para televisão, de Samuel Beckett, em 1992) é um dos últimos escritos de Deleuze. Como o título indica, esse texto difícil interpreta o pensamento de Beckett a partir do conceito de esgotamento de um modo que permite encontrar no romancista e dramaturgo o âmago do próprio pensamento do filósofo: a criação de relações disjuntivas capazes de afirmar a diferença.
Para definir o esgotamento, Deleuze começa distinguindo-o do cansaço pela relação que eles têm com o real e o possível, defendendo que o cansado esgota a realização, enquanto o esgotado esgota o próprio possível, todo o possível, o que não se realiza no possível. Essa diferença de natureza significa que, enquanto a realização do possível se dá em função de determinadas preferências, isto é, procede por exclusão ou disjunções exclusivas, que acabam cansando, o esgotado, ao contrário, é alguém que renuncia a qualquer preferência, sem nada realizar, esgotado de nada, com disjunções inclusas em que os termos se afirmam em sua distância.
Como, então, Beckett esgota o possível ou produz essas disjunções inclusas tão características do procedimento deleuziano? Através do que Deleuze chama “combinatória”. Essa combinatória diz respeito, em primeiro lugar, à linguagem, isto é, tem a função de esgotar o possível com palavras, dando-lhe uma realidade própria: uma realidade esgotável. Trata-se de uma língua dos nomes, língua atômica, corpuscular, disjuntiva, que remete a linguagem a objetos enumeráveis e combináveis, isto é, em que a enumeração substitui as proposições e as combinações, as relações sintáticas. Assim, para esgotar o possível, é preciso remeter os objetos às palavras que os designam por disjunções inclusas, construindo séries exaustivas de coisas.
Mas isso não basta, pois, além de esgotar o possível com palavras, também é preciso esgotar as próprias palavras, constituindo uma língua que não é mais a dos nomes, mas a das vozes, composta não mais de átomos que se combinam, mas de ondas, de fluxos que se misturam. Quando se esgota o possível com palavras, abrem-se, racham-se átomos; quando as próprias palavras são esgotadas, interrompem-se fluxos. E, retomando o conceito de outro, presente em sua obra desde Diferença e repetição e Lógica do sentido, Deleuze acrescenta que, para esgotar as palavras, é preciso remetê-las a outros – que em seus mundos possíveis só têm a realidade de suas vozes – que as emitem, seguindo fluxos que às vezes se misturam, às vezes se distinguem. São esses fluxos de voz, responsáveis pela distribuição das palavras, que precisam ser estancados, interrompidos.
E, para isso, é preciso ir além da linguagem e criar uma imagem. Isto é, quando a linguagem atinge o limite, um limiar de intensidade, ela permite pensar alguma coisa que vem de fora, algo – visto ou ouvido – que Deleuze chama de imagem, visual ou sonora, e caracteriza como uma imagem pura, intensa, potente, singular, que, não sendo pessoal nem racional, dá acesso ao indefinido como intensidade pura: uma mulher, uma mão, uma boca etc. Assim, como a relação é sempre o mais importante em Deleuze, é preciso que a imagem pura permaneça em relação com a linguagem, isto é, com os nomes e as vozes, de modo a esvaziá-la. Se a imagem é uma maneira de esgotar o possível, é porque a energia da imagem é dissipadora, isto é, a imagem armazena uma energia potencial que ela detona ao se dissipar. Esse de-fora da linguagem, no entanto, não é apenas a imagem: é também o espaço, mas um “espaço qualquer”, sem função, conceito que Deleuze aprofundou nos seus livros sobre o cinema. E se ele volta agora, na análise das peças de Beckett para o cinema, é para defender que, se a potencialidade do espaço é tornar possível a realização de acontecimentos, o esgotamento esgota, extenua as potencialidades de um espaço qualquer.
Deleuze conclui, então, a parte geral de sua exposição sintetizando os quatro modos de esgotar o possível que ele detecta em Beckett: formar séries exaustivas de coisas, estancar os fluxos de voz, dissipar a potência da imagem, extenuar as potencialidades do espaço.
A segunda parte do texto analisa as peças de Beckett para televisão com o objetivo de apresentar exatamente como esse esgotamento se dá. Em relação a Quad, peça que parece um balé, em que os personagens só são determinados espacialmente – só são definidos por sua ordem e sua posição –, Deleuze mostra como esse espaço qualquer, fechado, global, é esgotado ou despotencializado. Sua ideia principal é que, sendo o centro a potencialidade do quadrado, considerada como a possibilidade de que os personagens – os quatro corpos em movimento que percorrem seus lados e suas diagonais – se encontrem no centro, esgotar o espaço é exaurir sua possibilidade, tornando o encontro impossível, por um leve recuo em relação ao centro que faz os corpos se evitarem e evitarem o centro.
Trio do fantasma, a segunda peça para televisão estudada por Deleuze, difere de Quad por dois motivos. Primeiro porque, se também diz respeito ao espaço, para esgotar suas potencialidades, ela faz isso de maneira diferente. Pois agora se trata de um espaço qualquer só determinado localmente, e não globalmente, um espaço fragmentado por closes, determinado nos três lados, com três potencialidades: a porta a leste, a janela ao norte, o catre a oeste. E os movimentos de câmera e os cortes constituem a passagem de uma parte a outra do espaço. Além disso, como essas partes dão para o vazio, a passagem de uma a outra só conecta vazios. Segundo, Trio do fantasma também difere de Quad porque tem voz e música – a música de Beethoven que dá nome à peça. Mas trata-se de uma voz depurada, neutra, sem intenções, entonações, lembranças, que se eleva à dimensão de um impessoal indefinido: uma mulher, um homem, uma criança. Em Trio, a despotencialização se dá pela voz, que estanca o possível, tanto quanto pelo espaço, que exaure suas potencialidades. E entre a voz (e seus silêncios) e o espaço (e seus vazios) há cisão, separação, disjunção inclusa, cabendo à música conectar esses componentes heterogêneos ao mesmo tempo que se converte em silêncio e se abole no vazio.
Em … que nuages…, a terceira peça estudada, cujo título vem de um poema de Yeats, Deleuze começa chamando a atenção para que o cenário – o “santuário”, lugar onde o personagem vai criar a imagem, a porta que dá para os “caminhos vicinais”, o cubículo no qual ele troca de roupa – só existe na voz do personagem, ou só é dado pela palavra; por outro lado, o que se vê é apenas um espaço qualquer, determinado por um círculo, cada vez mais sombrio na direção da periferia, cada vez mais claro na proximidade do centro. Em seguida, Deleuze explicita o “duplo esgotamento”, físico e lógico, o acordo entre a necessidade do corpo e a necessidade do espírito, que se produz na relação entre o espaço e a imagem. E se o importante agora é a imagem espiritual, e não o espaço, é porque esse “teatro do espírito” quer mostrar o que é construir uma imagem, ou que para criar uma imagem é preciso uma tensão espiritual que eleva a coisa ou a pessoa ao estado indefinido: uma mulher. A imagem não é uma representação de objeto, mas um movimento no mundo espiritual. E por ser movimento espiritual, intensidade pura, energia potencial, não se separa do seu próprio desaparecimento, de sua dissipação, anunciando que o fim do possível está próximo – quando não haverá mais imagem, nem espaço.
Finalmente, Nacht und Träume também tem como tema, segundo Deleuze, a criação da imagem. Só que dessa vez o personagem não fala, não ouve, não se move: sonha. Trata-se de uma nova depuração, que relaciona a criação à insônia, ou melhor, ao sonho do insone, que diz respeito ao esgotamento, ao esgotamento do possível. O insone de Nacht und Träume é um esgotado que, para criar, precisa do sonho, mas de um sonho do espírito, que deve ser criado. O “sonhado” é a imagem visual. E a imagem visual, que se dissipa esgotando o possível, reveza com a imagem sonora – a voz de homem que cantarola uma música de Schubert antes do surgimento e depois do desaparecimento da imagem –, trazendo o vazio ou o silêncio do fim.
Formulando, desse modo, uma ideia também presente em alguns dos ensaios de Crítica e clínica, Deleuze defende que essas peças de Beckett para televisão têm como objetivo fender, abrir, esburacar as palavras – sobrecarregadas de significações, intenções, lembranças, hábitos –, criando um estilo capaz de produzir visões e audições puras, intensas, que sem isso permaneceriam imperceptíveis. A afinidade ou aliança de Deleuze com Beckett está na interpretação de sua obra como a criação de um estilo que relaciona a linguagem com algo de natureza diferente – um de-fora da linguagem – para que apareçam o vazio e o silêncio, isto é, o visível e o audível em si, ou, como às vezes também diz, o invisível e o inaudível.
ROBERTO MACHADO
Filósofo, autor de Deleuze, a arte e a filosofia